Archive for the ‘Sociedade’ Category

O ministro que descobriu que era negro

Assimilados se esquecem de que a tolerância com seus erros é outra

Ler direto na Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/06/o-ministro-que-descobriu-que-era-negro.shtml

Dodô Azevedo

Dentre os modelos de recepção a imigrantes, a academia é encantada com a dicotomia assimilacionismo versus multiculturalismo. O primeiro baseia-se na ideia de que equidade e igualdade podem ser alcançadas através da adoção de valores coletivos, que evitem diferenciações de caráter cultural. O segundo, também conhecido com modelo pluralista, baseia-se no investimento estatal na diversidade cultural.

Um negro que migra para um país assimilacionista em poucas décadas esquece a que matriz pertence. Esquece a cultura, os valores e as crenças de seus antepassados.

Acontece que nós somos nossos antepassados. O avô de George Floyd, morto por um policial nos EUA, se resolvesse, 70 anos atrás, resistir à prisão, mesmo que sendo inocente, teria tido o mesmo tratamento que teve o seu neto.

Carlos Alberto Decotelli assina posso como ministro com o presidente Jair Bolsonaro, na quinta (25)
Carlos Alberto Decotelli assina posso como ministro com o presidente Jair Bolsonaro, na quinta (25) – Marcos Corrêa – 25.jun.20/Presidência da República

Já um imigrante sueco, nos EUA, teria, sob as mesmas condições, tido outro tratamento. E também seu avô, seu ancestral. Se o assimilacionismo é um atalho para imigrantes brancos, é um alçapão para negros. Por um motivo muito simples: negros não chegaram às Américas como imigrantes, e sim como escravos.

Há modos e modos de escapar da condição de escravo. Uma é o confronto. A outra é deixando-se assimilar. Tornando-se um negro conveniente. Aquele que não só não cobra quem o oprime mas torna-se seu avalista. No Brasil e nos EUA, os negros convenientes encontram um bocado de portas abertas. Tantas que, com o passar do tempo, até esquecem que são negros. Até esquecem que, por mais que eles próprios já não se vejam mais como negros, a sociedade nunca deixou de vê-los assim.

Então, esses negros começam a agir como se desfrutassem dos mesmos privilégios que os brancos, ou qualquer raça ou etnia que não tenha entrado naquela sociedade como escrava: roubam, matam, mentem. Certos de que serão julgados com a mesma régua com a qual se julga todos os ancestrais de imigrantes. Quando descobrem que a tolerância com seus erros é outra, vem a descoberta. Ele havia esquecido que era negro.

Carlos Decotelli tem, no Rio de Janeiro, um histórico de intolerância com religiões de matriz africana. Cristão batista, é um negacionista do sistema de crenças de suas avós e bisavós e tetravós. Nas religiões que combate —e terreiros são profanados e destruídos maioritariamente nas regiões da cidade controlada por milícia, curral eleitoral do atual presidente Jair Bolsonaro e de seu filho, o atual senador Flávio Bolsonaro—, mentira e injustiça não são toleradas. No sistema de crenças pelo qual se deixou assimilar, basta confessar arrependimento que um deus único e misericordioso perdoa. Ou seja, vale tudo.

No Brasil, tem vida curta um ancestral de escravos que ofende os seus. Que ousa mentir como um ancestral de imigrantes, presumindo que desfrutará do mesmo tratamento que eles. Mas igualmente ofensivo é não considerar os motivos que fazem um negro negar a si e aos que o geraram. Não entender o que faz um negro a esquecer a cor que tem. E não chamar a atenção para o fato de que dinâmicas assim sustentam a estrutura econômica que nos envolve, nos corrompe e determina até nossas traições.

Da infantaria persa do comandante Mardónio às invencíveis colunas mongóis de vanguarda do general Subotai, a carreira militar é, há quase dezena de milhares de anos, um atalho pelo qual podem ascender as populações marginalizadas. Os donos das riquezas nunca se expõem: designam a tarefa a qualquer um que se disponha. Para tentar não ser negro no Brasil, brasileiros negros recorrem, muitas vezes, à carreira militar, como o ex-ministro Decotelli. É, muitas vezes, o único caminho permitido por quem detém privilégios.

Uma das torturas preferidas do herói dos Bolsonaros, o coronel Brilhante Ustra, era obrigar mulheres a beberem sua própria urina. Obviamente, o Ustra só possuía coragem de fazer isso com mulheres amarradas, imobilizadas e dopadas. Vencia pelo cansaço. Em algum momento, a pessoa sob tortura não aguentava e dizia o que fosse necessário para satisfazer a valentia de araque do torturador.

A condição do descendente de escravos no Brasil é, diariamente, essa: beber a própria urina e apanhar imobilizado, dopado. Uma hora o indivíduo cansa. E para sair dessa situação, se branquifica.

Ser negro, no Brasil, é lindo, porque além de tudo é um atestado de bravura maior do que se pode conseguir em qualquer exército. Porque se trata de uma guerra minuto a minuto. A única guerra verdadeira que há no Brasil. Por isso, é perverso não tentar se colocar no lugar de desertores. De Decotellis.

Ser negro dá trabalho.

O que é um jornal a serviço da democracia?

A Folha deixou para nós a tarefa de interpretar o que isso significa

LEIA NO ORIGINAL : https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2020/06/o-que-e-um-jornal-a-servico-da-democracia.shtml

Em edição histórica no último domingo (28), a Folha lançou campanha de defesa da democracia contra a delinquência política. No caderno especial, buscou desfazer o mundo cor-de-rosa pintado ao redor do período militar.

Em 1964 houve golpe. O golpe instaurou ditadura. A ditadura torturou, matou e suprimiu liberdades.

Produziu enriquecimento ilícito e montou império de empreiteiras. O “milagre econômico” gerou desigualdade e década perdida. Polícia fora do controle nunca entregou segurança pública. Instituições de uso da força abriram caminho ao tráfico de armas e ao crime organizado. Continuamos a pagar a fatura.

Em resumo, foi isso: não só uma “máquina cruel” de produção de sofrimento em massa, mas de corrupção. Criminosos saíram impunes e lhes foi permitido entrar no período democrático sapateando.

