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152.013 mortes violentas em 2012 e a redução da razão de sexo no Brasil.

152.013 mortes violentas em 2012 e a redução da razão de sexo no Brasil, por José Eustáquio Diniz Alves e Alex Manetta

 

 

152.013 mortes violentas em 2012 e a redução da razão de sexo no Brasil - A

 

[EcoDebate] O Brasil bateu mais um recorde negativo no registro de mortes violentas em 2012. Foram 56.337 pessoas mortas por homicídio (29 por cem mil), 46.051 mortes em acidentes de transporte (23,7 por cem mil) e 10.321 suicídios (5,3 por cem mil). No total foram 112.709 mortes violentas, nestes três tipos de causas. Porém, o total das mortes violentas (incluindo outros tipos de acidentes e causas mal definidas) chegou ao impressionante número de 152.013 óbitos em 2012. Foi o maior número absoluto e as maiores taxas de mortes por causas externas desde o início da série em 1980, segundo dados do levantamento do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

A mais nova edição do Mapa da Violência, coordenada pelo sociólogo Jacobo Waiselfisz, mostra que a taxa de homicídio no Brasil vinha caindo entre 2003 e 2007 – época em que a economia estava crescendo e a pobreza e a desigualdade estavam reduzindo – mas voltaram a apresentar uma tendência de alta, especialmente depois da recessão econômica de 2009. Os últimos dados disponíveis são de 2012, mas parece que a violência aumentou em 2013 e 2014, o que está exigindo medidas mais bem planejadas da sociedade e do poder público para reduzir esta “epidemia” de mortes por causas não naturais.

A taxa de óbitos por acidentes de trânsito estavam estáveis entre 2002 e 2008, apresentaram uma queda em 2009 (devido à redução da atividade econômica) e voltaram a subir entre 2010 e 2012. As taxas de suicídios, quando comparadas com os homicídios e os acidentes de trânsito, são menores, todavia, apresentaram uma tendência de subida lenta mas contínua entre 2002 e 2012. No conjunto a situação piorou e o Brasil nunca teve uma taxa global tão elevada de mortalidade por causas externas.

As principais vítimas da mortalidade por causas externas são os homens. A sobremortalidade masculina por causas violentas acontece em toda a América Latina e Caribe (ALC). Porém, no caso brasileiro a proporção de homens que morrem em relação às mulheres é muito maior do que em outros países, como por exemplo a Argentina.

Este fato pode se confirmado pela razão de sexo dos óbitos violentos. Na Argentina e no Brasil se destacaram elevadas razões de sexo dos homicídios, que chegou a mais de doze no Brasil (2003) e a quase sete na Argentina (2002). Ou seja, para cada mulher assassinada morem 7 homens na Argentina e 12 no Brasil.

 

152.013 mortes violentas em 2012 e a redução da razão de sexo no Brasil - B

 

Os outros grupos de causa apresentaram razões de sexo sempre maiores que 3, durante todo o período, fato que demonstra a sobremortalidade masculina por óbitos violentos, sobretudo no Brasil. No caso da Argentina, vale notar que justamente nos anos que ocorreram maiores volumes de homicídio (2001, 2002 e 2003) foram os anos de mais elevadas razões de sexo por essa causa de morte, o que reforça a percepção do homicídio como a causa de morte violenta com maiores disparidades por sexo em todo o período 2001 a 2009.

Com isto, cresce o superávit feminino (com redução na razão de sexo) na América Latina e Caribe, assim como no Brasil, como mostram MANETTA E ALVES (2014) em trabalho a ser apresentado no VI Congresso da Associação Latino Americana de População (ALAP) a ser apresentado em Lima, Peru, de 12 a 15 de agosto de 2014.

As mortes violentas não só reduzem a esperança de vida e a razão de sexo, mas alteram também a dinâmica da economia, da sociedade e das famílias, ao interromper de forma precoce o ciclo de vida das pessoas e ao impedir que jovens – homens e mulheres – possam melhor contribuir para o desenvolvimento social e cultural das nações. O impacto nas famílias é enorme, pois muitos pais perdem os filhos, filhos perdem os pais, esposas perdem os maridos, irmãos perdem parentes e cônjuges perdem seus cônjuges, quebrando as relações interfamiliares.

Os elevados índices de mortes por causas violentas trazem prejuízos para todos os países, especialmente para o caso do Brasil, onde são imensas as perdas de jovens por causas violentas, principalmente negros e pobres, no caso dos homicídios. As políticas públicas precisam ser mais preventivas e proativas na redução desse tipo específico de mortalidade que não é imposta por causas naturais, portanto, pode ser evitada.

O direito à vida é um direito humano básico e ninguém merece uma mortalidade precoce, ainda mais quando acontece de forma violenta e fútil.

Referência:

MANETTA, A; ALVES, JED. Mortalidade por causas violentas e impactos na composição da população:
um estudo comparado entre Brasil e Argentina (2001/2009), VI Congreso de la Asociación Latinoamericana de Población, Lima- Perú, 12 al 15 de agosto de 2014.

WAISELFISZ, Jacobo. Prévia do “Mapa da Violência 2014. Os jovens do Brasil”, FLACSO, 2012

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – NCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

Alex Manetta é Doutor em Demografia pelo NEPO/UNICAMP e pos-doutorando da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. E-mail: alexmanetta@hotmail.com

 

EcoDebate, 27/06/2014


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Povos indígenas e camponeses alimentam o mundo com menos de um quarto da terra agrícola mundial

Povos indígenas e camponeses alimentam o mundo com menos de um quarto da terra agrícola mundial

 

alimento

 

Aqueles que fazem parte das organizações camponesas e indígenas mundo afora e todos aqueles que mantêm alguma proximidade e solidariedade com suas lutas sabem que a falta de terra e a expulsão do campo são hoje processos extremamente graves. Entretanto, um número considerável de especialistas não deixa de assegurar que a maior parte da terra continua nas mãos dos camponeses e indígenas.

O GRAIN realizou uma profunda análise das informações existentes para dar-se conta do que está acontecendo, e o resultado é muito claro: mais de 90% das e dos agricultores do mundo são camponeses e indígenas, mas controlam menos de um quarto da terra agrícola mundial. E com essa pouca terra, as informações disponíveis mostram que produzem a maior parte da alimentação da humanidade. Se o campesinato e os povos indígenas continuarem a perder suas terras, estaremos diante de processos de extermínio de povos e culturas, e o mundo perderá sua capacidade de se alimentar. Precisamos urgentemente devolver a terra às mãos dos povos do campo e lutar por processos de reforma agrária e restituição territorial que viabilizem o direito a uma vida digna e o direito a existir como povos de quase metade da humanidade e, simultaneamente, permitam assegurar melhores sistemas alimentares.

A análise está publicada no sítio do GRAIN, 10-06-2014. A tradução é de André Langer.

Na abertura do Ano Internacional da Agricultura Familiar, em 2014, José Graziano da Silva, diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), derramou-se em elogios sobre a agricultura familiar e assinalou que as famílias agricultoras trabalham atualmente a maior parte das terras agrícolas mundiais (1) – a bagatela de 70%, segundo sua equipe. (2) Em outro estudo publicado por várias agências das Nações Unidas em 2008 concluiu-se que os pequenos agricultores ocupavam 60% das terras aráveis do mundo. (3) Outros estudos chegaram a conclusões parecidas. (4) Com tais cifras, não é surpresa que os temas da reforma agrária ou da restituição territorial sequer sejam mencionados.

O assassinato de um camponês no Baixo Aguán, Honduras.

(Foto: Manu Brabo / Assembleia de Cooperação pela Paz)

Se a maioria da terra de cultivo está em mãos camponesas, por que existem tantas organizações camponesas e indígenas que clamam por redistribuição de terras e reforma agrária? Porque apesar do que se diz, camponeses e indígenas não têm nem remotamente a maior parte da terra e, na realidade, em todos os lugares, o acesso à terra por parte dos povos rurais está sob ataque. De Honduras até o Quênia e da Palestina até as Filipinas, os povos foram desalojados das suas terras e vilarejos. Aqueles que resistem estão sendo presos ou assassinados. Lutas agrárias massivas na Colômbia, protestos de líderes comunitários em Madagascar, marchas nacionais de sem terra na Índia, ocupações na Andaluzia – a lista de ações é longa. Em resumo, a terra está se concentrando cada vez mais nas mãos dos ricos e poderosos e não na de camponeses e indígenas.

Em relação à produção de alimentos, ouvimos mensagens contraditórias. Nos últimos anos, cada vez mais centros acadêmicos e organismos internacionais reconheceram que mais da metade dos alimentos vem da pequena agricultura e, especialmente, da contribuição das mulheres. Mas, chegado o momento de buscar uma solução para a fome, ouve-se apenas falar em apoiar grandes concentrações de terras, a agricultura industrial e a monocultura transgênica, etc. Tudo isto porque o sistema industrial seria “mais eficiente”.

Ao mesmo tempo, nos é dito que 80% das pessoas com fome em nível mundial concentram-se em áreas rurais e muitas delas são agricultores ou trabalhadores agrícolas sem terra.

Como encontrar sentido em tudo isto? O que é verdade e o que não é? O que devemos fazer para enfrentar estes desequilíbrios? Para ajudar a responder a algumas destas perguntas, o GRAIN decidiu realizar um exame mais aprofundado destes fatos. (5) Examinamos país por país as informações disponíveis sobre a quantidade de terra realmente nas mãos do campesinato e dos povos indígenas e quantos alimentos produzem nessa terra. (6)

Os números, suas fontes e limitações e o que eles nos dizem

Ao reunir os dados, sempre que foi possível usamos as estatísticas oficiais e especialmente os censos agrícolas de cada país, complementados com o FAOSTAT (base de dados da FAO) e outras fontes da FAO quando foi necessário. Em relação ao número de pequenas propriedades ou propriedades camponesas, em geral usamos a definição que cada autoridade nacional utiliza, já que as condições destas propriedades em países diferentes e diversas regiões podem variar muito. Para os países onde não existiam definições próprias disponíveis, usamos o critério do Banco Mundial, que define como pequena propriedade ou propriedade camponesa todo estabelecimento rural menor de dois hectares.

Quando examinamos as informações, vimo-nos confrontados com várias dificuldades. Os países definem os camponeses e pequenos agricultores de diferentes formas. Não há estatísticas centralizadas sobre quem têm qual quantidade de terra. Não há bases de dados que registrem a quantidade de produção de acordo com sua origem. Além disso, fontes diferentes oferecem números muito variados sobre a quantidade de terra agrícola disponível em cada país.

Tendo isto em conta, as informações recolhidas têm significativas limitações, mas são as melhores disponíveis. O conjunto de dados que elaboramos está totalmente respaldado por referências que estão disponíveis ao público on line e fazem parte integral deste relatório. (7) No Anexo 1 fazemos uma discussão mais completa sobre os dados.

Apesar das deficiências inerentes aos dados, estamos seguros ao assinalar seis importantes conclusões:

1. Atualmente, a grande maioria dos estabelecimentos rurais do mundo é formada por pequenas propriedades camponesas e estão ficando cada vez menores.

2. Atualmente, as pequenas propriedades e os agricultores foram relegados a menos de um quarto do total da terra agrícola mundial.

3. Estamos perdendo rapidamente propriedades e agricultores em muitos lugares, ao passo que as grandes propriedades tornam-se cada vez maiores.

4. As propriedades camponesas e indígenas seguem sendo as maiores produtoras de alimentos do mundo.

5. No conjunto, os pequenos estabelecimentos são mais produtivos que os grandes.

6. As mulheres constituem a maioria do campesinato indígena e não indígena.

Muitas destas conclusões parecem óbvias, mas duas coisas nos preocupam.

Uma delas foi observar que a concentração da terra é um fenômeno mundial, inclusive naqueles países em que se supõe que os programas de reforma agrária do século XX haviam acabado com ela. Em muitos países, agora mesmo, está ocorrendo uma contra-reforma, uma espécie de reforma agrária às avessas, seja através da apropriação de terras por parte das corporações na África, do recente golpe de Estado no Paraguai impulsionado pelos empresários agrícolas, da expansão massiva das plantações de soja na América Latina, da abertura da Birmânia aos investidores estrangeiros ou da expansão para o leste da União Europeia e de seu modelo agrícola. Em todos estes processos, o controle sobre a terra está sendo usurpado dos pequenos produtores e suas famílias por elites e poderes corporativos que estão encurralando as populações em propriedades cada vez menores.

A outra fonte de alarma foi dar-nos conta de que atualmente as propriedades camponesas ocupam menos de uma quarta parte de toda a terra agrícola do mundo – ou menos de uma quinta parte, caso se excluir a China e a Índia deste cálculo. A terra nas mãos camponesas é cada vez menos, e se esta tendência persistir, não serão capazes de continuar alimentando o mundo.

Examinemos estes resultados ponto por ponto.

1. Atualmente, a grande maioria dos estabelecimentos rurais do mundo é formada por pequenas propriedades camponesas e estão ficando cada vez menores

De acordo com os dados obtidos, mais de 90% de todos os estabelecimentos rurais do mundo são “pequenos” e têm em média 2,2 hectares (Tabela 1). Caso excluirmos dos cálculos a China e a Índia – onde se localiza quase a metade das propriedades camponesas em nível mundial –, as pequenas propriedades ultrapassam os 85% de todas as propriedades de terra. Em mais de dois terços dos países do mundo, as pequenas propriedades – assim como são definidas em cada um deles – representam mais de 80% de todas as propriedades. Em apenas nove países, todos da Europa Ocidental, as propriedades camponesas são uma minoria. (8)

Devido a um conjunto de forças e fatores tais como a concentração da terra, a pressão demográfica ou a falta de acesso à terra, a maioria das pequenas propriedades foi reduzindo seu tamanho com o passar do tempo. O tamanho médio das propriedades reduziu-se na Ásia e na África. Na Índia, o tamanho médio das propriedades diminuiu mais ou menos a metade entre 1971 e 2006, aumentando o dobro o número de propriedades com uma superfície menor a dois hectares. Na China, a superfície média de terra cultivada por família caiu 25% entre 1985 e 2000 e depois começou a aumentar lentamente devido ao processo de industrialização e concentração da terra. Na África, o tamanho médio das propriedades também está diminuindo. (9) Nos países industrializados, o tamanho médio das propriedades está aumentando, mas não o tamanho das pequenas.

