Tiranias só sobrevivem porque pessoas aceitam o aberrante como normal

LEIA NO ORIGINAL: Leia no original: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2020/06/tiranias-so-sobrevivem-porque-pessoas-aceitam-o-aberrante-como-normal.shtml

João Pereira Coutinho

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos

Foi Hannah Arendt quem popularizou a expressão “banalidade do mal”. Quando estava em Jerusalém, cobrindo para a New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann, Arendt concluiu que aquele homem não era o monstro amoral que se poderia imaginar.

Era apenas um funcionário que cumprira ordens sem pensar seriamente no que fazia. Essa explicação de Arendt nunca me convenceu. Motivo simples: Eichmann não era um personagem menor. Era um nazista convicto e um operacional decisivo do Holocausto.

Mas se a análise de Arendt não serve para Eichmann, o que ela nos diz sobre a “banalidade do mal” mantém a sua validade.

Quando falamos do comportamento dos alemães durante o Terceiro Reich, há teses para todos os gostos.

Os alemães colaboraram com o regime (ou, pelo menos, não se opuseram) porque o antissemitismo era endêmico na sociedade.

Os alemães se submeteram a Hitler porque a reverência pela autoridade era um traço de caráter.

Os alemães toleraram a indignidade porque também temiam pelas suas vidas.

Ilustração feita com pinceladas fortes em preto que revelam um rosto de uma pessoa com óculos e uma mão sob ele
Angelo Abu/Folhapress

Admito que todas essas explicações sejam válidas. Mas a “banalidade do mal”, entendida como ausência de pensamento e de empatia, é a mais poderosa.

Que o diga Brunhilde Pomsel, que só agora conheci. O documentário intitula-se “Uma Vida Alemã” e consiste numa longa entrevista com essa mulher, que na altura das filmagens, em 2016, tinha 104 anos. Acabaria por morrer no ano seguinte.

Entendo o interesse pela personagem: não é todos os dias que encontramos uma das secretárias de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. E que nos tem a dizer Brunhilde com uma clareza impressionante?

De início, ela ensaia as explicações clássicas para a submissão: pais autoritários; educação prussiana; medo da ditadura. E ignorância, muita ignorância sobre assuntos políticos.

Mas, depois, nos momentos de confissão mais sincera, tudo que vemos é a mediocridade do pensamento e da imaginação.

Nas vésperas da derradeira vitória eleitoral dos nazistas, em março de 1933, Brunhilde inscreve-se no partido para conseguir um bom emprego.

Depois, já no Ministério da Propaganda, Brunhilde fala do salário (ótimo), dos colegas (simpáticos), das roupas (elegantes), dos móveis (modernos) e até do próprio Goebbels (sempre bem vestido, apesar de coxear).

Nem o fato de ter uma amiga judia, que lentamente foi desaparecendo da sua vida, é analisado com tempo e seriedade. Sabemos que foi assassinada em Auschwitz, no último ano da guerra, e não se fala mais do assunto.

Dizer que Brunhilde Pomsel representa o mal seria ridículo, até porque a própria, aos 104 anos, reconheceu a desumanidade do regime.

O documentário é importante por outro motivo: as tiranias só sobrevivem porque as pessoas banais aceitam o aberrante como normalidade. Essa falha de pensamento, essa sabotagem da imaginação moral, essa redução da ética à mera conveniência pessoal é o sonho úmido dos tiranos.

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos.

Deixe um comentário