Comício em defesa das Diretas Já na praça da Sé, em São Paulo, em janeiro de 1984 – Gil Passarelli – 25.jan.1984/Folhapress

Seus apologistas, 30 anos depois, chegaram à Presidência. Tentam não só reescrever a história, mas revivê-la. Seus heróis mataram, nos porões, inimigos nus. Na moderna lei da guerra, crime contra a humanidade.

A campanha da Folha também fez um gesto expressivo: alterou seu mote “Um jornal a serviço do Brasil” para “Um jornal a serviço da democracia”. Deixou para nós, leitores, tarefa de interpretar o que isso significa e cobrar coerência com esse compromisso.

A relação é bidirecional: sem imprensa livre (e corajosa para praticar a liberdade), não há democracia; sem democracia, há imprensa servil (com o lucro e a desonra que vêm do servilismo). Essa platitude teórica, porém, precisa ser traduzida.

Tenho meus palpites. Um jornal a serviço da democracia sabe que democracia não é só eleições livres, nem só respeito a liberdades civis. Sabe que na pobreza e na disparidade de riqueza o poder político se torna um fantoche do autoritarismo econômico.

Sabe também que a democracia brasileira é uma democracia particular, não abstrata. Nela, a loteria do nascimento determina aonde se pode chegar. Ser homem branco, idealmente heterossexual, facilita muito o caminho, pouco importa o esforço, a inteligência e a sorte.

Um jornal democrático não teme adjetivos como “radical” e “extremista”, nem os banaliza. Não doura a pílula com eufemismo. Sabe que Bolsonaro nunca foi polêmico e nunca proferiu frase polêmica em 30 anos de escatologia verbal. Era outra coisa.

Um jornal democrático faz o melhor que pode para dizer a verdade ao poder (“speak truth to power”). Mas não só a verdade factual. Há que perder o medo e a preguiça do juízo crítico, o medo e a preguiça da palavra certa diante de situações concretas.

Sabe que imparcialidade jornalística não é neutralidade nem ausência de juízo, e que nem sempre há dois lados. É ter “clareza moral”, como disse Masha Gessen na revista New Yorker.

Para cobrir o mundo ilusionista do direito, tenho palpites menos banais. Primeiro, um jornal democrático precisa entender que não existe juiz herói nem Judiciário com causa. O heroísmo judicial é uma conquista institucional, não cruzada dos homens de bem.1 9

Sabe que o juiz não é imparcial porque diz ser imparcial. Só podemos atestar se atende aos rituais da imparcialidade. Para isso existem regras de suspeição e padrões éticos.

Um jornal democrático lê decisões judiciais não apenas para reportar o resultado, mas para avaliar os argumentos e participar da costura do Estado do Direito.

Sabe que opinião jurídica não é monopólio de jurista, e que a deferência passiva à opinião oficial é um favor que instituições judiciais não merecem. Não se assustem com o juridiquês, a doença infantil do bacharelismo. A técnica jurídica não está na linguagem empolada, mas em conceitos ao alcance dos leigos.

Por fim, cuidado com as vozes jurídicas que escutam e com os interesses disfarçados. Adotem políticas de transparência de potencial conflito de interesses (“disclosure”) e valorizem intelectuais do direito que dedicam a vida à pesquisa na universidade. Diversifiquem.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

O lugar do branco na luta antirracista

LEIA NO ORIGINAL: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2020/06/o-lugar-do-branco-na-luta-antirracista.shtml

Vera Iaconelli

Sentir vergonha é um bom começo, mas não basta

É triste reconhecer que nós brancos somos a banda podre da história nacional. Desde que nossa ascendência aportou por aqui, achou que os nativos não eram merecedores de viver nesta terra paradisíaca e comercializou pessoas negras para fazer o trabalho duro. Não satisfeitos, criamos –a partir da abolição– teorias pseudocientíficas que defendiam sermos o gabarito da humanidade e que serviam para justificar a manutenção de nosso status quo. Para aparar as arestas, retratamos Jesus loiro e de olhos azuis, escamoteando sua origem do Oriente Médio.

As demais etnias seriam uma versão inferior de nós, assim como a mulher seria uma versão inferior do homem. Juntando cor de pele e gênero fica óbvio o porquê das mulheres negras formarem a base de nossa pirâmide econômica e social.

Manifestam marcham durante protesto nos EUA após a morte de George Floyd por um policial branco
Manifestam marcham durante protesto nos EUA após a morte de George Floyd por um policial branco – Brown Frederic J. – 3.jun.20/AFP

O sabor de ficar na berlinda pode ser mais amargo para quem está acostumado a tamanho lugar de privilégio, que mal consegue reconhecê-lo. Talvez você queira se defender disso acusando negros e índios de fazerem mimimi, vitimização. Poupe a nós brancos de mais constrangimentos e busque ajuda para lidar com sua ferida narcísica. Se você pensou em “racismo reverso”, pode parar. Racismo é uma opressão estrutural baseada em falsos pressupostos raciais inventados pelos brancos. É totalmente ilógico imaginá-lo “reverso”. Recomendo o vídeo do youtuber Yuri Marçal parodiando Luísa Nunes Brasil, senhora que resume o que de pior nós brancos produzimos nos últimos 500 anos. Suas pérolas racistas, somadas à misoginia explícita revelam a incapacidade de reconhecer-se minimamente, seja como mulher oprimida, seja como branca opressora.

Se quisermos entender a experiência de: não se ver representado em nenhuma mídia, não ocupar cargos de liderança ou classes de ensino superior, ser visto com desconfiança nas lojas, bancos e supermercados por não ser considerado consumidor e ser suposto ladrão, ter seu corpo –pele, cabelos, lábios, quadris– tido como exótico e alvo de curiosidade, ter medo da aproximação da polícia e inúmeros outros exemplos de tratamento desigual, temos que dar voz a quem vive e estuda a questão. Lélia Gonzalez, Angela Davis, Franz Fanon, Silvio de Almeida, W. E. B. Du Bois, Djamila Ribeiro, Lilia Schwarcz –entre tantos outros– nos mostram o caminho. Estudos sobre a branquitude crítica e acrítica; a diferenciação entre racismo, discriminação e preconceito; racismo estrutural; a história silenciada da luta dos negros; a criação da ideia de raça são básicos e devem fazer parte do nosso dia a dia.