Tabela 1: Distribuição mundial da terra agrícola

Terra agrícola (milhões de hectares) Número de propriedades (milhões) Número de  pequenas (milhões) Pequenas propriedades como % do total dos estabele-cimentos Terra agrícola em pequenas propriedades (milhões de hectares) % da terra agrícola em pequenas propriedades Tamanho médio das  pequenas propriedades (ha)
Ásia-Pacífico 1990.2 447.6

420.3

93.9%

689.7

34.7%

1.6
China 521.8 200.6 200.2 99.8% 370 70.9% 1.8
Índia 179.8 138.3 127.6 92.9% 71.2 39.6% 0.6
África 1242.6 94.6 84.8 89.6% 182.8 14.7% 2.2
América Latina e Caribe 894.3 22.3 17.9 80.1% 172.7 19.3% 9.7
América do Norte 478.4 2.4 1.9 76.8% 125.1 26.1% 67.6
Europa 474.5 42 37.2 88.5% 82.3 17.4% 2.2
TOTAL 5080.1 608.9 562.1 92.3% 1252.6 24.7% 2.2
Notas: Todos os dados sobre a terra agrícola foram obtidas do FAOSTAT. Os dados sobre o número e tamanho dos estabelecimentos rurais foram obtidos das autoridades nacionais, cuando foi possível.

2. Atualmente, as pequenas propriedades e agricultores foram relegados a menos de um quarto do total da terra agrícola mundial

O Quadro 1 revela outra realidade crua: as pequenas propriedades somam, no total, menos de 25% da terra agrícola em nível mundial. Caso excluirmos a Índia e a China novamente, a realidade é que as propriedades camponesas controlam menos da quinta parte das terras mundiais: 17,2% para ser preciso.

  Gráfico 1: Número de pequenas propriedades
e a superfície que elas ocupam.

Índia e China merecem especial atenção devido ao grande número de propriedades e ao grande número de camponeses que vivem ali. Nestes dois países, as pequenas propriedades ainda ocupam uma porcentagem relativamente alta das terras de cultivo. Ao colocar os números num gráfico podemos ver mais claramente a disparidade entre o número de pequenas propriedades e a superfície que elas ocupam. (Gráfico 1)

Encontramos as disparidades mais extremas em mais de 30 países, nos quais mais de 70% dos estabelecimentos rurais são pequenos, mas foram relegados a menos de 10% da superfície agrícola do país. Tais casos são mostrados no Quadro 2.

Quadro 1: Os piores casos

Países onde as propriedades camponesas são mais de 70% e possuem menos de 10% da terra agrícola do país
África Argélia, Angola, Botsuana, Congo, República Democrática do Congo, Guiné, Guiné-Bissau, Lesoto, Madagascar, Mali, Marrocos, Moçambique, Namíbia e Zâmbia
América Chile, Guiana, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela
Ásia Irã, Jordânia, Kirguizistão, Líbano, Malásia, Nova Zelândia, Catar, Turcomenistão, Iêmen
Europa Bulgária, República Tcheca e Rússia

Fonte: Dados sobre distribuição de terras reunidos pelo GRAIN.

Quadro 2: Algumas palavras sobre a África

Como se pode ver na Tabela 1, descobrimos que as pequenas propriedades na África representam 90% de todas as propriedades agrícolas e, no entanto, possuem menos de 15% da superfície agrícola total. Nossos dados contradizem a afirmação frequente de que a maior parte da terra agrícola na África é trabalhada por camponeses. (10)

A colheita de milho em Narok, no Quênia: se todas as

instalações agrícolas do país tivessem a mesma produtividade

que atualmente têm as propriedades camponesas do país,

a produção agrícola do Quênia duplicaria. (Foto: Ami Vitale/FAO)

Os dados sobre quem utiliza a terra na África são difíceis de obter. A maior parte dos sistemas tradicionais de posse da terra na África foi seriamente erodida e inclusive desmantelada desde os tempos coloniais. Em muitos países a propriedade da terra passou à união ou foi concedida a empresas de agronegócios ou a chefes locais. Isto tem profundas implicações na hora de classificar a terra e dar conta de seu uso. (11) Adicionalmente, há o problema de definir o que constitui terra agrícola. Em muitos casos, os governos africanos definem “terra agrícola” como a superfície que está sendo utilizada por cultivos em um período de tempo determinado, deixando de fora grandes superfícies de terras utilizadas para pastoreio estacional e transumante. Além disso, muitas vezes se exclui a terra de pousio, aquela em sistemas de cultivos itinerantes, e a terra usada pelas comunidades que cultivam o interior de zonas de florestas. (12)

Ao contrário, a FAO, em sua definição de terra agrícola, inclui as pastagens permanentes, as savanas e as terras semeadas com cultivos perenes. Como consequência, a maioria dos censos nacionais na África registra apenas uma fração da superfície agrícola registrada pela FAO – menos da metade, no que diz respeito a toda a região. O método de estimativa da FAO é mais adequado para medir o uso da terra na agricultura, razão pela qual usamos os dados do FAOSTAT para estabelecer a quantidade de terra agrícola na África. Onde se supõe que a terra é do Estado – e não se contabiliza como cultivada ou utilizada pelos camponeses da localidade – existem as condições para a apropriação de terras por parte dos grandes agricultores e empresas, com a desculpa de que eles desenvolverão as terras não cultivadas. Por lei natural, no entanto, essas terras pertencem às comunidades locais que, muitas vezes, as utilizam de forma ativa. Uma vez que usamos, na medida do possível, os dados de censos nacionais proporcionados pelos governos para calcular a quantidade de terra nas mãos dos pequenos agricultores, é provável que tenhamos subestimado a situação na África. É bem possível que os pequenos agricultores utilizem mais que 15% da terra da região mostrada pelos nossos dados – mas o acesso das comunidades a esta terra não está garantido e podem perdê-la a qualquer momento.

3. Estamos perdendo rapidamente propriedades e agricultores em muitos lugares, ao passo que as grandes propriedades tornam-se cada vez maiores

Em quase todas as partes, as grandes propriedades foram acumulando mais terras durante a última década, expulsando muitos pequenos e médios agricultores. As estatísticas são dramáticas. As informações oficiais a que tivemos acesso estão resumidas no Quadro 3.

A situação parece especialmente dramática na Europa, onde décadas de políticas agrícolas da União Europeia significaram a perda de milhões de propriedades. Na Europa Oriental, o processo de concentração da terra começou formalmente depois da queda do muro de Berlim e a expansão da União Europeia para o leste. Milhões de agricultores foram expulsos devido à abertura dos mercados da Europa Oriental aos produtos subsidiados do Ocidente. Na Europa Ocidental, por outro lado, as políticas agrícolas, junto com os megaprojetos de infraestrutura, transporte e projetos de urbanização, tiveram um impacto desastroso. Atualmente, as grandes propriedades representam menos de 1% de todas as propriedades da União Europeia como um todo, mas controlam 20% da terra de cultivo. (13, 14) Um estudo recente da Coordenação Europeia da Via Campesina e da Aliança Mãos Fora da Terra revelou que na União Europeia as propriedades de 100 hectares ou mais, que representam apenas 3% do número total de estabelecimentos rurais, controlam atualmente 50% da terra cultivada. (15)

Quadro 3: Perda de propriedades, concentração das terras

África Apesar de que não encontramos estatísticas oficiais sobre a evolução do tamanho das propriedades e da concentração de terras na África, numerosos trabalhos de pesquisa indicam que, na grande maioria dos países, as propriedades camponesas estão se tornando cada vez menores devido ao fato de que, pela pressão demográfica, os agricultores tiveram que compartilhar as terras existentes entre mais pessoas, já que não tiveram acesso a novas terras. (16)
Ásia-Pacífico ▪ Entre 1980 e 2005, o Japão perdeu 60% das suas propriedades menores de dois hectares. (17)▪ A Austrália registra 22% menos propriedades entre 1986 e 2001 e, depois, 15% a menos entre 2001 e 2011. (18)▪ Na Nova Zelândia, o número de propriedades foi decrescendo constantemente desde os anos 1990. As propriedades mais afetadas são as de tamanho médio, ao passo que o número de estabelecimentos rurais de tamanho pequeno (menos de 40 hectares) e grande (mais de 800 hectares) aumentou aproximadamente 35% em cada caso, entre os anos 1999 e 2002. (19)▪ Na Indonésia, país que foi transformando ativamente superfícies de florestas em terras de uso agrícola, o número de pequenas propriedades aumentou em 75% entre 1963 e 1993, mas a superfície de terras em suas mãos aumentou menos de 40% já que as terras desflorestadas recentemente foram convertidas em grandes plantações de palma. Entre 1993 e 2008, o número de propriedades de menos de 0,5 hectare aumentou em 50%, o que indica que os pequenos agricultores estão sendo pressionados para dividir suas terras. (20)

▪ No Azerbaijão, 20% de todas as propriedades desapareceram entre 2000 e 2011. (21)

▪ Em Bangladesh, entre 1996 e 2005, o número de propriedades aumentou 23%, mas o número de famílias rurais sem terra disparou 44%. (22)

Europa (23) ▪ Na Europa Ocidental, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha e Noruega perderam, desde os anos 1970, cerca de 70% de todas as suas propriedades e em alguns casos a perda se acelerou.
▪ As coisas não estão melhores na Europa Oriental. De 2003 a 2010, Bulgária, Estônia, República Tcheca e a Eslováquia perderam mais de 40% das suas propriedades.▪ Somente a Polônia perdeu quase um milhão de agricultores entre 2005 e 2010.▪ Em toda a União Europeia, mais de seis milhões de estabelecimentos rurais desapareceram entre os anos 2003 e 2010, ficando o número total de propriedades quase no mesmo nível da quantidade existente em 2000, antes da inclusão de 12 novos membros, que agregaram 8,7 milhões de agricultores.
América Latina ▪ A Argentina perdeu mais de um terço das suas propriedades nas duas décadas compreendidas entre 1988 e 2008; só entre os anos 2002 e 2008 a diminuição foi de 18%. (24)▪ Na década compreendida entre 1997 e 2007, o Chile perdeu 15% de todas as suas propriedades. As propriedades de maior tamanho, com propriedades de mais de 2.000 hectares, aumentaram 30% em número, mas duplicaram seu tamanho médio de 7.000 para 14.000 hectares por propriedade. (25)▪ Na Colômbia, os pequenos agricultores perderam cerca da metade das suas terras a partir de 1980. (26)▪ No Uruguai, só de 2000 para cá o número de propriedades caiu 20% afetando, especialmente, as pequenas propriedades, que diminuem seu número em 30% e perderam 20% da terra. (27)
Estados Unidos Os Estados Unidos perderam 30% de todas as suas propriedades nos últimos 50 anos. No entanto, o número de propriedades muito pequenas quase triplicou. Entretanto, o número de propriedades muito grandes mais do que quintuplicou. (28) Em consequência, existem mais estabelecimentos rurais muito pequenos e muito grandes, mas cada vez menos propriedades de tamanho médio. (29)

É difícil obter informações oficiais sobre perdas de propriedades e concentração de terras na África e na Ásia e a situação aí é menos clara na medida em que, com frequência, estão agindo fatores e forças contraditórios. Em muitos países com altas taxas de crescimento populacional, o número de pequenas propriedades está aumentando na medida em que elas são divididas entre os filhos. Ao mesmo tempo, a concentração da terra está aumentando.

A rápida expansão de grandes propriedades produtoras de matérias-primas industriais é um fenômeno relativamente recente na África, ao passo que aconteceu durante décadas em muitos países da América Latina (por exemplo, a soja no Brasil e na Argentina) e em alguns da Ásia (por exemplo, a palma na Indonésia e na Malásia). O Anexo 2 e o Gráfico 3 oferecem antecedentes e dados para alguns poucos cultivos industriais importantes. A conclusão é indiscutível: no mundo, mais e mais terras agrícolas férteis são ocupadas por grandes propriedades que produzem matérias-primas industriais para exportação, pressionando os pequenos produtores a uma sempre decrescente participação sobre a terra agrícola mundial.

A invasão das megapropriedades

Por que a agricultura camponesa está sendo encurralada de forma crescente a uma fração cada vez menor das terras agrícolas mundiais? Existem muitos fatores e forças complexas em jogo que explicam os processos de deslocamento e de expulsão de famílias, comunidades e povos do campo. Um fator, sem dúvida, é a urbanização e a ocupação de terras agrícolas férteis pelo cimento, com a finalidade de atender às necessidades das cidades em expansão e sua demanda de transporte. Outro fator é a florescente expansão da indústria extrativa (mineração, petróleo, gás e, ultimamente, o fracking), do turismo e dos projetos de infraestrutura – e a lista continua.

A principal preocupação das grandes fazendas

corporativas, como esta plantação de soja,

é o retorno do investimento,

que se maximiza com baixos níveis de gasto.

Mesmo com as avassaladoras pressões assinaladas acima, a tremenda expansão das propriedades dedicadas à monocultura industrial é, talvez, o fator mais importante por trás da expulsão dos pequenos agricultores. As imensas demandas das indústrias de alimentos e energia estão destinando as terras agrícolas e a água da esfera de produção local de alimentos para a produção de insumos para a transformação industrial. O Gráfico 2 mostra que apenas quatro cultivos – soja, palma, colza (ou raps) e a cana de açúcar – quadruplicaram a superfície ocupada durante as últimas cinco décadas. Todos eles estão sendo cultivados principalmente em grandes propriedades industriais.

Desde a década de 1960, 140 milhões de hectares de campos e florestas foram massivamente ocupados por estas plantações. Para colocar as coisas em perspectiva: esta superfície é equivalente a aproximadamente toda a terra agrícola da União Europeia. E a invasão foi claramente se acelerando: quase 60% desta mudança no uso do solo ocorreu nas duas últimas décadas. Esta situação não leva em conta nenhuma das outras monoculturas que rapidamente estão dando lugar a megapropriedades, nem o tremendo crescimento do setor florestal industrial. A FAO calcula que só nos países em desenvolvimento, as plantações da monocultura florestal cresceram mais de 60%, de 95 milhões para 154 milhões de hectares, apenas entre os anos 1990 e 2010. Outros autores oferecem números maiores e assinalam que a tendência está em franco processo de aceleramento. (30) Muitas destas novas plantações estão invadindo florestas naturais, mas também avançam sobre terras agrícolas em mãos de camponeses.

Uma equipe de pesquisadores na Áustria analisou os fluxos comerciais dos cultivos agrícolas em relação ao uso da terra e concluiu que a superfície total de terra agrícola dedicada à produção de cultivos de exportação cresceu rapidamente – quase 100 milhões de hectares apenas nas duas últimas décadas –, ao passo que a superfície dedicada à produção de cultivos de uso doméstico permaneceu praticamente inalterada. (31)

Caso não ocorrerem mudanças drásticas nas políticas governamentais, esta agressão por parte da monocultura de matérias-primas seguramente continuará aumentando. Segundo a FAO, até 2050, a superfície mundial semeada com soja terá aumentado em uma terça parte até alcançar 125 milhões de hectares aproximadamente, a de cana de açúcar, em 28%, até 27 milhões de hectares, e a de colza (ou raps), em 16%, alcançando até 36 milhões de hectares. (32) Quanto à palma, atualmente, há 15 milhões de hectares destinados à produção de óleo comestível (não biocombustíveis) que, estima-se, duplicarão até 2050. (33) A maior parte disso acontecerá na África, Ásia e América Latina. A soja e a cana de açúcar são produzidas principalmente na América Latina e a palma na Ásia; no entanto, estes cultivos estão sendo introduzidos agressivamente na África e na América Latina como parte da onda mundial de monopolização de terras.