Sendo uma pessoa que preza a solidariedade e a bondade –possível– entre humanos não é fácil ser acusado de racista, apropriador cultural, privilegiado, mas é crucial refletir sobre quem somos e qual nosso lugar no condomínio Brasilis. Saber-se parte ativa da engrenagem que tritura negros e índios funciona como um choque de responsabilização e exige que tomemos decisões concretas na direção contrária. O próximo passo para os brancos antirracistas é transformar nossa vergonha em atos que promovam mudanças reais.

Adianto que ações espetaculosas que colocam o branco como redentor dos negros podem ser interpretadas como dificuldade em ceder o protagonismo. No limite, é o risco da comovida e bem intencionada campanha #Itakeresponsibility, na qual atores brancos afirmam seu apoio ao movimento antirracista norte americano. Aprendamos com as críticas e lutemos juntos, porque é disso que se trata.

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Tiranias só sobrevivem porque pessoas aceitam o aberrante como normal

LEIA NO ORIGINAL: Leia no original: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2020/06/tiranias-so-sobrevivem-porque-pessoas-aceitam-o-aberrante-como-normal.shtml

João Pereira Coutinho

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos

Foi Hannah Arendt quem popularizou a expressão “banalidade do mal”. Quando estava em Jerusalém, cobrindo para a New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann, Arendt concluiu que aquele homem não era o monstro amoral que se poderia imaginar.

Era apenas um funcionário que cumprira ordens sem pensar seriamente no que fazia. Essa explicação de Arendt nunca me convenceu. Motivo simples: Eichmann não era um personagem menor. Era um nazista convicto e um operacional decisivo do Holocausto.

Mas se a análise de Arendt não serve para Eichmann, o que ela nos diz sobre a “banalidade do mal” mantém a sua validade.

Quando falamos do comportamento dos alemães durante o Terceiro Reich, há teses para todos os gostos.

Os alemães colaboraram com o regime (ou, pelo menos, não se opuseram) porque o antissemitismo era endêmico na sociedade.

Os alemães se submeteram a Hitler porque a reverência pela autoridade era um traço de caráter.

Os alemães toleraram a indignidade porque também temiam pelas suas vidas.

Ilustração feita com pinceladas fortes em preto que revelam um rosto de uma pessoa com óculos e uma mão sob ele
Angelo Abu/Folhapress

Admito que todas essas explicações sejam válidas. Mas a “banalidade do mal”, entendida como ausência de pensamento e de empatia, é a mais poderosa.

Que o diga Brunhilde Pomsel, que só agora conheci. O documentário intitula-se “Uma Vida Alemã” e consiste numa longa entrevista com essa mulher, que na altura das filmagens, em 2016, tinha 104 anos. Acabaria por morrer no ano seguinte.

Entendo o interesse pela personagem: não é todos os dias que encontramos uma das secretárias de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. E que nos tem a dizer Brunhilde com uma clareza impressionante?

De início, ela ensaia as explicações clássicas para a submissão: pais autoritários; educação prussiana; medo da ditadura. E ignorância, muita ignorância sobre assuntos políticos.

Mas, depois, nos momentos de confissão mais sincera, tudo que vemos é a mediocridade do pensamento e da imaginação.

Nas vésperas da derradeira vitória eleitoral dos nazistas, em março de 1933, Brunhilde inscreve-se no partido para conseguir um bom emprego.

Depois, já no Ministério da Propaganda, Brunhilde fala do salário (ótimo), dos colegas (simpáticos), das roupas (elegantes), dos móveis (modernos) e até do próprio Goebbels (sempre bem vestido, apesar de coxear).

Nem o fato de ter uma amiga judia, que lentamente foi desaparecendo da sua vida, é analisado com tempo e seriedade. Sabemos que foi assassinada em Auschwitz, no último ano da guerra, e não se fala mais do assunto.

Dizer que Brunhilde Pomsel representa o mal seria ridículo, até porque a própria, aos 104 anos, reconheceu a desumanidade do regime.

O documentário é importante por outro motivo: as tiranias só sobrevivem porque as pessoas banais aceitam o aberrante como normalidade. Essa falha de pensamento, essa sabotagem da imaginação moral, essa redução da ética à mera conveniência pessoal é o sonho úmido dos tiranos.

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos.

Geógrafos mapeiam estruturas territoriais e notam tendência de expansão da covid-19

Geógrafos mapeiam estruturas territoriais e notam tendência de expansão da covid-19

Avanço do coronavírus se dá principalmente pelo sistema rodoviário. Há uma área de concentração no Sul e Sudeste com dispersão reticular sobre o Centro-Oeste, Nordeste e Norte

LEIA DIRETO NA FONTE: Por Redação RBA

Interiorização da doença confirma que o país não chegou ao momento de falar em flexibilização das medidas de isolamento social, destaca geógrafo da USP1246

São Paulo – Um estudo do Grupo de Geógrafos para a Saúde associa as condições geográficas do território brasileiro às possibilidades de expansão da covid-19 e alerta para a tendência de interiorização da doença. A expansão é comprovada em mapa desenvolvido pelos pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá (UEM),  Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e do Instituto Adolfo Lutz que integram o grupo.

A cartografia traz descrita toda a infraestrutura do país, a começar pela localização dos principais aeroportos nas capitais brasileiras. Mas identifica como o principal eixo de penetração da covid-19 a malha rodoviária. Mais ao norte, os geógrafos também observam uma porção ligada ao transporte hidroviário, considerado outro tipo de vetor da doença na região. 

O mapa também agrega informações sobre as terras indígenas e áreas urbanas com aglomerações subnormais, como favelas e cortiços – territórios de maior vulnerabilidade ao coronavírus. Ao final, o resultado é a identificação da possibilidade de contágio e dispersão. Com uma área maior de concentração da doença principalmente no Sul, Sudeste e áreas mais próxima das faixas litorâneas do Nordeste, com dispersão em projeção reticular sobre o Centro-Oeste e Norte. 