Gráfico 2: A invasão mundial da monocultura industrial

A esta tendência soma-se outro fenômeno recente: a nova onda de monopolização de terras. Agências como o Banco Mundial estimaram que entre os anos 2008-2010, ao menos 60 milhões de hectares de terras agrícolas férteis foram arrendadas ou vendidas para investidores estrangeiros para a execução de projetos agrícolas de grande escala, mais da metade delas na África. (34) Estes novos projetos agrícolas em grande escala desalojaram um número incalculável de camponeses, pastores e povos indígenas de seus territórios. (35) No entanto, ninguém parece ter muita clareza sobre a quantidade de terra que mudou de dono em decorrência destes negócios durante os últimos anos. Os dados, que possivelmente são centenas de milhões de hectares de terras agrícolas arrebatados das comunidades rurais, ainda não refletem nas estatísticas oficiais de que dispusemos para este estudo.

Outra forma de observar a distribuição da terra é através do Índice de Gini, uma ferramenta estatística que vai de 0 (que indica a igualdade perfeita) até 1 (que indica a desigualdade total). Por exemplo, quando este índice é calculado para a distribuição da renda, os países com índices de Gini acima de 0,5 são considerados “altamente desiguais”. O GRAIN reuniu dados do Índice de Gini para a distribuição de terras agrícolas em mais de 100 países. (36) A maioria deles tem um Índice de Gini acima de 0,5, muitos ultrapassam 0,8 e alguns, inclusive, ultrapassam 0,9. Nas Américas, todos os países para os quais encontramos informações, têm um índice acima de 0,5 e a maioria deles chega a 0,8-0,9. Na Europa, dos 25 países com informações disponíveis, apenas três têm Índice de Gini abaixo de 0,5. Quando os dados estiveram disponíveis por mais de um ano, a tendência mais comum é que o índice aumente, indicando que a desigualdade sobre as terras é crescente.

 

4. As propriedades camponesas e indígenas seguem sendo as maiores produtoras de alimentos do mundo

Mercado camponês na Turquia: o papel da mulher na

alimentação do mundo não é recolhida de forma adequada

nem pelos dados oficiais nem pelas ferramentas estatísticas.

(Foto: Projeto Mick Minnard / Suzanne’s Project)

Vivemos tempos em que a agricultura é julgada quase exclusivamente por sua capacidade de produção de matérias-primas, e se esqueceu que o seu papel principal é alimentar as pessoas. Este desvio também é introduzido nos censos nacionais, e muitos países não incluem perguntas sobre quem produz o que e com que meios. Entretanto, quando esta informação está disponível, emerge uma imagem clara: os camponeses ainda são os que produzem a maioria dos alimentos. Eles estão alimentando o mundo. O Programa para o Meio Ambiente das Nações Unidas, o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), a FAO e o Relator Especial para o Direito à Alimentação das Nações Unidas, todos estimam que a agricultura camponesa produz até 80% dos alimentos nos países não industrializados. (37)

O Quadro 5 mostra a porcentagem de alimentos produzidos pela agricultura camponesa naqueles países onde o GRAIN pôde obter dados de boa qualidade. Através de uma ampla gama de países, os dados mostram que os pequenos agricultores produzem uma porcentagem de alimentos do total nacional muito maior do que se poderia esperar da pequena porção de terras que ainda têm.

Quadro 5: Pouca terra, grande produção de alimentos

País Produção de alimentos em pequenas propriedades versus quantidade de terra que ocupam
Bielorússia Com 17% da terra, os pequenos agricultores produzem: 87,5% das frutas e bagas; 82% das batatas; 80% das hortaliças e 32% dos ovos. (38)
Botsuana As pequenas propriedades são 93% de todos os estabelecimentos agropecuários, têm menos de 8% da terra agrícola e produzem: 100% do amendoim; 99% do milho; 90% do milho miúdo; 73% do feijão e 25% do sorgo. (39)
Brasil 84% dos estabelecimentos rurais são pequenos e correspondem a 24% da área total ocupada por estabelecimentos rurais, e produzem: 87% da mandioca; 69% do feijão; 67% do leite de cabra; 59% dos suínos; 58% do leite de vaca; 50% das aves; 46% do milho; 38% do café; 33,8% do arroz e 30% dos bovinos. (40)
América Central Com 17% da terra agrícola, os pequenos agricultores produzem 50% de toda a produção agrícola. (41)
Chile Em 1997, os pequenos agricultores eram donos de 6% da terra e produziam: 51% das hortaliças; 40% dos cultivos extensivos; 26% dos cultivos industriais (beterraba açucareira, calêndula, colza); 23% das frutas e uvas; 22% dos cereais e 10% das pastagens. (42)
Cuba Com 27% da terra, os pequenos agricultores produzem: 98% das frutas; 95% do feijão; 80% do milho; 75% dos suínos; 65% das hortaliças; 55% do leite de vaca; 55% dos bovinos e 35% do arroz. (43)
Ecuador Quase 56% dos agricultores são pequenos e têm menos de 3% da terra, mas produzem: mais da metade das hortaliças; 46% do milho; mais de um terço dos cereais; mais de um terço dos legumes; 30% das batatas e 8% do arroz. (44)
El Salvador Com apenas 29% da terra, os pequenos agricultores produzem: 90% do feijão, 84% do milho e 63% do arroz, os três alimentos básicos. A agricultura de quintal, inclusive com superfícies agrícolas menores, provê 51% dos suínos, 20% das aves de quintal e a maior parte das frutas tradicionais. (45)
Hungria As pequenas propriedades controlam 19% da terra e obtêm 25% da margem bruta padrão total do setor agrícola. (46)
Cazaquistão Um pouco mais de 97% das propriedades são pequenas e operam 46% da terra, produzindo: 98% das frutas e bagas; 97% do leite; 95% das batatas; 94% dos melões; 94% das hortaliças; 90% da carne; 78% da beterraba açucareira; 73% da calêndula; 51% dos cereais e 42% dos ovos. (47)
Quênia Em 2004, com apenas 37% da terra, as pequenas propriedades produziram 73% da produção agrícola. (48)
Romênia As propriedades familiares são 99% de todas as propriedades e têm 53% da terra, com uma média de 1,95 hectare/propriedade. Elas têm: 99% das ovelhas; 99% das abelhas; 90% do gado; 70% dos suínos e 61% das aves de quintal. (49)
Rússia As pequenas propriedades têm 8,8% da terra, mas participam com 56% da produção agrícola, incluindo: 90% das batatas; 83% das hortaliças; 55% do leite; 39% da carne e 22% dos cereais. (50)
Tajiquistão As pequenas propriedades têm 45% da terra e participam com 58% de toda a produção agrícola. (51)
Ucrânia Os pequenos agricultores trabalham 16% da terra agrícola, mas produzem 55% da produção agrícola, incluindo: 97% das batatas; 97% do mel; 88% das hortaliças; 83% das frutas e bagas e 80% do leite. (52)

Se os pequenos agricultores têm tão pouca terra, como podem produzir a maioria dos alimentos em tantos países? Uma razão é que as pequenas propriedades tendem a ser mais produtivas que as grandes, como explicaremos na seção seguinte. Outro fator é esta constante histórica: as pequenas propriedades, ou propriedades camponesas, priorizam a produção de alimentos. Elas tendem a centrar-se no mercado local e nacional e em suas próprias famílias. A maior parte do que produzem não integra as estatísticas nacionais de comércio. No entanto, chega a quem necessita: os pobres rurais e urbanos.

As grandes propriedades empresariais, por outro lado, tendem a produzir matérias-primas e se centram nos cultivos de exportação, muitos dos quais não são para a alimentação humana. Estes incluem cultivos para alimento animal, biocombustíveis, produtos da madeira e outros cultivos não alimentares. O primeiro objetivo destas propriedades empresariais é o retorno sobre o investimento, que é maximizado com baixos níveis de gastos e, portanto, muitas vezes implica um uso menos intensivo da terra. A expansão de grandes plantações de monoculturas, como se discutiu anteriormente, faz parte deste quadro. As grandes propriedades empresariais muitas vezes têm, além disso, consideráveis reservas de terras não utilizadas enquanto as terras que atualmente cultivam ou pastoreiam não se esgotarem.

Os pequenos agricultores não são apenas a principal fonte de alimentos do presente, mas também do futuro. As agências internacionais de desenvolvimento estão nos advertindo constantemente para o fato de que necessitaremos o dobro de alimentos nas próximas décadas. Para isso, via de regra nos recomendam uma combinação de liberalização do comércio e dos investimentos além de novas tecnologias. Entretanto, isso criará somente mais desigualdade. O verdadeiro desafio é devolver o controle e os recursos aos camponeses e povos indígenas e anunciar políticas de apoio.

Em um estudo recente sobre pequenos agricultores e agroecologia, o Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação conclui que a produção mundial de alimentos poderia duplicar em uma década caso fossem implementadas políticas corretas relacionadas à agricultura camponesa e tradicional. Revisando a pesquisa científica disponível atualmente ele mostra que as iniciativas agroecológicas dos pequenos agricultores já produziram um aumento de 80% no rendimento médio dos cultivos em 57 países em desenvolvimento, com uma média de crescimento de 116% para todas as iniciativas africanas avaliadas. Outros projetos recentes realizados em 20 países africanos preveem uma duplicação nos rendimentos dos cultivos em um curto período de tempo de apenas três a 10 anos. (53)

Então, o que é preciso perguntar é o seguinte: quantos alimentos a mais poderiam ser produzidos, já agora, se as e os camponeses tivessem acesso a mais terras e pudessem trabalhar num contexto de políticas de apoio e não sob as condições de verdadeira guerra que enfrentam atualmente?

5. As pequenas propriedades não apenas produzem a maior parte dos alimentos, mas que, além disso, são as mais produtivas

No Brasil, 84% das propriedades são pequenas

e correspondem a 24% da área total ocupada

por estabelecimentos rurais. No entanto, produzem

a maior parte dos alimentos do país. (Foto: PNUD)

Para algumas pessoas, a ideia de que as propriedades camponesas sejam mais produtivas que as grandes propriedades pode parecer contraditória. Afinal, durante décadas nos foi dito que a agricultura industrial é mais eficiente e mais produtiva. Na realidade, é o contrário. A relação inversa entre o tamanho da propriedade e a produtividade ficou estabelecida há décadas e é chamada de “paradoxo da produtividade”. (54)

Na União Europeia, 20 países registram produções por hectare maiores em pequenas propriedades que nas grandes propriedades. Em nove países da União Europeia a produtividade das pequenas propriedades é ao menos o dobro das grandes propriedades. (55) Nos sete países em que as grandes propriedades têm uma produtividade maior que as pequenas, esta diferença é apenas marginal. (56) Esta tendência está confirmada por numerosos estudos em outros países e regiões, todos os quais mostram uma maior produtividade das pequenas propriedades. Por exemplo, nossos dados indicam que, no Quênia, se todos os estabelecimentos rurais tivessem a atual produtividade das pequenas propriedades do país, a produção do país duplicaria. Na América Central e na Ucrânia poderia quase triplicar. Na Hungria e no Tajiquistão poderia aumentar em 30%. Na Rússia, poderia ser multiplicada por seis. (57)

Embora as grandes propriedades geralmente consumam mais recursos, controlam as melhores terras, obtêm a maior parte da água para irrigação e infraestrutura, obtêm a maior parte do crédito financeiro e da assistência técnica e são aqueles para quem se projeta a maioria dos insumos modernos, têm menor eficiência técnica e, portanto, menor produtividade total. Muito disso tem a ver com os baixos níveis de uso de mão de obra nas grandes propriedades, com a finalidade de maximizar os lucros sobre o investimento. (58)

Além das medições de produtividade, as pequenas propriedades também são muito melhores na produção e utilização da biodiversidade, na manutenção da paisagem, na contribuição para as economias locais, na oferta de oportunidades de trabalho e na promoção da coesão social, para não mencionar sua real e potencial contribuição para a reversão da crise climática. (59)

6. As mulheres constituem a maioria do campesinato, mas sua contribuição é ignorada e marginalizada

O papel da mulher na alimentação mundial não foi registrado adequadamente pelos dados oficiais e os instrumentos estatísticos. A FAO, por exemplo, define como “economicamente ativo na agricultura” aquelas pessoas que obtêm ingressos monetários desta. Usando este conceito, o FAOSTAT assinala que 28% da população rural da América Central é “economicamente ativa” e que as mulheres representam apenas 12% dessa porcentagem! (60)

Esta visão distorcida não muda significativamente de país para país. No entanto, quando há dados mais específicos emerge um quadro totalmente diferente. Os últimos dados publicados sobre o censo agropecuário de El Salvador indicam que as mulheres são apenas 13% dos “produtores” (quando, na realidade, refere-se aos proprietários), muito na linha dos dados oferecidos pela FAO. (61) No entanto, o mesmo censo indica que as mulheres são 62% da força de trabalho utilizada nas propriedades familiares. A situação na Europa é melhor para as mulheres, mas ainda é muito desigual. Aí, os dados mostram que as mulheres são menos da quarta parte dos administradores de estabelecimentos, mas são quase 50% da força de trabalho. (62)

Plantação de iúca às margens do Mekong: As propriedades

camponesas tendem a dar prioridade à produção

de alimentos em vezda produção de cultivos de

matérias-primas ou de exportação. (Foto: New Mandala)

As estatísticas sobre o papel das mulheres na Ásia e na África são difíceis de obter. De acordo com o FAOSTAT, apenas 30% da população rural africana é economicamente ativa na agricultura e 40% na Ásia – da qual aproximadamente 45% são mulheres e 55% homens. (63) No entanto, estudos realizados ou citados pela FAO mostram números totalmente diferentes, indicando que nos países não industrializados 60% a 80% dos alimentos são produzidos por mulheres. (64) Em Gana e Madagascar, as mulheres representam aproximadamente 15% dos donos de estabelecimentos rurais, mas são 52% da força de trabalho familiar e constituem aproximadamente 48% dos assalariados agrícolas. (65) No Camboja, apenas 20% dos proprietários agrícolas são mulheres, mas representam 47% da força de trabalho agrícola remunerada e quase 70% da força de trabalho nas propriedades familiares. (66) Na República do Congo, as mulheres são 64% de toda a força de trabalho agrícola remunerada e quase 70% da força da produção de alimentos. (67) No Turcomenistão e no Tajiquistão, as mulheres representam 53% da população agrícola ativa. (68) Existe muito pouca informação sobre a evolução na contribuição da mulher na agricultura, mas sua participação parece estar aumentando na medida em que as migrações forçaram mulheres e crianças a assumirem a maior parte da carga de trabalho daqueles que se vão. (69)

Segundo a FAO, menos de 2% dos titulares de terras em nível mundial são mulheres, embora os dados variem amplamente. (70) No entanto, existe um amplo consenso que, inclusive onde a terra está registrada como propriedade familiar ou coletiva, os homens gozam de poderes mais amplos sobre ela que as mulheres. Por exemplo, uma situação muito comum é que os homens podem tomar decisões sobre a terra em nome deles mesmos e seus cônjuges, mas não as mulheres. Outro impedimento é que ao outorgar créditos os governos e bancos requerem que as mulheres apresentem alguma forma de autorização de seus esposos ou pais, ao passo que essa exigência inexiste no caso dos homens. Não é surpreendente, então, que os dados disponíveis mostrem que só 10% dos empréstimos agrícolas sejam concedidos a mulheres. (71)

Adicionalmente, as leis e costumes sobre a herança muitas vezes dispõem contra as mulheres. Os homens tendem a ter prioridade ou exclusividade absoluta sobre a terra herdada. Em muitos países, as mulheres nunca obtêm o controle legal sobre a terra, que passa aos seus filhos em caso de viuvez, por exemplo.

Os dados assinalados mais acima apóiam o argumento de que as mulheres são as principais produtoras de alimentos do mundo, embora sua contribuição permaneça ignorada, marginalizada e discriminada.

Revertendo a tendência: proporcionar aos pequenos agricultores os meios para alimentar o mundo

Como mostram os números, a concentração da terra está atingindo níveis extremos. Atualmente, a grande maioria das famílias tem menos de dois hectares para alimentar-se a si mesmas e a humanidade. E a quantidade de terra a que têm acesso está diminuindo. É, então, absurdo esperar que sejam capazes de se manter apenas com o que a terra lhes permite obter. A maioria das famílias camponesas necessita que alguns membros da família trabalhem fora do estabelecimento com a finalidade de poder permanecer na terra. Muitas vezes, esta situação é descrita eufemisticamente como “diversificação”, mas na realidade, isso significa aceitar baixos salários e más condições de trabalho. Para as famílias rurais de muitos países, significa migrações massivas e permanente insegurança tanto para aqueles que se vão como para os que ficam. Por outro lado, viver e trabalhar em uma pequena propriedade frequentemente consiste em longas e dificultosas jornadas de trabalho, sem férias, sem pensões, sem idade para se aposentar e frequência irregular das crianças na escola.

Se o processo de concentração da terra continuar, pouco importará quão eficientes e produtivos os trabalhadores forem, as famílias e comunidades camponesas e indígenas não serão capazes de sobreviver. A concentração das terras agrícolas férteis em cada vez menos mãos está diretamente relacionada ao número crescente de pessoas que passam fome todos os dias. Uma reforma agrária genuína não é apenas necessária, mas urgente. E deve ser feita de acordo com as necessidades das famílias e comunidades camponesas e indígenas. Uma dessas necessidades é que os territórios sejam reconstituídos e a terra seja redistribuída aos pequenos agricultores como um bem inalienável, não como um ativo comercial que se perde caso as famílias e comunidades no campo não sejam capazes de lidar com as situações de grande discriminação que devem enfrentar. As comunidades agrícolas deveriam também ser capazes de decidir por elas e para si mesmas, e sem pressão, o tipo de posse da terra que elas gostariam de praticar.

A situação que as mulheres camponesas enfrentam também requer ações urgentes. Muitas organizações internacionais e governos estão discutindo estes temas e o acesso a terra para as mulheres faz parte das Metas do Milênio. A FAO escreveu abundantes documentos sobre a matéria advogando pelo direito das mulheres sobre a terra e os recursos agropecuários. O tema também aparece de forma constante nos documentos das Nações Unidas, do Banco Mundial, da Fundação Gates, do G8 e do G20, entre outros. No entanto, o que estas instituições defendem não está em sintonia com a luta das mulheres camponesas e das organizações de mulheres; ao contrário, defendem um sistema de direitos sobre a terra baseado em títulos de propriedade individual que podem ser comprados e vendidos ou utilizados como garantia hipotecária e que possivelmente leva a uma concentração maior da terra, como aconteceu historicamente ao redor do mundo com a entrega de direitos de propriedade individuais aos homens. (72)

Não fazer nada para mudar esta situação no mundo seria desastroso para todos nós. Os camponeses e povos indígenas – que são a grande maioria dos que cultivam a terra, que tendem a ser os mais produtivos e que produzem atualmente a maior parte dos alimentos no mundo – estão perdendo a própria base dos seus meios de subsistência e da sua existência: a terra. Caso nada for feito, o mundo perderá sua capacidade para se alimentar a si mesmo. A mensagem, portanto, é clara. Necessitamos, de forma urgente e em escala nunca antes vista, revisar e relançar programas de reforma agrária e reconstituição territorial genuínos que devolvam a terra às mãos camponesas e indígenas.

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Anexo 1: Os dados
Que fontes de informação usamos?

Arroz inundado em Orissa: o tamanho médio das propriedades

na Índia reduziu-se mais ou menos pela metade entre 1971

e 2006, duplicando o número de estabelecimentos rurais que

medem menos de dois hectares.

(Foto: Biswaranjan Rout / Associated Press)

Reunindo e analisando dados sobre a distribuição das terras surgiram perguntas e problemas importantes. Em primeiro lugar, os dados sobre estabelecimentos rurais, agricultores, população rural e alimentos, muitas vezes são pouco uniformes, enviesados ou influenciados pelas realidades políticas do momento ou por quem os reúne. Em segundo lugar, os critérios de classificação e as definições são muito variáveis.

Embora as estatísticas governamentais não sejam uma exceção para estes problemas, na medida do possível usamos as fontes oficiais, na maioria das vezes proporcionadas pelos censos agropecuários nacionais, porque proporcionam os dados mais completos. Também usamos informações fornecidas pelo FAOSTAT e outras fontes da FAO e incorporamos trabalhos de pesquisa quando algum dado não estava disponível em nível nacional. Isto significou que usássemos dados de diferentes anos, em alguns casos de mais de 10 anos atrás. Se isso teve algum impacto sobre os nossos resultados, o mais provável é que se tenha superestimado a quantidade de terras em mãos camponesas, já que, com poucas exceções, a tendência mundial é que estas estão diminuindo. As fontes para cada caso são indicadas no conjunto de dados que acompanham este relatório. (73)

Fora da Europa e das Américas, a informação para aproximadamente um quarto dos países do mundo – o que representa aproximadamente 12% de toda a terra agrícola e uma porcentagem similar da população rural mundial – foi parcial ou simplesmente não estava disponível. Nesses países, estimamos o número de estabelecimentos rurais totais e de pequenas propriedades e a quantidade de terra em mãos dos pequenos produtores baseando-nos na terra agrícola total (fornecida pelo FAOSTAT), a população rural (fornecida pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas) e o tamanho médio das unidades familiares em cada país (fornecido pelo Habitat das Nações Unidas).

Qual foi a definição de pequenas propriedades utilizada?

O que é uma pequena propriedade? A superfície de terra ocupada não é o único parâmetro significativo. Um estabelecimento rural de 20 hectares pode ser muito grande na Índia, mas muito pequeno na Argentina. O acesso à irrigação, a fertilidade do solo, o tipo de produção, o clima e a topografia, são fatores que ajudam a determinar o que se considera uma pequena propriedade e o que não. Está claro que não existe uma definição universal para pequena propriedade e o GRAIN não tem nenhuma possibilidade de adotar uma. Construir ou propor uma definição que inclua tudo seria impossível, porque em muitos casos não poderia ser aplicada devido à informação disponível ou seria impossível interpretar essa informação.

Também evitamos o conceito de “propriedade familiar” que a FAO e outros estão promovendo no contexto do Ano Internacional da Agricultura Familiar. Embora possa ser um conceito significativo em muitos países, as definições usadas são tão amplas e ambíguas que poderiam esconder claras contradições, muitas vezes com consequências inesperadas. Por outro lado, poucas estatísticas oficiais fornecem dados sobre a agricultura familiar.

Desta forma, decidimos utilizar a definição de “pequenos agricultores” utilizada pelas autoridades nacionais de cada país. Quando não havia definições disponíveis, adotamos a definição do Banco Mundial (domicílios agrícolas com menos de dois hectares). Fez-se uma exceção no caso dos Estados Unidos, onde, de acordo com o critério oficial, um estabelecimento é pequeno quando vende menos de um quarto de milhão de dólares ao ano. Dado que esta definição poderia contrapor-se seriamente a outros critérios sobre o que é uma propriedade ‘camponesa’ (tais como o destino da produção ou a fonte de trabalho), adotamos a definição dada pela Universidade de Lincoln (Nebraska), que define as pequenas propriedades como aquelas que vendem até US$ 50.000 por ano.

Por conseguinte, usamos várias definições de pequenas propriedades neste relatório. Estas definições se baseiam em dados e medições tão díspares como renda bruta, vendas brutas, quantidade de terra, fonte do trabalho agrícola e tipos de recursos – ou combinações. Mesmo assim, acreditamos que este enfoque oferece a melhor aproximação da realidade, já que os critérios utilizados por cada país efetivamente representam certos aspectos das pequenas propriedades.

De que tipo de terra estamos falando?

Os agricultores, e mais ainda os camponeses, realizam um amplo leque de atividades sob diversas formas. Estas incluem manejo intensivo de cultivos hortícolas, rotação de cultivos com pastagens anuais, sistemas de agrossilvicultura, cultivos itinerantes, criação de gado, piscicultura e pastoreio, ou qualquer combinação dos anteriores.

Os governos e a FAO classificam a terra sob diferentes categorias de acordo com a utilização e a classificação das informações. A União Europeia leva em conta toda a terra do estabelecimento rural sem se importar como está sendo cultivada ou utilizada. O mesmo acontece nos Estados Unidos, Brasil, Argentina e Índia. Na África, no entanto, muitos governos excluem das estatísticas as terras comuns e as áreas de pastagens. Uma vez mais, empregam-se diferentes critérios e não há maneira de selecionar ou desagregar os dados (por exemplo, terra cultivada versus terra agrícola total) que governos ou outras instituições reuniram numa única rubrica.

A FAO oferece informações sobre terra agrícola total para quase todos os países do mundo, inclusive para aqueles que não têm dados censitários disponíveis e define terra agrícola total como a soma das seguintes superfícies:

  • Terra arável – terra de cultivos temporários, pastagens temporárias para corte ou pastoreio, terra de hortas comerciais e caseiras e terras de pousio temporários (menos de cinco anos).
  • Cultivos permanentes – terra cultivada com cultivos de longo prazo que não têm necessidade de ser replantados cada ano (como café e cacau); terra de árvores e arbustos produtores de flores, como rosas e jasmins; e viveiros (exceto aqueles para espécies florestais, que são classificados como “floresta”); e,
  • Pastagens e pastos permanentes – terra utilizada permanentemente (cinco ou mais anos) para o crescimento de espécies forrageiras herbáceas, quer sejam cultivadas ou silvestres (pastagens naturais ou terras de pastoreio). (74)

Para calcular o total da terra agrícola de cada país, usamos a definição mais inclusiva da FAO e sua informação associada.

Ausências: os sem terra, os produtores urbanos de alimentos, as indústrias extrativas e a monopolização de terras

A nossa pesquisa deixou de fora numerosas realidades, seja porque estavam além do alcance do estudo ou porque não encontramos informações suficientes. Uma omissão importante é a situação das e dos camponeses e trabalhadores sem terra. A falta de terra é uma realidade importante e está aumentando em muitos países, como atesta claramente o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o maior movimento social do Brasil. Também não incluímos em nossa análise os produtores urbanos de alimentos, um fator de crescente importância na produção de alimentos em nível mundial. Muito poucos países proporcionam dados sobre eles, e nós não pudemos reunir informações significativas sobre sua situação no mundo.

Através do nosso trabalho e dos nossos colaboradores, o GRAIN está muito consciente de que a urbanização, a indústria extrativa, as represas hidroelétricas e muitos outros megaprojetos estão avançando cada vez mais sobre terras agrícolas, terras de florestas, fontes de água, comunidades agrícolas e territórios de povos indígenas. Estes estão afetando massivamente a disponibilidade de terra agrícola no mundo. Embora seja verdade que sua rápida expansão é relativamente recente, não foram adequadamente registrados nas estatísticas sobre terra agrícola.

Finalmente, também omitimos em nossos cálculos o recente fenômeno da monopolização de terras que está transferindo para as mãos das grandes corporações milhões de hectares de terras agrícolas férteis e privando dezenas de milhares de comunidades agrícolas de seus meios de subsistência. O atual processo de monopolização de terras decolou apenas na última década e ainda não foi registrado pelas estatísticas oficiais.

Notas:

 

1) José Graziano da Silva, discurso de abertura do Fórum Mundial sobre Agricultura Familiar, Budapeste, 5 de março, 2014.

 

2) Sarah K. Lowder, Jakob Skoet e Saumya Singh, “What do we really know about the number and distribution of farms and family farms in the world?“ Documento referencial para El Estado de los Alimentos y la Agricultura 2014. FAO, abril 2014. Dados citados na página 8. Ver também: FAO, “Family farmers – feeding the world, caring for the earth”, 2014.

 

3) Beverly D. McIntyre (editor), IAASTD “International assessment of agricultural knowledge, science and technology for development: global report”, 2008, página 8.

 

4) Wenbiao Cai, professor da Universidade de Winnipeg, assinala em vários estudos que as pequenas propriedades dão conta da maioria da terra agrícola nos países não industrializados. Outros exemplos incluem partidários dos movimentos de pequenos agricultores como Miguel Altieri, que assinala que as pequenas propriedades na América Latina “ocupam 34,5% do total da terra cultivada”, ou o Greenpeace, que assinala que “os agricultores em pequena escala possuem a maior parte da terra agrícola mundial”.

 

5) Várias pessoas se deram o trabalho de revisar e comentar os primeiros rascunhos deste relatório ou nos ajudaram em alguns problemas. Suas contribuições foram muito úteis e estamos muito agradecidos a eles. Entre eles estão: Maria Aguiar, Valter Israel da Silva, Thomas Kastner, Carlos Marentes, Pat Mooney, Ndabezinhle Nyoni, Jan Douwe van der Ploeg, Mateus Santos, Chris Smaje e Liz Aldin Wiley.

 

6) Quando falamos de agricultores ou camponeses neste relatório, queremos dizer produtores de alimentos, incluindo aqueles que criam gado – como vaqueiros e pastores, pescadores, caçadores e coletores.

 

7) El conjunto de datos recopilados por GRAIN pueden ser descargados desde aquí.

 

8) Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Luxemburgo, Holanda e Noruega.

 

9) Peter Hazell, “Is small farm led development still a relevant strategy for África and Asia?”, 2013.