Reprodução

Interiorização da doença 

“Estamos percebendo a tendência de interiorização da doença no Brasil”, reforça o professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São paulo (USP) Wagner Ribeiro em sua coluna no Jornal Brasil Atual.

“Isso permitiria, evidentemente, tomar ações de precaução. Essa infraestrutura que eles cartografam já era conhecida. A pergunta é por que não se usa um instrumento dessa importância para já preparar esses polos todos?”, contesta o geógrafo. 

Ao jornalista Glauco Faria, Ribeiro explica que o conhecimento dessa circulação seria fundamental para a elaboração de políticas públicas que evitassem maior propagação do vírus. Ao contrário disso, diversas cidades já começam a ver medidas de flexibilização do isolamento social, criticadas pelo professor da USP. 

No eixo São Paulo

Ribeiro lembra que no estado de São Paulo, onde o governo João Doria (PSDB) apresentou o chamado Plano São Paulo, já há dois meses os pesquisadores da Unesp alertaram sobre o sistema rodoviário. De acordo com o grupo, as grandes cidades têm a possibilidade de ampliar o fluxo da doença para os pequenos e médios municípios. 

Agora, o plano estadual, embora apresente os números da doença e a disponibilidade de leitos na região, desconsidera esses eixos de penetração. O que, segundo Ribeiro, pode agravar o quadro da covid-19 nas cidades.

“É uma situação em que você tem que ponderar três aspectos fundamentais: primeiro, estamos já no decréscimo de novos casos? Tudo indica que infelizmente não.  Segundo aspecto, qual que é a capacidade de transmissão? Isso (é melhor), quanto mais perto de 1. Mas nós ainda não chegamos nesse número ainda, estamos em números elevados. Cada indivíduo está transmitindo para duas, três, quatro pessoas”, pontua. “E, terceiro, a própria infraestrutura de saúde, nós estamos com indicadores mostrando que algumas situações, 80% e  90% dos leitos ocupados. O que é muito preocupante.”

“Nós estamos muito longe desses números e estamos voltando com atividades presenciais e de contato social. Isso certamente pode gerar um novo pico da pandemia. E diante disso o recado é que, apesar dessa flexibilização, fique em casa”, alerta. 

Foucault, as Palavras e as Coisas

Foucault, as Palavras e as Coisas

LEIA NO ORIGINAL: https://outraspalavras.net/sem-categoria/foucault-as-palavras-e-as-coisas/

É sintomático que Temer odeie o termo “golpe”. Nas “democracias” esvaziadas, não se tenta usurpar apenas o poder político, mas também o sentido dos termos.

2550922632_35a922351d_z_0

. Por isso, a Resistência é também um ato linguístico

Por Fran Alavina

Parafraseando um texto clássico de Michel Foucault, As palavras e As Coisas [Le Mots et Les Choses] que agora em 2016 completa 50 anos de sua primeira edição, podemos afirmar que o poder se exerce sobre as palavras e as coisas. E nesses dias trágicos da vida nacional popular, tal se mostra cada vez mais claramente. O pensador francês nos faz ver ao longo de sua obra, arguta e perspicaz, que o poder não se exerce apenas sob a forma dos aparelhos repressores — ou seja, o poder não é apenas aquele que se impõe pela força física, pela coação do corpo. O poder também se faz no e por meio dos discursos. Mesmo aqueles que não são proferidos dos clássicos lugares do poder, são discursos de poder. Por isso, o caráter discursivo do Golpe não é menor que seu caráter político. São indissociáveis, pois não há política sem discurso, não há vida política sem a ação das palavras que significam e ressignificam as coisas. Sem a palavra, sobra ao poder apenas a coação física, mas esta forma, embora possa ser mais rápida e direta, é menos sutil, portanto mais fácil de ser denunciada. Espinosa, pensador seiscentista, ao denunciar os mecanismos de poder, nos lembra que: “o maior poder é aquele que reina sobre os ânimos (…)”1. Ora, mas como se estrutura esse poder que dispensando a força física, se exerce diretamente sobre os ânimos? Ele se estrutura pelos discursos, é sustentado pelas palavras, uma vez que há uma vinculação direta entre os nossos ânimos e os sentidos das palavras e das coisas.

Desde os gregos, e depois com a tradição retórica civil dos romanos, é fato que a palavra detém maior força nos regimes democráticos e republicanos. A possibilidade da palavra pública torna vivaz a vida democrática, pois os outros regimes políticos são regimes da letra morta (quando na oligarquia o direito da multidão transforma-se nos privilégios de alguns), ou da palavra de um só (nos regimes monárquicos). Ora, segundo aqueles autores da antiguidade clássica, primeiros justificadores da vida democrática, onde a Democracia fenece, degenera-se conjuntamente a potência da livre palavra. Desse modo, todo livre discurso público, toda fala coletiva é índice de vivacidade do regime democrático.

Assim, quando em uma Democracia, as palavras e seus sentidos — que são um bem comum, cotidiano e simbólico de todos, posto que pertencem ao povo, que age delimitando e estabelecendo novos sentidos — são forçadas a mudar pelo árbitro de um, ou de um grupo particular, sabemos que há algo fora da normalidade democrática. Usurpações de poder nunca se restringem apenas à esfera institucional mais imediata. Se o poder se faz pelo discurso, de modo que o próprio discurso é um elemento de poder, o discurso é o poder que se faz não apenas sobre os falantes, mas também se exerce sobre o próprio discurso, isto é, se exerce também sobre as palavras e os termos, que são a unidade mínima de todo discurso. O comando discursivo é a voz do poder; e o silêncio, o signo da obediênciaconsentida ou imposta.