 

10) Por exemplo, a FAO afirma em “Smallholders and family farmers”, que “80% da terra agrícola na África Subsaariana e na Ásia é administrada por pequenos proprietários”, 2012.

 

11) A discussão em alguns casos de países específicos pode ser vista em “Land Tenure and Administration in África: Lessons of Experience and Emerging Issues” escrito por Lorenzo Cotula, Camilla Toulmin e Ced Hesse; em “Paradigms, processes and practicalities of land reform in post-conflict Sub-Saharan África” de Chris Huggins y Benson Ochieng; em “Land tenure and violent conflict in Kenya in the context of local, national and regional legal and policy frameworks” de Judi Wakhungu, Elvin Nyukuri y Chris Huggins; em “Land reform in Angola: establishing the ground rules” de Jenny Clover, como também em “Land reform processes in West África: a review”, de Sahel and West África Club Secretariat.

 

12) Este é o caso, por exemplo, de Botsuana (2011 Annual Agricultural Survey Report), que não contabiliza a terra utilizada para a criação de gado, embora os rebanhos de bovinos e cabras somem mais de quatro milhões de cabeças. É também o caso do Banco Mundial, que assinala que “se exclui a terra abandonada em decorrência do cultivo migratório” da sua definição de terra agrícola.

 

13) EUROSTAT, Estadísticas específicas 18/2011, “Large farms in Europe”. (pdf)

14) A menos que se indique o contrário, os dados sobre os países da União Europeia são baseados na Pesquisa sobre Estrutura Agrícola de 2007, uma vez que os dados para 2010 não nos permitiram realizar os cálculos necessários.

 

15) ECVC e HOTL, “Land concentration, land grabbing and people’s struggles in Europe”, 17 de abril, 2013. (pdf)

 

16) O. Nagayets, “Small farms: current status and key trends”, 2005.

 

17) Escritório de Estatísticas, Governo do Japão, “Agriculture”.

 

18) Governo da Austrália, “Australian farmers and farming”, dezembro de 2012.

 

19) Stephanie Mulet-Marquis e John R. Fairweather, “New Zealand farm structure change and intensification”, Lincoln University, 2008.

 

20) I Wayan Rusastra, “Land economy for poverty reduction: Current status and policy implications”; Capsa Palawija News, Abril 2008; Censo Agrícola da Indonésia 1963, 1993, 2003. Principais Resultados; Lani Eugenia, “Significance of family farming in the Asian Region: The Indonesian agriculture sector”.

 

21) Comitê Estatístico Estatal do Azerbaijão. “The Agriculture of Azerbaijan. Statistical yearbook 2012”.

 

22) “Informe preliminar sobre a pesquisa de amostra agrícola 2005, Bangladesh Bureau of Statistics, 2005.

 

23) Todos os dados para os países da União Europeia foram obtidos do EUROSTAT, http://tinyurl.com/kbmom54 e http://tinyurl.com/l9aqu39. Os dados específicos para cada país podem ser encontrados na busca “farm structure survey [name of country]”.

 

24) Ver as estatísticas do governo argentino em http://www.indec.gov.ar/default_cna.htm e http://www.indec.gov.ar/censoAgro2008/cna08_10_09.pdf

 

25) Governo do Chile, Censo Agrícola.

 

26) A.M. Ibañez. “La concentración de la propiedad rural en Colombia: evolución 2000 a 2009, desplazamiento forzoso e impactos sobre el desarrollo económico” (PRIO, Policy brief 5/2009); Oxfam. “Divide and purchase. How land is being concentrated in Colombia“; Y. Salinas. “El caso de Colombia”. Estudo sobre a monopolização de terras encarregado pelo Escritório Regional para a América Latina e o Caribe da FAO.

 

27) Governo do Uruguai, “Censo 2011” e “Censo general agropecuario 2000”.

 

28) Quadros com dados governamentais pode ser encontrados em http://www.agcensus.usda.gov/Publications/index.php.

 

29) James MacDonald et al, “Farm size and the organisation of US crop farming” Economic Research Report No. 152, USDA, Agosto de 2013.

 

30) Ver World Rainforest Movement, “An overview of industrial tree plantations in the global South: conflicts, trends, and resistance struggles”, 2012, para uma discussão sobre o tema.

 

31) EJOLT, “The many faces of landgrabbing”, EJOLT briefing 10, 2014.

 

32) Nikos Alexandratos e Jelle Bruinsma, “World agriculture towards 2030/2050. The 2012 revision“, FAO, 2012.

 

33) Corley, R.H.V. “How much palm oil do we need?” Environmental Science & Policy 12: 134-139. (2008)

 

34) Outras instituições como a International Land Coalition-led Land Matrix señalan una cifra de 203 millones de hectáreas, pero en un periodo de diez años (2000-2010). (pdf)

 

35) Ver http://farmlandgrab.org para examinar vários relatórios publicados e notícias diárias.

 

36) Para ver os dados sobre distribuição da terra país por país, reunidos pelo GRAIN ver, http://www.grain.org/e/4929.

 

37) Ver, por exemplo, Kanayo F. Nwanze, IFAD. “Small farmers can feed the world”; UNEP, “Small farmers report”; FAO, “Women and rural employment fighting poverty by redefining gender roles” (Policy Brief 5).

 

38) Comitê Nacional de Estatísticas da República da Bielorússia, “Agriculture of the Republic of Belarus”, 2013.

 

39) Estatísticas de Botsuana, “Stats brief”, 2009 e 2010. Pesquisa Anual Agropecuária, resultados preliminares.

 

40) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, “Censo Agropecuario 2006”.

 

41) Eduardo Baumeister. “Características económicas y sociales de los agricultores familiares en América Central”, INCEDES, 2010.

 

42) Instituto Nacional de Estadísticas de Chile, “Censo Agropecuário 1997”.

 

43) Braulio Machin Sosa et al., ANAP-Via Campesina, “Revolución agroecológica, resumen ejecutivo”.

 

44) Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, Censo Nacional Agropecuário 2000, http://tinyurl.com/ngvm5te

 

45) IV Censo Agropecuário 2007-2008. Ministério da Economia de El Salvador. http://tinyurl.com/qatfm5y

 

46) Escritório Central Húngaro de Estadísticas, “Total Standard Gross Margin of farms engaged in agricultural activity by type of farming and size class, 2007” 2/2 (Million HUF).

 

47) Agência de Estatísticas da República do Cazaquistão, Anuário Estatístico “Kazakhstan in 2009”.

 

48) Hans P. Binswanger-Mkhize et al (eds). “Agricultural land redistribution. Toward greater consensus”, 2009.

 

49) Instituto Nacional de Estatísticas, nota de imprensa No. 149 de 2 de julho de 2012, “General agricultural census 2010”.

 

50) Rússia em Cifras 2011. Serviço Estatal Federal de Estatísticas da Federação Russa.

 

51) Universidade Hebraica de Jerusalém. Departamento de Pesquisa em Economia Agrícola, Economia e Administração. Discussion paper No. 16.08. “The economic effects of land reform in Central Asia: The case of Tajikistan”.

 

52) Serviço Estatal de Estatísticas da Ucrânia. “Main agricultural characteristics of households in rural areas in 2011”.

 

53) Olivier de Schutter, “Agroecology and the Right to Food”, Relatório apresentado na 16ª Sessão do Conselho para os Direitos Humanos das Nações Unidas [A/HRC/16/49], 8 de março, 2011.

 

54) Ver, por exemplo: Michael Carter, “Identification of the inverse relationship between farm size and productivity: an empirical analysis of peasant agricultural production”; IFAD, “Assets and the rural poor. Poverty Report 2001”; Giovanni Andrea Cornia, “Farm size, land yields and the agricultural production function: An analysis for fifteen developing countries;” H.N. Anyaegbunam, P.O. Nto, B.C. Okoye and T.U. Madu, “Analysis of determinants of farm size productivity among small-holder cassava farmers in south east agroecological zone, Nigeria”.

 

55) Os nove países são: Áustria, Bulgária, Grécia, Itália, Holanda, Portugal, Romênia, Espanha e Reino Unido. Ver “Large farms in Europe”, Eurostat Statistics en Focus 18/2011.

 

56) República Tcheca, Estônia, Irlanda, Letônia, Lituânia, Eslováquia e Suécia. Ibid.

 

57) Estes dados foram obtidos extrapolando, para 100% da terra agrícola, a produtividade das pequenas propriedades assinaladas nas fontes do Quadro 4.

 

58) Jan Douwe van der Ploeg, University of Wageningen, comunicação pessoal, 25 de março de 2014.

 

59) Para uma discussão sobre sistemas alimentares e mudança climática, ver: GRAIN “Food and climate change, the forgotten link”, setembro, 2011.

 

60) FAOSTAT

 

61) Gobierno de El Salvador.

 

62) EU Agricultural Economic Briefs. “Women in EU agriculture and rural areas: hard work, low profile“, Brief No. 7, junho de 2012.

 

63) FAOSTAT. Busca realizada com as palavras “resources” e “population”, usando séries anuais de tempo.

 

64) FAO, “Women and rural employment. fighting poverty by redefining gender role“, 2009.

 

65) Ministério da Alimentação e Agricultura de Gana. Agriculture in Ghana. Facts and Figures 2010. Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca de Madagascar. Recenseamento da Agricultura. Campanha Agrícola 2004-2005.

 

66) FAO e Instituto Nacional de Estatísticas do Camboja. National Gender Profile of Agricultural Households, 2010.

 

67) IFAD. República do Congo. Country strategic opportunities programme. 2009 EB 2009/98/R.20.

 

68) FAO, Equipe de Gênero para a Europa e a Ásia Central, “The crucial role of women in agriculture and rural development”.

 

69) Organização Internacional para a Migração. “Rural women and migration“; B. Dodson et al. “Gender, migration and remittances in Southern África“; A. Datta and S.K. Mishra. “Glimpses of women’s lives in rural Bihar: impact of male migration”.

 

70) Cheryl Doss et al. “Gender inequalities in ownership and control of land in África. Myths versus reality”.

 

71) Ver “Infographic on gender, food security and climate change”.

 

72) Sobre este tema, para exemplos e discussão, ver: Celestine Nyamu-Musembi in “Breathing Life into Dead. Theories about Property Rights: de Soto and Land Relations in Rural África”. Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento, 2006.

 

73) A informação sobre a distribuição da terra compilada por GRAIN pode ser obtida aquí.

74) Ver glossário do FAOSTAT.

 

 

 

(EcoDebate, 25/06/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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Observações sobre os Fenômenos El Niño e La Niña.

Observações sobre os Fenômenos El Niño e La Niña, artigo de Roberto Naime

 

El Niño 1

 

El Niño 2

 

[EcoDebate] Os efeitos do fenômeno El Niño no Brasil produzem prejuízos em algumas regiões e benefícios em outras. Embora os danos para a agricultura sejam maiores. A região sul é a mais afetada. Em cada episódio, ocorre na região sul, um aumento da pluviosidade, principalmente na primavera, fim de outono e começo de inverno. O acréscimo de quase 150% de chuvas em relação aos índices normais atrapalha a colheita. As temperaturas também mudam na região sul e sudeste, com o inverno sendo amenizado e elevação das temperaturas.

As consequências do Fenômeno El Niño sobre as temperaturas é benéfico para evitar a ocorrência de geadas com intensidade suficiente para gerar danos para as culturas. Em compensação, ocorrem diminuições dos índices pluviométricos na Amazônia e no Nordeste, aumentando as dificuldades com as secas que duram até 2 anos em períodos de El Niño. As secas não se limitam apenas ao sertão, ocorrendo déficits de chuvas inclusive no litoral.

O fenômeno La Niña é o oposto, caracterizando-se pelo resfriamento anômalo da superfície do mar, na região equatorial do centro e leste do Pacífico. Isso eleva a pressão da região, com a geração de ventos alísios mais intensos. A duração do fenômeno também é de 12 a 18 meses.

Este fenômeno meteorológico produz menos danos que o El Niño. Como consequência de La Niña as frentes-frias que atingem o sul do Brasil tem sua passagem acelerada e se tornam mais intensas. Como sofrem menor dissipação no sul e sudeste, muitas vezes atingem o Nordeste.

Quando isto ocorre, o sertão e o litoral baiano e alagoano são afetados por aumentos das chuvas, com aumento da pluviosidade também no norte e leste da Amazônia.

Na região centro-sul pode ocorrer estiagens, com queda dos índices pluviométricos entre setembro e fevereiro, com a chegada mais intensa de massas de ar polar, gerando antecipação do inverno e grandes quedas de temperatura já no outono. No último episódio de La Niña, fortes massas de ar polar, atingiram a região sul, causando neves nas áreas serranas e geadas já no mês de abril. Neves geralmente ocorrem após o mês de maio, e as geadas mais ao norte, costumam ocorrer só a partir de junho.

O efeito estufa apresenta uma situação mais complexa. Em longo prazo, o planeta deve irradiar energia para o espaço na mesma proporção em que ocorre a absorção da energia solar na forma de Radiações Eletromagnéticas (REM). A energia solar chega no intervalo das ondas curtas do espectro de radiações eletromagnéticas. Parte desta radiação é refletida e repelida pela superfície terrestre e pela atmosfera. Uma parte da radiação passa pela atmosfera, para aquecer a superfície terrestre. O planeta se livra desta energia, mandando de volta para o espaço na forma de irradiação infravermelha de ondas largas.

A maior parte desta irradiação no intervalo do espectro eletromagnético do infravermelho que a terra emite é absorvida pelo vapor de água, dióxido de carbono e outros gases, de efeito estufa, existentes na atmosfera.

Desta maneira, estes gases impedem que a energia da terra seja dissipada no espaço. Ao contrário, processos interativos, envolvendo a radiação eletromagnética, as correntes de ar, a evaporação, a formação de nuvens e as chuvas, transportam essa energia para altas esferas do interior da atmosfera, onde a energia se irradia para o espaço. Este processo lento e indireto permite a manutenção do aquecimento do planeta terra, que sem este fenômeno, seria um lugar frio e sem vida, desolado e estéril como Marte.

Elevando de forma exagerada a emissão de gases, aumenta-se a capacidade da atmosfera de absorver a radiação no espectro do infravermelho. Esta emissão exagerada de gases produz o chamado efeito estufa, que está perturbando a forma que o clima mantém este delicado equilíbrio entre a energia que entra e que sai do planeta.

A duplicação da quantidade de gases de efeito estufa, que se projeta para este século, reduziria a emissão de irradiações para o espaço em até 2%. Isto exigiria um efeito de tamponamento do clima, que poderia ser muito auxiliado pela redução do consumo de hidrocarbonetos, por exemplo.

Os efeitos das emissões de gases estão alterando o equilíbrio do sistema, e algo necessita ser realizado para atenuar este impacto. O protocolo de Kyoto é uma medida nesta direção.

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

EcoDebate, 24/06/2014


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Dubai vai de entreposto a parada obrigatória

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Dubai vai de entreposto a parada obrigatória

Jad Mouawad – THE NEW YORK TIMES

Em uma década, país-cidade dos Emirados Árabes Unidos tem seu aeroporto recebendo mais voos que o tradicional londrino Heathrow

 Os artifícios para atrair atenção e passageiros – uma rifa de US$ 1 milhão, a chance de ganhar um Porsche 911, ou um festival de compras com duração de um mês – ainda estão lá, mas não são mais necessários. Viajantes de todo o mundo já não precisam ser atraídos para este antigo e árido entreposto comercial na borda do Golfo Pérsico.

De seu início humilde como parada de reabastecimento para viajantes sem nenhum desejo de permanecer num canto inóspito da Península Arábica, o aeroporto de Dubai superou recentemente o Aeroporto Heathrow em Londres como o centro aeroportuário internacional mais movimentado do mundo. Há apenas uma década, Dubai figurava como o 45.º maior aeroporto internacional.

Dubai vai de entreposto a parada obrigatória
Há uma década, Dubai figurava como o 45.º maior aeroporto internacional
Frank Bienewald/LightRocket-NYT

A ascensão de Dubai como moderna encruzilhada ligando o Oriente ao Ocidente – com o nome de sua companhia aérea local, Emirates, adornando as camisas de alguns dos melhores times de futebol do mundo e patrocinando carros de Fórmula 1 e o torneio Aberto de Tênis dos Estados Unidos – é um conto de globalização e ambição, e uma aposta audaciosa no futuro das viagens aéreas.

Com poucos recursos naturais, petróleo quase só para o seu próprio gasto, somente 168 mil habitantes e temperaturas médias acima de 38 graus celsius de maio a setembro, Dubai fez uma aposta arriscada.

Mas o que falta a Dubai em clima é mais do que compensado pela geografia. Situado a oito horas de voo de dois terços da população mundial, Dubai criou um centro aeroportuário global que pode conectar virtualmente quaisquer duas cidades do mundo com apenas uma parada. E apesar da última recessão econômica, ele fez grandes planos para construir um segundo aeroporto que será muito maior que o existente na próxima década.

Desde os anos 80, quando seus governantes decidiram transformar a cidade num destino turístico, os maiores empreendimentos de Dubai incluem dois dos maiores shopping centers do mundo, o edifício mais alto do mundo, Burj Khalifa, medindo 815 metros, e ilhas artificiais em forma de palmeiras que podem ser vistas do espaço.

Mas a pedra angular da estratégia foi criar uma nova companhia aérea e construir uma infraestrutura de aviação em torno dela para sustentar seu crescimento. “A companhia é a peça chave do sucesso de Dubai”, disse Jim Krane, um especialista em Golfo no Baker Institute for Public Policy da Universidade Rice, e autor de City of Gold: Dubai and the Dream of Capitalism.

A Emirates foi criada em 1985 com uma doação de US$ 10 milhões do governo de Dubai e um par de aviões Boeing 727. O catalisador foi uma decisão da Gulf Air, a principal empresa de transporte da região na época, de reduzir seus voos semanais entre os Emirados Árabes Unidos e o Paquistão em razão de uma disputa sobre direitos de tráfego.

A empresa cresceu rapidamente graças a políticas de céu aberto que favoreceram o desenvolvimento do setor de aviação e um ambiente empresarial favorável a estrangeiros.

Também ajudou o fato de o chairman e presidente da Emirates, o xeque Ahmed bin Saeed al-Maktoum, ser também o chairman da Dubai Airports, presidente da Autoridade de Aviação Civil de Dubai e chairman da Flydubai, uma empresa aérea com preços econômicos. Ele é também o tio do atual governante de Dubai, xeque Mohammed bin Rashid al-Maktoum.

Dubai recebeu 67,3 milhões de passageiros nos 12 meses até fevereiro, de acordo com o Airports Council International, saltando pela primeira vez à frente dos 66,9 milhões de viajantes internacionais de Heathrow e os 59,9 milhões de Hong Kong. O aeroporto fica atrás do Hartsfield-Jackson Atlanta International Airport e seus 95 milhões de passageiros, embora muitos destes sejam viajantes domésticos. Com a taxa de crescimento de Dubai, ele deverá superar Atlanta dentro de alguns anos.

Águas superficiais e subterrâneas e meio ambiente.

Águas superficiais e subterrâneas e meio ambiente, artigo de Roberto Naime

 

Ilustração de Osvaldo Ferreira Valente

[EcoDebate] As águas superficiais são representadas pelas drenagens e rios que coletam as águas pluviais, originadas pelas chuvas, também denominadas águas freáticas.

Em hidrologia, a ciência que estuda as águas superficiais, é bem conhecida a equação denominada balanço hídrico. Esta contabilidade representa a quantidade de chuva de uma determinada região, que representa a disponibilidade hídrica, subtraída das águas que sofrem infiltração nos solos e/ou evapotranspiração.

As águas que sofrem escoamento superficial, denominado “run off” representam as reservas hídricas superficiais disponíveis. As águas superficiais das bacias e sub-bacias hidrográficas, atualmente são gerenciadas pelos comitês de bacias hidrográficas e se destinam prioritariamente às necessidades do consumo humano, servindo para finalidades agrícolas e industriais posteriormente.

Conforme as características físicas dos solos e rochas subjacentes da bacia hidrográfica considerada, temos a interação entre os rios e os lençóis freáticos ou subterrâneos adjacentes. Considerando principalmente a variável permeabilidade, que é a capacidade das águas de migrarem em um determinado meio e medida em cm/s, temos os regimes fluviais.

Em geral, na estação quente as águas migram dos rios para o interior dos solos e das rochas, caracterizando o regime influente. Dependendo das demais variáveis, evidentemente.

Nas estações de alta pluviosidade, as águas tendem a realimentar os rios a partir dos solos e rochas, constituindo o denominado regime efluente.

Este fenômeno comprova mais uma vez a complexidade e a inter-relação de todas as variáveis dos meios físico, biológico e antrópico, pois a água com suas características de solvente universal, é o grande promotor das disseminações da poluição, através de ocorrências conhecidas como plumas de contaminação.

As águas subterrâneas são aquelas que são armazenadas no interior dos maciços rochosos. Podem passar pelo estágio freático ou serem dirigidas diretamente para o interior das rochas.

As rochas que armazenam as águas subterrâneas são conhecidas como aquíferos e as rochas que deixam fugir as águas subterrâneas denominam-se aquífugos.

Existem 2 tipos de aquíferos principais entre as rochas: os aquíferos denominados primários ou por poros e os secundários ou por fraturas e diáclases.

A melhor expressão dos aquíferos primários são as rochas sedimentares psamíticas, os arenitos e conglomerados. Para os leigos arenitos também são conhecidos como “lage de grês”. Estas rochas chegam a exibir até 40% de porosidade e armazenam grande quantidade de água, que percola livremente na rocha, produzindo poços tubulares profundos com grande capacidade de vazão.

Aquíferos secundários ou por fraturas, ocorrem em todo tipo de rocha, tem menor capacidade de armazenamento e consequentemente geram poços tubulares profundos com menor produção de água.

As águas subterrâneas por definição são aquelas que estão armazenadas em rochas, e originalmente são geradas pelas fontes pluviométricas, mas frequentemente sofrem influência de outras águas:

  1. Águas conatas: são as águas que ficam armazenadas com os sedimentos desde a sua deposição e acumulação, após os processos diagênicos e ficam no interior das rochas sedimentares, como resultado da diagênese exibem frequente contaminação com sais ou outros elementos químicos e podem tirar a potabilidade das águas subterrâneas;

  2. Águas juvenis: representam os fluidos que sobram das cristalizações dos magmas, seja em condições plutônicas ou em condições vulcânicas e por isso são águas ricas em metais e outros componentes magmáticos, principalmente aqueles que não conseguem entrar nos minerais em formação, tanto por tamanho grande como pequeno do raio iônico, que impede as substituições diadóxicas, como por eletronegatividade ou outra característica química que imponha restrição.

As águas subterrâneas que sofrem contaminação com águas conatas, frequentemente são salobras e apresentam dureza (quantidade de sais e carbonatos) elevada, apresentando problemas para utilização em caldeiras.

As águas subterrâneas contaminadas por águas juvenis originam as denominadas águas minerais, de diversas naturezas, como fluoretadas, bicarbonatadas, etc.

Para muitas pessoas, com o decorrer do tempo reduz-se a capacidade de filtração do sangue pelos rins e podem ser desenvolvidos cálculos ou pedras renais. No organismo de alguns, a composição química da água mineralizada pode ser um dos motivos. Para outros, são segregações cálcicas, geradas pelo consumo de leite e derivados.

Por isso, atualmente, é muito incentivado o consumo de águas minerais ditas “leves” ou com baixo teor de constituintes mineralizantes, que podem ser maléficos em quantidade inapropriada para consumo humano ou para certos tipos de organismos ou condições devidas à idade cronológica.

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

EcoDebate, 10/06/2014


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Conhecendo a geomorfologia e suas influências ambientais.

Conhecendo a geomorfologia e suas influências ambientais, artigo de Roberto Naime

 

[EcoDebate] A geomorfologia é a ciência que estuda o relevo da superfície da terra, que está intimamente relacionada com o substrato rochoso existente e os processos pedogênicos atuantes superficialmente, bem como as ações das águas superficiais e subterrâneas.

A natureza das rochas determina 3 diferentes tipos de domínios geomorfológicos:

  1. Escudos antigos ou maciços cristalinos: representam imensos blocos de rochas antigas de natureza cristalina, estes escudos são constituídos por rochas magmáticas, formadas em eras pré-cambrianas (há mais de 600 milhões de anos) ou por rochas sedimentares e ígneas que foram transformadas em rochas metamórficas. No Brasil, os escudos antigos correspondem a 36% da área do território, sendo representados pelo Escudo das Guianas a norte da planície amazônica e o Escudo Brasileiro na porção centro-oriental brasileira;

  2. Bacias Sedimentares: são depressões relativas, preenchidas por sedimentos que se transformaram em rochas sedimentares após sofrer aumento de pressão e temperatura por soterramento, caracterizando processos diagênicos. Frequentemente são associados com a presença de hidrocarbonetos e correspondem a 64% do território do Brasil. Destacam-se a Bacia Amazônica, a Bacia do Meio Norte e a Bacia do Paraná, além das bacias do São Francisco, Pantanal e outras bacias menores;

  3. Dobramentos Modernos: são estruturas formadas por rochas magmáticas e sedimentares pouco resistentes, transformadas em rochas metamórficas, que foram afetadas por forças tectônicas em períodos recentes, formando as cadeias montanhosas ou cordilheiras. Não ocorrem em território brasileiro que tem apenas dobramentos antigos incluídos em seus escudos cristalinos. Exemplos são os Andres, as Montanhas Rochosas e os Alpes e o Himalaia que são dobramentos modernos. Nestas regiões são frequentes os terremotos e as atividades vulcânicas. Representam as maiores elevações da superfície terrestre. Os dobramentos resultam das forças tectônicas atualmente em ação, que separam e afastam os continentes e as falhas ou quebramentos da crosta terrestre, resultantes das pressões exercidas horizontalmente e verticalmente pelas forças tectônicas, que rompem as rochas formando planos que são as falhas onde ocorre a dissipação das tensões.

A expansão dos estudos geomorfológicos no Brasil é recente, devido à própria valorização das questões ambientais. A análise geomorfológica se aplica diretamente na análise ambiental.

No Brasil, as primeiras referências geomorfológicas são do século XIX, quando os naturalistas procuravam compreender o meio ambiente.

O conhecimento geomorfológico no Brasil é recente e incorpora os conceitos da Teoria Geral dos Sistemas, aplicando ideias relativas ao equilíbrio dinâmico.

A geomorfologia foi muito valorizada na execução do Projeto Ardam Brasil, a partir de 1973, em que levantamentos envolvendo geologia, geomorfologia, solos, vegetação e uso dos solos, recobriram todo país formando um total de 40 volumes (SEPLAN/IBGE, 1986).

O relevo apresenta saliências e depressões locais, no interior dos grandes domínios geomorfológicos já descritos, que são assim descritos:

  • Montanhas: são grandes elevações de terreno formadas por ação das forças tectônicas já apresentadas e amplamente discutidas. As montanhas se originam a partir de dobras, falhas ou vulcões, e podem ser antigas como a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira, ou recentes como a Cordilheira dos Andes, Alpes ou Himalaia. No Brasil pode se afirmar que não existem montanhas recentes, apenas morros recentes ou montanhas antigas;

  • Planaltos: superfície mais ou menos plana e elevada em relação às áreas adjacentes, formadas por rochas ígneas, em geral vulcânicas, sendo delimitada por escarpas, onde o processo de erosão supera a deposição;

  • Planícies: superfície plana e deprimida de natureza sedimentar, onde predominam os processos deposicionais sobre a erosão. Podem ser costeiras (no litoral) ou continentais (no interior dos continentes);

  • Depressões absolutas: porções de relevo mais baixas que o nível do mar, não existem no Brasil;

  • Chapada: planalto de rochas sedimentares, apresentando topografia tabular;

  • Cuestas: são formas assimétricas de relevo, formadas pela sucessão alternada de camadas rochosas com resistências diferentes em relação à erosão;

  • Depressões Periféricas: são áreas deprimidas formadas pelo contato entre os terrenos sedimentares e os Planaltos formados por rochas cristalinas.

Os acidentes dos terrenos resultam da ação de agentes de origem interna, como vulcanismo, tectonismo e outros, e de agentes de origem externa, como água corrente, temperatura, chuva, vento, geleiras e seres vivos. As intervenções antrópicas conseguem mitigar os impactos dos agentes externos mas não tem capacidade de atuar sobre os agentes internos, onde somente é possível a prevenção e a remoção.

Após a definição de todas as potencialidades terrestres do Brasil, estamos na fase de caracterização dos sítios arqueológicos, cavernas e outros “monumentos” mais recentes do país.

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

 

EcoDebate, 12/06/2014


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O jogo lucrativo da Copa. (Brasil)

O jogo lucrativo da Copa, por Viviane Tavares

 

Relatório apresenta legados dos mundiais no Brasil, África do Sul e Alemanha, aponta os verdadeiros interesses e interessados pela Copa do Mundo no país do futebol.

No final do mês de maio foi publicado o relatório ‘Um olhar sobre os legados dos mundiais no Brasil, África do Sul e Alemanha’ da Fundação Heinrich Böll – Brasil, no qual abordou o legado deixado em países que receberam a Copa do Mundo em anos anteriores e como o Brasil se preparou para este mundial. O relatório não só aponta a estratégia da FIFA e do empresariado no jogo de disputa de interesses em receber o evento como também divulga como o poder e o financiamento público vão, aos poucos e em números exorbitantes, financiando este acontecimento.