É próprio dos regimes totalitários proibirem o uso de termos, promovendo um tipo de higienização da língua e dos discursos. Na Itália fascista de Mussolini, por exemplo, procurou-se varrer do território italiano todo falar e expressividade dialetal. A língua do povo era tida como indigna da suposta supremacia do novo regime. Supremacia que também deveria ser linguística e expressiva. No Brasil, este caráter fascista da imposição linguística e vocabular se exerce todos os dias pelo ódio de classe e pela busca de distinção social, quando aqueles que dominam a norma culta da língua usam este elemento como caráter distintivo e discriminatório. Tal vertente fascista se expressa mais ainda quando a língua do povo, gírias e construções discursivas forjadas no cotidiano nacional-popular são levadas para a mídia sob a forma do entretenimento. Sempre apresentada com a roupagem do exótico, escondendo por baixo da capa da curiosidade e do riso, o preconceito vocabular. Quem quiser ver uma boa amostra disso, acesse, por exemplo, os programas da Regina Casé, mais particularmente o “esquenta”. Neste, há a redução da língua do povo ao riso e ao escracho. O jeito espontâneo e criativo de falar do povo torna-se o divertimento dos telespectadores.

Ou ainda, por exemplo, quando os jovens da classe média paulistana tentam se apropriar das expressões da quebrada. Cada vez que pronunciam um mano, ou um suave em tom afirmativo, cometem um estupro vocabular. As palavras saem de suas bocas como que empurradas e constrangidas, pois são usurpadas do mundo de sentido no qual foram forjadas. São obrigados, os jovens da classe média, a usurpar termos, porque seu mundo linguístico é de uma penúria espantosa. A linguagem dos meios técnicos-midiáticos-informacionais lhes rouba a expressividade espontânea e a criatividade vocabular, uma vez que vivem atochados entre a imposição da norma culta e o poder da linguagem uniformizada das mídias. Dessa maneira, são forçados a ser delinquentes da língua. Não podendo usar a norma culta imitando sua melhor forma, por um lado; por outro, também não podendo criar novos termos, pois a uniformização midiática retira dos falantes a criatividade linguística, não lhes resta senão usurpar e copiar em uma imitação pobre e simplória. Fazem como fizeram seus pais ao saírem às ruas nos domingos protofascitas. Copiavam a melodiam da música de Vandré, Pra não dizer que não falei das flores, ou imitavam e usurpavam a palavra de ordem Lula, guerreiro do povo brasileiro, por uma frase de mesmo sujeito, mas de predicado diferente. Esta pobreza criativa da expressividade ganha sua forma mais loquaz no uso das camisas da CBF. Não poderia ser diferente, nada nos domingos protofascistas era espontâneo, pois não há espontaneidade no fascismo.

Essas usurpações discursivas cotidianas agora se mostram sob outro prisma, aquele político, dos discursos do centro do poder. O novo velho que chega pela usurpação, isto é, pelo Golpe, demanda a criação de legitimidade, operando em um sentido contrário ao da normalidade. Pois em regimes democráticos se supõe que quem chega ao poder, chega em virtude da legitimidade popular. De modo que essa legitimidade precede o próprio exercício do poder, logo este último é a própria expressão da legitimidade. Nos casos anormais, como o que vivemos, o exercício do poder precede a legitimidade. Por isso, sendo ilegítimo, necessita criar rapidamente uma legitimidade forçada, falsa e artificial, porém que sirva de cortina para esconder a violência brutal de chegar ao poder pela usurpação. Para tanto, a criação da legitimidade, precedida por uma violência, também ocorre de modo violento. Trata-se de anular as narrativas divergentes, de proibir termos, de querer dobrar à força o sentido das palavras e das coisas. Criando, dessa maneira, uma uniformização narrativa, que é o roubo da livre palavra, o cerceamento da divergência no espaço da palavra pública. É evidente que o poder usurpador e ilegítimo não pode fazer isso sozinho, pois o sentido das palavras e das coisas não é monopólio de ninguém.

Ocorre, porém, que isto, o furto da livre palavra não é algo extraordinário, posto que nas democracias contemporâneas a livre palavra é ameaçada hodiernamente pelos impérios mediáticos. De fato, são verdadeiros impérios, pois são propriedades de famílias que agem despoticamente em favor de seus próprios interesses. De tal modo, que o espaço público da livre palavra não é outra coisa que a defesa de interesses privados e escusos. Tal nos remete, desde já, para um dos sintomas de crise das democracias representativas contemporâneas. Estas estão intrinsecamente unidas à formação da esfera pública da livre expressão por meio da imprensa. Mas quando aquilo que antes esteve ligado à própria constituição da vida democrática torna-se seu veneno, estamos em um curto circuito constitutivo.

Não apenas o exercício do poder político é delegado aos representantes que o exercem em nome dos eleitores, mas a própria possibilidade da livre palavra, do direito ao espaço público da fala se dá por meio da representação. De modo que a livre expressão também está nas garras, isto é, presa aos limites da representação. Com efeito, este exercício da livre palavra feita de modo representativo ocorre quando aquilo que se considera ser a opinião pública se identifica diretamente com o monopólio midiático, quando a opinião pública nada mais é que o acordo forjado entre o editorial do grande jornal e a notícia manipulada da capa, sob o signo de ser um fato; e, não uma informação. Desse modo, quando a opinião pública é tragada pelo monopólio faccioso da notícia, já está montado todo um arsenal de usurpação da livre palavra que precede a própria usurpação do poder. Antes da usurpação feita pelo golpe institucional, já havia a usurpação da palavra, isto é, o golpe cotidiano que é dado contra toda voz divergente.

Donde a livre palavra estar constantemente ameaçada, mesmo na Democracia, pois a regra é a manipulação sob a forma da informação. Contudo, há coisas que são de tal modo absurdamente usurpadoras que nem a mais ferrenha manipulação pode esconder, ou escamotear. É o caso do uso da palavra GOLPE! Ora, sobre ela não se trata simplesmente de uma disputa de narrativas diferentes. Mas, da legitimidade das narrativas, sustentada no sentido, e não no termo em si. É o sentido da palavra que impõe ao usurpador a vergonha de não querer carregar sobre si o termo. Não só isso, a recusa do termo golpe esconde um sentido mais amplo, porém pouco discutido. Trata-se dos golpes contíguos que se seguem do golpe maior. Como é o caso da reforma da providência, cujo sentido do termo reformar é revogar. É o caso da flexibilização da CLT, cujo sentido é o mesmo: revogar. Também no caso da reforma do ensino médio, cujo sentido do termo é enfraquecer e fragilizar a educação pública. Há outros inúmeros exemplos do mesmo tipo, de distorção entre o termo e o sentido, mais que se nutrem de um sentido maior: golpe. Golpe contra a previdência, contra as leis trabalhistas, golpe contra o ensino publico. O governo usurpador, ao usurpar o poder, também busca usurpar o sentido das palavras e das coisas.

O jogo político também se decidirá sobre o plano linguístico, pois é no campo discursivo, apontando o real sentido dos termos, que a denúncia dos golpes contíguos, que tentam se seguir do golpe maior, deverá ser feita. Toda denúncia no jogo do poder também é um ato discursivo: que dá a ver o que deve mostrar2. O ato de desnudar o sentido que os termos do governo usurpador escondem também é um oportunidade para reconstruirmos nosso léxico político, que agora se nutre do sentido maior da Resistência. É preciso forjar o novo sentido da resistência, um novo vocabulário político que nasça das ruas, que agora ocupamos, e que não seja cooptada pela linguagem da homologação e da uniformização midiática.

Podem até distorcer os sentidos das palavras e das coisas em consonância com a usurpação do poder; podem tentar nos impor o monopólio da fala pública e a uniformização da opinião, mas não nos calarão! Podem nos cercear, mas não silenciaremos. Carregamos os sentidos da Resistência em nosso próprio corpo, desde o dia em que ousamos ser mais do que aquilo a que nos destinavam. A voz silenciada não emudece o pensamento, embora lhe possa desferir golpes lancinantes. Cada palavra de ordem que gritarmos, cada termo que forjarmos na nossa hodierna não trégua ao golpismo difuso, será um ato de restituição da livre palavra da qual se nutre a vida verdadeiramente democrática. A Resistência também é um ato linguístico: é o ato da fala persistente, é o ato da voz ousada que sustenta o sentido: das palavras e das coisas. E dar sentido às palavras e às coisas é um dos atos de resistências mais primordiais, quando além de usurparem o poder, querem usurpar até mesmo a nossa voz. Para tanto, sirvam-nos de inspiração as palavras de nosso maior poeta popular, Patativa do Assaré, homem que via o sentido das palavras nas próprias coisas, e nos advertia: “é melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”.

1 Espinosa, Tratado Teológico-Político, p. 252.

2 Foucault, As palavras e as Coisas, p. 23.

O Jair que há em nós

O Jair que há em nós

Por controversia.com.br Ver Original

Ivan Lago – O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade. Reprimido por anos, um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro, permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável.

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-Jair-que-ha-em-nos/52/47388

Ataque à imprensa mostra disposição autoritária e antidemocrática de Bolsonaro, dizem estudiosos

Na manhã desta terça (5), presidente mandou repórteres calarem a boca e atacou a Folha

José MarquesFlávio Ferreira SÃO PAULO

A atitude do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de mandar repórteres calarem a boca e de voltar a atacar a Folha com xingamentos, na manhã desta terça-feira (5), configurou uma conduta antidemocrática e passível até de enquadramento na esfera criminal, dizem especialistas em direito.

Entidades que representam o jornalismo e estudiosos sobre o autoritarismo também veem uma aproximação do presidente, ao menos no discurso, com uma ruptura da democracia.

Pela manhã, o presidente apareceu na porta do Palácio da Alvorada com uma cópia da edição impressa da Folha, e, referindo-se à manchete “Novo diretor da PF assume e acata pedido de Bolsonaro”, disse que não interferiu na corporação e chamou o jornal de “canalha”.

Com a manchete da Folha na mão, Bolsonaro manda jornalistas calarem a boca – Pedro Ladeira/Folhapress

Questionado sobre o tema por um repórter do jornal O Estado de São Paulo, disse: “Cala a boca, não perguntei nada”. “Folha de S.Paulo, um jornal patife e mentiroso”, disse. Indagado em seguida pela Folha, o presidente gritou novamente: “Cala a boca, cala a boca”.

Na internet, a manifestação do presidente foi comparada a uma entrevista de 1983, durante a ditadura militar, com o general Newton Cruz. O general mandou o repórter Honório Dantas, que questionava sobre retrocessos democráticos, calar a boca.

Quanto ao aspecto criminal do comportamento do mandatário, há divergência entre especialistas ouvidos pela Folha.

Para o professor da FGV-SP Oscar Vilhena, os atos de Bolsonaro configuraram crime de responsabilidade previsto na Constituição.

“O presidente mais uma vez hostiliza os meios de comunicação e em particular a Folha de S.Paulo. Esse tipo de conduta volta-se a intimidar e constranger o livre exercício da liberdade de imprensa. Ao afrontar o exercício de direito fundamental previsto na Constituição o presidente evidentemente incorre na hipótese do artigo 85, inciso 3”, afirma.

A avaliação de Vilhena é compartilhada pela criminalista e conselheira do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) Maria Elizabeth Queijo. “É um comportamento atentatório à liberdade de imprensa. Não é um direito só do jornalista, há o direito da sociedade de ser informada. E é um chefe de Estado, tem um peso, tem um significado. Isso me faz pensar que, no conjunto da obra, essa conduta possa, no limite, levar a uma responsabilidade maior dele.”

A criminalista ressalva que embora os crimes de responsabilidade possam levar à abertura de processos de impeachment, há um forte aspecto político nesse tipo de procedimento. Em razão disso, as manifestações desta terça, se consideradas de forma isolada, dificilmente levariam ao início de um caso desse tipo.

Marcelo Nobre, advogado que atua nos tribunais superiores e foi conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), diz que há decisões judiciais que já reconheceram a possibilidade de empresas como a Folha serem vítimas de crime contra a honra.

“Foram ofensas ditas por ele, injuriosas e difamatórias contra a Folha de S.Paulo. Há precedentes admitindo ofensas a pessoas jurídicas.”

Parte dos especialistas, porém, não considera que a conduta de Bolsonaro tenha configurado crime, apesar de ser reprovável.

“Não vejo no campo jurídico penal a possibilidade de se acionar o presidente por esse ataque, mas é um ataque à imprensa que merece resposta política. Do ponto de vista político, é lamentável, como cidadão, verificar esse destempero, essa falta de compostura do presidente”, diz o criminalista Alberto Zacharias Toron.