No caso do Brasil, o investimento chegou atualmente a € 8,5 bilhões – o equivalente a R$ 26 bilhões – dos quais 85% saem dos cofres públicos, segundo o relatório. O investimento público tinha a justificativa de gerar empregos e uma injeção na economia brasileira. Os números previstos eram de que a Copa injetaria R$ 142 bilhões na economia brasileira e geraria 3,63 milhões de empregos por ano entre 2010 e 2014, além de R$ 63 bilhões de renda para a população. A realidade, no entanto, como mostra o organizador da edição Dawid Danilo Bartelt é outra. “Teixeira prometeu uma Copa do Mundo com amplos recursos privados, o que ao longo dos sete anos de preparação para o evento não se efetivou. O mesmo ocorreu com a previsão de gastos, que era de R$ 5 bilhões. O valor, no início de 2014, já beira os R$ 30 bilhões”, explica o diretor no relatório.

O relatório vai além e aponta que mesmo sendo uma entidade sem fins lucrativos, a FIFA divulgou em seu balanço de 2012 um lucro de R$ 178 milhões, além de uma reserva financeira de R$ 2,6 bilhões. A organização da Copa do Mundo no Brasil deverá garantir um faturamento de R$ 9,7 bilhões. Na África do Sul essa quantia foi de R$ 7 bilhões em 2010, e, na Alemanha, de R$ 4,4 bilhões em 2006.

Para que o país conseguisse o direito de sediar o torneio e alcançar tal lucratividade, a FIFA exigiu, por exemplo, que houvesse uma isenção de impostos nos contratos. Estima-se que só com isso, a federação economizasse cerca de R$ 1 bilhão. A lei da Copa (12663/12), que determina essa e outras regalias para a FIFA diz ainda que deve ser do governo a garantia com segurança, saúde e vigilância sanitária, além de, caso não consiga realizar o evento, será responsabilizada por quaisquer danos que vierem a acontecer.

O documento ainda contesta os legados socioeconômicos, que, segundo o texto, apresentam uma série de problemas metodológicos. “As obras de infraestrutura viária são obras específicas para a Copa ou teriam sido realizadas de qualquer forma? Os gastos elevados comprometem outros itens dos orçamentos municipais, estaduais ou federal ou são compensados, por exemplo, através de investimentos privados? Como computar formas indiretas de financiamento, como isenções fiscais (das quais a FIFA goza quase que plenamente) ou subsídios?”, indaga.

Quem lucra?

Uma das organizadoras da publicação e coordenadora de programa da Fundação Heinrich Böll, na área de Direitos Humanos, Marilene de Paula, em entrevista para EPSJV/Fiocruz explica que a empreiteiras são os grandes motivadoras de eventos como este, principalmente, por conta das obras que essas movimentações envolvem. “O Governo lucra também em sua imagem, que aproveita para mostrar para o cenário internacional que ele é um país capaz de fazer esse tipo de evento, que é um país voltado para os negócios, para o investimento, um país eficiente. E no caso do Brasil, várias coisas se mesclam com o interesse da Copa e Olimpíadas”, analisa.

Somente a Rede Globo, maior canal de TV brasileiro e detentor dos direitos de exibição dos jogos ao lado da TV Bandeirantes, aponta o relatório, vai faturar R$ 1,4 bilhão com a comercialização de cotas de patrocínio da transmissão da Copa do Mundo 2014. “E a emissora ainda vai somar mais R$ 1,1 bilhão em cotas com outro pacote, o “Futebol 2014″, que mostra os jogos dos campeonatos estaduais e nacionais. Considerando que na Copa da África do Sul a Rede Globo conseguiu R$ 490 milhões, com seis cotas de R$ 81,8 milhões cada, o torneio no Brasil representa um aumento de quase 200% em seu faturamento”, mostra o documento.

Pesquisa realizada pelo Instituto Mais Democracia e lembrada no relatório apresenta ainda que os contratos públicos para obras relacionadas à Copa do Mundo e às Olimpíadas tem indícios da existência de um cartel formado pelas construtoras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Correa e OAS em mais de 20 empreendimentos que estão sendo realizados no estado do Rio de Janeiro. A parceria com grandes empreiteiras, eventos, e governo vem sendo estreitada, como aponta do estudo, desde a eleição da presidente e Dilma Rousseff, que gastou R$176,5 milhões em sua campanha. Naquela ocasião, entre os doadores estavam o Banco Itaú e a cervejaria Ambev, dois patrocinadores oficiais da Copa do Mundo e também da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), além de duas construtoras ligadas diretamente às obras da Copa, a Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez.

Quem paga?

De acordo com “Um olhar sobre os legados dos mundiais no Brasil, África do Sul e Alemanha” os maiores financiadores do evento no país foram os bancos públicos, em especial o BNDES e a Caixa Econômica Federal. “A iniciativa privada entrou com muito pouco, e é inevitável que para financiar isso, tire de outro lugar”, analisou Marilene. Dos três eixos principais de investimento que são desenvolvimento turístico, estádios e mobilidade urbana, o que concentrou maior verba foi o de mobilidade, com previsão de gastos de R$ 4,470 bilhões. “Porém, apenas 59% desse valor (R$ 2,671 bilhões) foi realmente investido. Enquanto isso, no eixo estádio, já foram gastos R$ 4,049 bilhões, o que equivale a 97,7% do total previsto”, explica o relatório.

Somente o estádio Mario Filho, mais conhecido como Maracanã, recebeu R$ 1,5 bilhão, e a gestão do estádio já foi repassada para a iniciativa privada. O contrato prevê o pagamento de 33 parcelas anuais de R$ 5,8 milhões, chegando ao total de R$ 181,5 milhões, o que significa pouco mais de 15% de todo o dinheiro público gasto no estádio.

Como uma das principais contrapartidas por parte da União, a área de segurança pública para os megaeventos receberá mais de R$ 2 bilhões em investimentos federais: “R$ 1,17 bilhão para as Copas do Mundo e das Confederações, além de R$ 1,15 bilhões para os Jogos Olímpicos. Quase R$ 50 milhões já foram gastos com armamento “não-letal” para a Copa das Confederações e Copa do Mundo”, informa o texto que completa: “Mesmo com todo esse investimento pesado na área de segurança para o Mundial, o governo ainda terá que arcar com o custo da segurança particular nos estádios. A FIFA exige que a segurança dentro dos estádios seja feita por empresas privadas. Estima-se que 25 mil vigilantes sejam convocados para trabalhar nas 12 arenas”.

O verdadeiro legado

Com o chamado corredor Copa e Olimpíadas no Rio de Janeiro, as Unidades de Polícias Pacificadoras (UPP), foram implantadas de maneira violenta e hoje contam um efetivo de mais 9 mil homens. “Após os cinco anos de sua implementação, essa política se destaca também como um processo de reordenamento étnico-social da cidade para os megaeventos. No momento são 37 unidades espalhadas pela cidade. A maioria em áreas turísticas: na Zona Sul, onde fica instalado grande parte do setor hoteleiro; na Zona Norte, próximo a equipamentos esportivos – no entorno do Estádio do Maracanã; e especula-se que novas unidades serão instaladas em vias de acessos à cidade, como no conjunto de favelas da Maré, um dos acessos ao Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão)”, informa o texto.

Marilene aponta como um dos principais legados negativos a remoção. Como informa o dossiê, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) estima que 250 mil pessoas estejam passando por processo de remoção em todo o Brasil. “Os legados positivos, no final das contas, foram muito pequenos. Se você comparar o que foi investido e o que foi deixado, é muito pouco para conta que veio”, analisa. “Os processos das remoções, como é o caso do Rio de Janeiro, você tem um deslocamento de cerca de 20 mil famílias, que foram afastadas, algumas com cerca de 40 quilômetros. Agora você teve pessoas que foram realocadas em locais próximos ou menos distantes do que haviam falado antes, mas isso se deve de uma luta dos movimentos, sem dúvida”, explicou a coordenadora.

A organização da Copa do Mundo no Brasil também traz em seu conjunto os acidentes de trabalho. De acordo com dados oficiais já foram seis pessoas mortas decorrentes de trabalhso relacionados à Copa. Três dos seis mortos foram trabalhadores contratados pela Andrade Gutierrez. “As repetidas mortes em obras para a Copa do Mundo no Brasil revelam que precarização do trabalho e graves violações de direitos estão diretamente relacionadas aos espetáculos de ponta do capitalismo mundial, em obras feitas pelas maiores construtoras do país, contrapondo a imagem que se tenta construir através de grandes eventos. Nas obras do Mundial de 2010, na África do Sul, dois trabalhadores morreram. No Qatar, sede do Mundial de 2022, a Anistia Internacional responsabilizou a FIFA por trabalho escravo”, informou o relatório.

Para Marilene, as realidades de legados negativos da Copa são muitas. “Em Cuiabá, o projeto do VLT, que era um projeto para a Copa do Mundo, não foi realizado. Os estádios que foram feitos em Cuiabá e Manaus que após a Copa não terão público suficiente para nas arenas em estes tamanhos. Os campeonatos são muitos precários ainda”, pontua e completa: “Existem cidades que foram contempladas com determinadas melhorias, como a mobilidade, embora venha a custas de remoções, de processos violentos”, explica.

O aumento da exploração sexual também deve ser levado em conta, aponta a coordenadora da Fundação organizadora do relatório. Segundo estimativa da Associação das Prostitutas do Ceará (APROCE), cerca de 3.500 mulheres estão em situação de prostituição em Fortaleza e os grandes eventos contribuem para o aumento do turismo sexual no circuito dos balneários e adjacências das cidades-sede, de acordo com dados que constam na pesquisa apresentada. As cidades de Salvador (BA), Natal (RN) e Fortaleza (CE) são as que mais tem intensificada a prostituição.

Também relacionados à Copa estão sendo analisados no Senado o projeto de lei 728/2011, que determina a proibição de greves durante o período dos jogos, além do AI5 da democracia, de nº 499/2013, que prevê pena de até 30 anos para quem “provocar ou infudir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à privação de liberdade de pessoa”.

Marilene indica que a Copa na verdade foi a “cereja do bolo”. “Nas manifestações do ano passado, a Copa do Mundo era apenas uma das pautas dentro do acúmulo de descontentamento. É muito vergonhoso abrir o jornal e ver o que está acontecendo com essas obras que não terminam, quanto de dinheiro que vem sendo investido. A sensação é de que estamos sendo lesados. Por isso é fácil entender o resultado da pesquisa publicada recentemente que aponta que mais de 40% dos brasileiros não querem a Copa”, reflete.

Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

EcoDebate
, 13/06/2014


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Índia: baixo consumo, enorme população e elevado déficit ambiental.

Índia: baixo consumo, enorme população e elevado déficit ambiental, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

pegada ecológica e biocapacidade - Índia

 

[EcoDebate] A Índia caminha para ter a maior população do Planeta (ultrapassando a China até 2030) e ser a terceira maior economia do globo (atrás somente da China e dos Estados Unidos). Mas pode se atolar em uma grande crise ambiental e nos limites da disponibilidade de recursos naturais, como a degradação dos solos e a escassez de água potável.

A pegada ecológica da Índia, em 2008, era de 0,87 hectares globais (gha), bem abaixo da média mundial (2,7 gha) e cerca de 10 vezes menor do que a pegada ecológica do Catar (11,7 gha) ou do Kwait (9,7 gha). Mesmo assim a Índia tinha déficit ambiental crescente, pois de uma lado a pegada ecológica tende a crescer e a biocapacidade tende a diminuir.

Em 2008, a população da Índia era de 1,19 bilhão e a biocapacidade per capita de 0,48. Assim a Índia tinha uma biocapacidade total de 571 milhões de hectares globais (gha), mas estava usando 1,035 gha (0,87 vezes 1,19 bilhão de habitantes) de pegada ecológica total. Assim, o déficit ambiental da Índia era de 464 milhões de hectares globais, em 2008.

Para o ano de 2030, estima-se que a população indiana será de 1,48 bilhão de habitantes e a biocapacidade per capita deve cair para 0,39 gha. Estimando que a pegada ecológica per capita suba para 1,0 gha (muito baixa para os padrões internacionais) a pegada total será de 1,48 bilhão de hectares globais. Neste quadro, o déficit ambiental da Índia será de 909 milhões de gha, o terceiro maior déficit ambiental do mundo, atrás somente da China e dos Estados Unidos.

Para o ano de 2050, estima-se uma população indiana de 1,62 bilhão de habitantes. Supondo a mesma pegada ecológica per capita de 1 hectare global, o déficit ecológico da Índia, de 1,05 bilhão de hectares globais será superior ao déficit dos Estados Unidos atualmente (1 bilhão de gha). Neste nível de pegada ecológica, a população da Índia precisaria ficar em 571 milhões de habitantes para se atingir o equilíbrio ambiental.

Ou seja, para evitar a degradação da natureza não basta apenas controlar o padrão e o nível de consumo. A Índia é um país onde a maioria das pessoas possuem baixo nível de renda e de acesso a bens duráveis. Mas em decorrência de uma enorme população possui um elevado déficit ambiental.

Os resultados das eleições parlamentares na Índia de maio de 2014 deram uma vitória histórica ao partido nacionalista hindu Bharatiya Janata (BJP). O líder da sigla oposicionista, Narendra Modi, será o novo primeiro-ministro do país, encerrando a longa dominância da dinastia Gandhi no poder. Ele promete seguir a receita tradicional para vencer a pobreza na forma do crescimento econômico e no poderio político internacional da Índia. Porém, há de desvendar a fórmula para fazer isto nas condições já precárias do meio ambiente.

Evidentemente a Índia pode reduzir a concentração de renda e distribuir melhor a riqueza de seus cidadãos. Mas o consumo médio já é muito baixo e dificilmente poderia ser reduzido sem provocar uma queda ainda maior na qualidade de vida dos habitantes do país. Sem a redução da pegada ecológica, a única maneira de diminuir o déficit ambiental é através da diminuição da população.

Mas as estimativas da Divisão de População da ONU, apontam para uma população indiana de 1,64 bilhão de habitantes, em 2070, e um declínio para 1,55 bilhão em 2100. Desta forma, o déficit ambiental da Índia deverá ficar acima de 1 bilhão de hectares globais na maior parte do século XXI. O resto do mundo terá que ajudar a cobrir o déficit indiano e contribuir para alimentar a enorme população da Índia.

Contudo, a pegada ecológica do mundo já superou em 50% a biocapacidade do Planeta e a Terra tem, atualmente, um déficit de 6 bilhões de hectares globais. Como a população mundial continua crescendo e cada vez mais pessoas sonham com o “paraíso” do consumo, as perspectivas são de aumento da crise ambiental e perda de biodiversidade. Ou seja, o mundo já está em déficit e o crescimento do déficit ecológico da Índia só agrava a situação internacional. Assim, cresce a cada dia a possibilidade de um colapso ecológico do Planeta, num futuro não muito distante.

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

 

EcoDebate, 13/06/2014


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Por que o novo decreto de Dilma não é bolivariano

Fórum de Interesse Público

Por que o novo decreto de Dilma não é bolivariano

O decreto 8243 institucionaliza uma política que já existe e aprofunda a democracia na medida em que aproxima a sociedade civil e o Estado
por Fórum de Interesse Público — publicado 10/06/2014 04:26, última modificação 11/06/2014 11:29
Roberto Stuckert Filho / PR
Dilma Rousseff

Dilma em entrega de casas do Programa Minha Casa Minha Vida II, em outubro

 Por Leonardo Avritzer
A presidente Dilma Rousseff assinou, no último dia 21, um decreto que institui a Política Nacional de Participação Social. De acordo com o decreto “fica instituída” a política, “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”.

Com este objetivo o governo reforçou institucionalmente uma política que vem desde 2003, quando, ainda em 1º de janeiro, o ex-presidente Lula assinou a medida provisória 103, na qual atribui à Secretaria Geral da Presidência o papel de “articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo na elaboração da agenda futura do Presidente da República…”

A partir daí, uma série de formas de participação foram introduzidas pelo governo federal, que dobrou o número de conselhos nacionais existentes no país de 31 para mais de 60, e que realizou em torno de 110 conferências nacionais (74 entre 2003 e 2010 e em torno de 40 desde 2011). Assim, o decreto que instituiu a política nacional de participação teve como objetivo institucionalizar uma política que já existe e é considerada exitosa pelos atores da sociedade civil.

Imediatamente após a assinatura do decreto iniciou-se uma reação a ele capitaneado por um grande jornal de São Paulo que, em sua seção de opinião, escreveu o seguinte: “A presidente Dilma Rousseff quer modificar o sistema brasileiro de governo. Desistiu da Assembleia Constituinte para a reforma política – ideia nascida de supetão ante as manifestações de junho passado e que felizmente nem chegou a sair do casulo – e agora tenta por decreto mudar a ordem constitucional. O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), é um conjunto de barbaridades jurídicas, ainda que possa soar, numa leitura desatenta, como uma resposta aos difusos anseios das ruas.”

Assim, segundo o jornal paulista, o Brasil tem um sistema que é representativo e este foi mudado por decreto pela presidente. Nada mais distante da realidade.

Em primeiro lugar, o editorialista parece não conhecer a Constituição de 1988, que diz no parágrafo único do artigo primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ou seja, o legislador constituinte brasileiro definiu o país como um sistema misto entre a representação e a participação. Se é verdade que as formas de representação foram muito mais fortemente institucionalizadas entre 1988 e hoje, isso não significa que temos no Brasil um sistema representativo puro, tal como ele existe em um país como a França. Pelo contrário, a verdade é que o espírito da Constituição fica muito melhor representado a partir do decreto 8243, que institucionaliza uma nova forma de articulação entre representação e participação de acordo com a qual a sociedade civil pode sim participar na elaboração e gestão das políticas públicas. Mas, ainda mais importante do que restaurar a “verdade constitucional” é se perguntar qual sentido faz instituir um sistema de participação?

A resposta a esta pergunta é simples e singela. A temporalidade da representação está em crise em todos os países do mundo. Por temporalidade, deve se entender a ideia de que a eleição legitima a política dos governos durante um período extenso de tempo, em geral de quatro anos. Hoje vemos, no mundo inteiro, pensando em Obama nos Estados Unidos e Hollande na França, uma enorme mudança na maneira como a opinião pública vê os governos.

Temos um novo fenômeno que o filósofo francês Pierre Rosavallon classifica da seguinte maneira: a legitimidade das eleições não é capaz por si só de dar legitimidade contínua aos governos. Duas instituições estão fortemente em crise, os partidos e a ideia de governo de maioria. É sabido que a identificação com os partidos cai em todo o mundo, até mesmo nos países escandinavos onde ela era mais alta. É isso o que justifica a entrada da sociedade civil na política, não qualquer impulso bolivariano, tal como alguns comentaristas pouco informados estão afirmando.

A sociedade civil traz para a política um sistema de representação de interesses que os partidos não são mais capazes de exercer devido a sua adaptação a um sistema privado de representação de interesses e financiamento com o qual a sociedade não se identifica. O mais curioso é que ninguém mais do que os órgãos da grande imprensa adotam o exercício de mostrar como o poder da maioria pela via da representação não é capaz de legitimar o governo. Lembremos alguns exemplos recentes: a rejeição da nomeação do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara ou o apoio às manifestações populares pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013. Em todas estas questões o que esteve em jogo foi a capacidade da sociedade civil de apontar uma agenda para o governo. O que o Sistema Nacional de Participação faz é institucionalizar esta agenda reconhecendo que existe uma representação exercida pela sociedade civil.

Vale a pena desenvolver um pouco mais este ponto. A representação é uma autorização dada por uma pessoa para alguém atuar em nome dela. Este é o fundamento do seu exercício que existe em todos os países. Mas existe uma questão adicional que reside no fato da representação das pessoas se dar através de uma autorização ampla que não consegue alcançar temas que não são majoritários ou que têm uma agenda mais volúvel. Assim, o sistema representativo é sempre ruim para representar questões tais como direito das minorias ou temas importantes como o meio ambiente ou até mesmo políticas públicas como a de saúde. Exemplos sobre a incapacidade do Congresso Nacional de agir nestas áreas abundam no Brasil. Lembremos a incapacidade de votar a união homoafetiva, a ação afirmativa, de aprovar o Código Florestal, todas legislações com fortíssimo apoio na sociedade, mas que não conseguiram tramitar no Congresso devido a lobbies muito fortes. No caso da união homoafetiva e da ação afirmativa sua legalidade acabou sendo determinada pelo Supremo Tribunal Federal. No caso do Código Florestal este contou com um veto da presidente e mais uma medida provisória bastante polêmica no interior do Congresso. Todos estes episódios mostram que há uma incapacidade do legislativo de se conectar com a sociedade, devido à maneira como o sistema de representação opera no país. Em geral tem cabido ao Supremo preencher esta lacuna, mas o mais democrático e o mais adequado é um envolvimento maior da sociedade civil nestes temas por via de instituições híbridas que conectem o executivo e a sociedade civil ou a representação e a participação.

Este modelo, que está longe de ser bolivariano, está presente, na verdade, nas principais democracias do mundo. Os Estados Unidos tem o modelo de participação da sociedade civil no meio ambiente por meio dos chamados “Habitat Conservation Plannings”. A França tem o modelo de participação da sociedade civil nas políticas urbanas através de contratos de gestão nos chamados “Quartier Difficile”. A Espanha tem a participação da sociedade civil no meio ambiente através de “juris cidadãos”. A Inglaterra instituiu mini-públicos com participação da sociedade civil para determinar prioridades políticas na área de saúde.

Todas as principais democracias do mundo procuram soluções para o problema da baixa capacidade do parlamento de aprovar políticas demandadas pela cidadania. A solução principal é o envolvimento da sociedade civil na determinação de políticas públicas. A justificativa é simples. Ninguém quer acabar com a representação, apenas corrigir as suas distorções temporais em uma sociedade na qual o nível de informação da cidadania aumentou fortemente com a internet e as redes sociais e na qual os cidadãos se posicionam em relação a políticas específicas. Ao introduzir uma participação menos partidária e com menor defesa de interesses privados na política tenta-se reconstituir mais fortemente este laço. Assim, o que o decreto 8243 faz não é mudar o sistema de governo no Brasil por decreto e nem instituir uma república bolivariana. O que ele faz é aprofundar a democracia da mesma maneira que as principais democracias do mundo o fazem, ao conectar mais fortemente sociedade civil e Estado.

Paisagens, geobiossistemas e meio ambiente.

Paisagens, geobiossistemas e meio ambiente, artigo de Roberto Naime

Mata Atlântica

[EcoDebate] Os solos são resultantes da decomposição intempérica das rochas e são um elemento integrante das paisagens. Solos são formados por intemperismo, que é o conjunto de condições físicas e químicas do meio ambiente, como clima, temperatura, pluviosidade e demais variáveis desta natureza. Os solos são formados pela ação dos fatores intempéricos e dos organismos vivos, bactérias e animais, agindo sobre o material de origem ao longo do tempo.

Podem se encontrar no próprio local onde se formaram quando são denominados solos residuais ou solos de alteração de rocha nos casos onde é possível observar texturas e estruturas relictas da rocha original, e são denominados solos transportados quando se encontram fora do local que se formaram.

Os solos transportados se denominam aluviões quando são carregados pela água e colúvios ou elúvios quando o agente de maior influência na transposição são as reptações gravitacionais.

Nos solos aluvionares são transferidos de local pela ação da água. Há ainda os solos coluvionares onde o agente transportador mais importante são as reptações gravitacionais, e os solos eluvionares, onde o transporte é mínimo, sendo derivado de uma associação entre o agente transportador aquoso e os gradientes topográficos.

A composição química e a constituição dos solos são profundamente influenciadas pela rocha que origina o solo e pelos processos posteriores que sofre.

A interação permanente entre o meio físico e os ecossistemas terrestre e aquático precisa ser analisada através de um enfoque interdisciplinar. Os solos representam a expressão mais visível do meio físico e integram a base do conceito de paisagem. Resultam da decomposição dos substratos rochosos através de processos de intemperismo.

As modernas técnicas de avaliação geotécnica dos ambientes utilizam as classificações pedológicas e climáticas disponíveis, associando ainda fatores como declividade, cobertura vegetal e ocupação e ação antrópica.

A associação destes elementos e o uso das técnicas de sensoriamento remoto e tratamento digital de imagens de satélite, dentro de um contexto multidisciplinar, permitiu a transferência e a evolução de conceitos. Hoje, é disseminada a concepção do conceito de “paisagem” como expressão do agenciamento dinâmico e superficial dos conjuntos territoriais. Ou seja, não é mais apenas o solo a face mais visível do meio físico, e sim a paisagem integradora do solo com os demais fatores, a expressão conjunta das interações compreendidas ou ainda difusas.

Este agrupamento, capaz de expressar homogeneidades ou realçar diferenciações físicas espaciais e temporais no meio terrestre, origina a conceituação de “geobiossistemas” como unidades territoriais, geográficas ou cartográficas de mesma paisagem, definidas por características estatísticas do meio natural físico, químico ou biológico, hierarquizadas por um mesmo sistema de relações.

É nesta acepção que são entendidos e empregados os termos classificadores de solos que hoje se utiliza.

Para compreensão e entendimento da formação e equilíbrio dos solos, além da profunda e íntima relação com o clima, é preciso entender as interações com o relevo e a influência dos parâmetros hidrológicos do balanço hídrico.

Por balanço hídrico se compreende o conjunto de fenômenos posteriores às precipitações pluviométricas. A água que chove sobre uma determinada bacia hidrográfica tem 3 caminhos básicos: o primeiro caminho é sofrer infiltração nos terrenos, que depende das taxas de infiltração, dos materiais constituintes dos solos (materiais arenosos tem elevada permeabilidade e materiais com predomínio de argilas tem baixa permeabilidade).

A segunda alternativa é sofrer “run off”, expressão que significa escoamento superficial. Quanto maior for a declividade, maior é o escoamento superficial, e, portanto, menores as infiltrações e menor a decomposição das rochas que origina os solos.

E a terceira é passar pelo processo de evapotranspiração, ou seja, evaporação superficial. O balanço hídrico é a quantidade de água disponível pela ação das chuvas, menos as águas que infiltram nos terrenos, subtraídas também as águas que sofrem evapotranspiração. A água disponível para o sistema de drenagem superficial é o material proveniente da chuva que sofre escoamento superficial.

E as taxas maiores ou menores de infiltração, que dependem da quantidade de chuva e do relevo do local, influenciam na formação de maiores ou menores perfis de solo.

O solo dentro do contexto de paisagem é um recurso natural, responsável pela sustentação da flora e da fauna no meio biológico e pelas interações com a agricultura, a pecuária, o armazenamento de água, as obras de infraestrutura e edificações humanas.

Sem que suas características naturais sejam alteradas, funciona como filtro de purificação das águas superficiais ou freáticas que se infiltram em profundidade e formam os aquíferos subterrâneos ou águas subterrâneas, armazenadas dentro da rocha.

O manejo agrícola inadequado produz erosão nos solos, que é responsável pelos processos de assoreamento dos recursos hídricos superficiais, aumentando as condições para ocorrência de enchentes e alagamentos. A disposição inadequada de resíduos perigosos ou não inertes nos solos propicia a degradação progressiva do ecossistema afetado.

O conhecimento da paisagem e dos geobiossistemas são um bom exemplo da multidisciplinariedade dos estudos ambientais. Estes conjuntos harmônicos dentro de seus ecossistemas são importantes para diversas áreas do conhecimento humano. Os solos são lentamente renováveis, sendo encontrados em diferentes posições da paisagem.

As paisagens ou geobiossistemas estão presente em todas as atividades humanas e seu uso racional, economicamente viável e ambientalmente sustentável exige conhecimento prévio de suas características e limitações.

Todo estudo do meio físico necessita detalhamento das características, aptidões e limitações dos solos, sua distribuição geográfica e ocorrência. No campo, a identificação dos tipos de solo é feita pela observação do perfil de solo em um talude ou corte do terreno. O entendimento do perfil é a primeira fase na identificação e interpretação das características do solo para fins de recomendação dos usos e manejos adequados, com estes materiais inseridos dentro da concepção de paisagem e geobiossistema.

As características morfológicas que representam a aparência dos solos no campo são a cor, a textura, a estrutura, a granulometria, a consistência e a tipologia de raízes existentes (STRECK et al, 2008).

O perfil de solos mostra uma sequência vertical de camadas mais ou menos paralelas à superfície, resultantes da ação dos processos de formação do solo (processos pedogenéticos) que são diferenciadas entre si pela espessura, cor, textura e estrutura, dentre outras características.

Materiais aluvionares que representam solos transportados pela ação das águas podem ser um pouco diferentes. Da mesma forma pacotes de solos denominados eluvionares, resultantes de pequenos rastejamentos gravitacionais em superfícies de terrenos com declividades e solos chamados coluvionares, com maior reptação ou rastejamento gravitacional em superfícies do terreno com elevadas declividades, podem mostrar perfis de solo com horizontes um pouco diferenciados.

Cada tipo de solo dentro das paisagens ou geobiossistemas tem suas características morfológicas e sua classificação, ocorrendo em local determinado da paisagem, com aptidões próprias de uso e dentro de seu contexto deve ser analisado de forma sistêmica, nas relações que estabelece com os meios, biológico e antrópico, em cada situação de um determinado empreendimento.

Referência:

STRECK,, E. V., KÄMPF, N., DALMOLIN, R. S. D., KLAMT E., NASCIMENTO, P. C. e SCHNEIDER, P. Solos do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2 ed. EMATER/RS: UFRGS, 222p. 2008

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

EcoDebate, 05/06/2014


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