Já o advogado Rodrigo Dall’Acqua aponta que, ainda que “a manifestação do presidente seja chocante, o Código Penal não pune a grosseria”.

O conselheiro da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo e criminalista Leandro Sarcedo diz que o presidente mostrou um comportamento autoritário que merece reprovação, mas do ponto de vista técnico do direito penal não praticou um ato ilícito.

Acadêmicos de outras áreas veem um comportamento com traços de autoritarismo do presidente.

Professor de ciência política da UFMG, Leonardo Avritzer diz que Bolsonaro tem como projeto político se relacionar com os cidadãos sem moderadores, para evitar pluralismo de opinião. “Bolsonaro não chega a ser um líder autoritário, mas ele se enquadra naquilo que hoje a ciência política cada vez mais fala, que são aqueles líderes políticos que minam a democracia de dentro.”

A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz afirma que o presidente se aproxima cada vez mais de uma “onda autoritário-populista” internacional.

“São governos que acreditam, e ele [Bolsonaro] repete isso o tempo todo, que democracia é ganhar a eleição, quando a gente sabe que democracia começa quando se ganha a eleição. São governos que, quando ganham a eleição, passam a usar o estado como se fosse uma propriedade privada”, diz.

Para ela, esse tipo de governo acha que tem uma comunicação direta com o povo, por meio das redes sociais, e não precisa dos especialistas e da imprensa. “Por isso o ataque constante de Bolsonaro e da sua equipe aos cientistas, à academia, às instituições e, em particular, aos jornalistas.”

Entidades que representam a imprensa e seus profissionais também condenaram a atitude do presidente.

A ANJ (Associação Nacional de Jornais) disse, em nota, que “mais uma vez, o presidente mostra sua incapacidade de compreender a atividade jornalística e externa seu caráter autoritário”.

“Cala a bora já morreu, senhor presidente”, declarou a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em nota. “Ao cassar a palavra dos jornalistas, Bolsonaro tentou impedir que uma questão de interesse público fosse tratada.”

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) afirma que o presidente “demonstrou mais uma vez seu desprezo pela liberdade de imprensa e de expressão, dois princípios fundamentais em qualquer democracia”.

Ataques do presidente à imprensa passam de ‘arroubos’ a tática consciente

Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas

LEIA DIRETO NO ORIGINAL fOLHA DE SÃO PAULO:

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/ataques-do-presidente-a-imprensa-passam-de-arroubos-a-tatica-consciente.shtml?origin=folha

Rodrigo Guimarães Nunes

Já se observou que a política brasileira hoje é algo entre “Sexta-Feira 13” e “Feitiço do Tempo”. Os domingos são nosso Dia da Marmota, o momento pré-agendado para que o presidente apareça com apoiadores para defender uma ruptura da ordem institucional que renegará no dia seguinte, mas dali a dois dias sugerirá de novo.

Quando as referências ao nazismo provocaram a demissão do secretário da Cultura Roberto Alvimcomentei nesta Folha que ele caíra não por suas preferências políticas, mas por ser pego manifestando-as. A punição não fora pelo conteúdo de sua performance, mas porque ele perdera a mão num jogo que praticamente todo o entorno de Jair Bolsonaro joga diariamente há tempos.

Houve quem entendesse “perder a mão” como uma minimização do ocorrido, mas o sentido era outro.

Tratava-se de indicar que, nesta série de repetições, não estamos lidando com “arroubos” que serão depois “corrigidos” “quando a cabeça esfriar”, mas com uma tática consciente que se aproveita da disposição dos outros de seguir tratando tais momentos como exceções para continuar disseminando sua mensagem.

O presidente Jair Bolsonaro exibe reprodução da capa da edição desta terça (5) da Folha a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada
O presidente Jair Bolsonaro exibe reprodução da capa da edição desta terça (5) da Folha a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada – Ueslei Marcelino/Reuters

Os compartilhamentos indignados na internet, os editoriais e as notas oficiais de repúdio não impõem limites a este mecanismo, eles são parte já contabilizada do mesmo. Se a grita for alta, basta emitir um desmentido ou queixar-se das más interpretações —e voltar à carga dias depois.

O erro de Alvim foi ter ido tão longe que deixou de ser possível fingir que ele se excedera ou enganara. Ele quebrou o pacto de plausibilidade que permite que um lado finja não querer dizer aquilo que efetivamente diz enquanto o outro finge acreditar quando eles pedem desculpas; ele não ajudou as instituições a ajudá-lo.

A questão é: se cada vez mais gente sabe que esta é a natureza da brincadeira, por que continua brincando?

A pergunta tem voltado com força porque o tom e a a frequência dos “arroubos” vindos do Palácio do Planalto têm subido a olhos vistos. Especialmente em relação à imprensa, já que, nos últimos três dias apenas, vimos um jornalista agredido por uma turba bolsonarista e o próprio Bolsonaro atacar a Folha e um de seus funcionários.

Uma primeira resposta poderia apontar para a “falha no sistema” que a extrema direita aprendeu a explorar. Nas vacas magras do jornalismo contemporâneo, conteúdo “polêmico” (preconceituoso, calunioso, falso etc.) vende, e quem oferecer este tipo de conteúdo receberá cobertura midiática grátis.

Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas, e uma indústria para prover este serviço em troca de cliques e publicidade. Isto faz com que, em países onde a extrema direita avança, a imprensa se comporte como um viciado, incapaz de dizer não àquilo que sabe poder matá-lo.

É uma escolha difícil, entre o imperativo do lucro e o instinto de autopreservação. Mas assim como o problema do viciado é confiar que com ele será diferente, talvez falte às empresas de comunicação convencer-se que os riscos são reais e seu status atual não necessariamente as protegerá da degradação do ambiente democrático.

Só isto explica que as Redações ainda não tenham tornado obrigatórias medidas que têm se tornado mais comuns nos últimos tempos. Medidas como jamais dar o título (que todos leem) para uma afirmação falsa que será desmentida no corpo do texto (que pouca gente lê) sem deixar clara sua falsidade.

Ou como nunca divulgar o “outro lado” de um debate sem deixar claro, quando for o caso, que trata-se de uma posição minoritária, desacreditada pela maioria dos membros de uma comunidade de pares, alvo de críticas e suspeitas etc.

O dever jornalístico de oferecer todos os ângulos não pode dar peso igual àquilo que é praticamente consenso e o que é erro ou fabricação.

Mas talvez seja hora de um pouco mais de ousadia. Circulou recentemente no Twitter que diversas redes de TV nos EUA haviam decidido não mais divulgar os pronunciamentos do presidente Donald Trump sobre a Covid-19 por entender que isto deixara de ser de interesse público.

Ironicamente, a notícia era falsa, embora baseada no fato que muitas emissoras não dão espaço ao vivo ao presidente sem checadores à mão.

Mas ela gera um bom experimento de pensamento, especialmente quando um estudo aponta correlação entre declarações de Bolsonaro e a queda de adesão à quarentena. E se os principais meios de comunicação deixassem de cobrir o “cercadinho” do Alvorada? E se decidissem parar de divulgar afirmações que servem para criar confusão e diminuir a eficácia das medidas sanitárias já tomadas?

O crescimento recente da extrema direita repete um padrão observado nos anos 1930: uma grande crise financeira seguida por uma crise de legitimidade em que as elites, incapazes de chegar ao poder com forças políticas próprias, se convencem que podem usar a extrema direita contra a esquerda e a favor de seus privilégios.

Sabemos como a história acabou da primeira vez: as elites só descobriram tarde demais que eram elas que estavam sendo usadas.

Penso nisso sempre que, diante do último abuso de poder do atual governo, os jornais se contorcem para encontrar equivalente nos governos do PT e reforçar a ideia de uma polarização simétrica entre esquerda e extrema direita.

Não percebem que estão reforçando a narrativa bolsonarista na qual tudo, inclusive o ataque à imprensa e às liberdades democráticas, se justifica contra uma ameaça fantasma comunista? Ou acreditam poder seguir explorando-a indefinidamente? Espero que em breve não descubramos da pior maneira que estavam errados.

Rodrigo Guimarães Nunes

Professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio

O presidente comete crimes, e daí?

Um país não pode enfrentar uma grave crise sanitária sob liderança de um celerado

LEIA NO ORIGINAL: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2020/04/o-presidente-comete-crimes-e-dai.shtml

Será de Jair Bolsonaro a responsabilidade pelas mortes evitáveis da pandemia. A conduta estimulou o contágio, o discurso incentivou o desrespeito a ações sanitárias, a gestão desossou a capacidade estatal e tumultuou o ministério.

Mas quem pode cobrar a conta de alguém cuja delinquência se tolera há 30 anos?

Bolsonaro sempre sambou em cima da lotérica jurisprudência constitucional brasileira. Celebrou a ditadura, a tortura e a milícia, pediu fuzilamento e guerra civil que “mate uns 30 mil”, ameaçou mulher de estupro e festejou a morte.

O STF nunca foi capaz de discernir, na escatologia verbal e no discurso de ódio, o abuso da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. O Congresso não notou qualquer ofensa à ética parlamentar.

Permitiram que chegasse à Presidência por meio de campanha de desinformação financiada por caixa dois. O TSE segue o “tempo judicial” no modo aleatório. Esperemos. Continuam permitindo que o presidente banalize o crime de responsabilidade e, na pandemia, o crime comum também.

Não bastasse a dieta de apreensão cotidiana que a pandemia nos aplica, a desordem política é administrada em doses diárias de agressão à democracia. Enquanto o governo e o presidente boicotam medidas de contenção da pandemia, o pior cenário de desastre se avizinha.

Fazer justiça a Bolsonaro não pode mais se traduzir na crítica à sua ignorância, na ironia à sua carranca rude e obtusa, ou à masculinidade mal resolvida. Bolsonaro pode ser vulgar e tosco como nunca se viu na Presidência, mas, antes de qualquer coisa, comete crimes. Sobre crimes deve haver consequências jurídicas, não só eleitorais e morais.

Seus crimes de responsabilidade estão definidos na Constituição e na lei 1.079. As dezenas de atos criminosos se distribuem em três categorias: violação de direitos, ataque à autonomia institucional e ofensa à dignidade, honra e decoro do cargo.

Temos a causa de impeachment juridicamente mais sólida da história. Nomear amigo do filho para chefiar a Polícia Federal é exemplar da afronta. “E daí?”, debochou com a certeza de sua impunidade.

Seu crime comum praticado à luz do dia está definido no artigo 268 do Código Penal. É crime contra a saúde pública, com pena de detenção.

Pedidos de impeachment se avolumam na Câmara; ao procurador-geral da República chegam notícias-crime; na gaveta do TSE dorme um pedido de cassação de chapa. São caminhos legítimos e alternativos. Dependem da coragem e tirocínio das autoridades.

Segundo mandamento de prudência, não se tira presidente em uma pandemia. Outro mandamento diz que um país não pode enfrentar grave crise sanitária sob liderança de um celerado. Esse mandamento revoga o anterior. A exceção prevalece sobre a regra.

Stefan Zweig conta em suas memórias como Hitler testava uma pílula de maldade de cada vez. Esperava a reação e soltava outra dose, até que se corroessem as defesas institucionais. “Bastava Hitler pronunciar a palavra ‘paz’ para entusiasmar jornais e fazê-los esquecer de seus atos passados.” Zweig relata a dor de olhar para trás e ver que havia janelas de oportunidade para agir, que se fecharam enquanto procuravam a moderação de Hitler.

Antonio Scurati, autor de bestseller sobre a vida de Mussolini, descreve como pensadores da altura de Benedetto Croce menosprezaram a malignidade do Duce. Pensavam que era apenas um personagem mais histriônico do teatro da política. “Croce não entendeu nada sobre o fascismo quando este foi constituído.”

Ainda não atinamos a magnitude do bolsonarismo. O certo é que subestimamos. Talvez Bolsonaro seja só o começo de um processo de autocratização definitivo. Ou um acidente reversível e pedagógico, apesar do custo. A janela histórica parece ainda nos conceder uma fresta, quem sabe? Na dúvida, testar é imperativo de sobrevivência.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.