Archive for the ‘Outro Lado’ Category

O ministro que descobriu que era negro

Assimilados se esquecem de que a tolerância com seus erros é outra

Ler direto na Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/06/o-ministro-que-descobriu-que-era-negro.shtml

Dodô Azevedo

Dentre os modelos de recepção a imigrantes, a academia é encantada com a dicotomia assimilacionismo versus multiculturalismo. O primeiro baseia-se na ideia de que equidade e igualdade podem ser alcançadas através da adoção de valores coletivos, que evitem diferenciações de caráter cultural. O segundo, também conhecido com modelo pluralista, baseia-se no investimento estatal na diversidade cultural.

Um negro que migra para um país assimilacionista em poucas décadas esquece a que matriz pertence. Esquece a cultura, os valores e as crenças de seus antepassados.

Acontece que nós somos nossos antepassados. O avô de George Floyd, morto por um policial nos EUA, se resolvesse, 70 anos atrás, resistir à prisão, mesmo que sendo inocente, teria tido o mesmo tratamento que teve o seu neto.

Carlos Alberto Decotelli assina posso como ministro com o presidente Jair Bolsonaro, na quinta (25)
Carlos Alberto Decotelli assina posso como ministro com o presidente Jair Bolsonaro, na quinta (25) – Marcos Corrêa – 25.jun.20/Presidência da República

Já um imigrante sueco, nos EUA, teria, sob as mesmas condições, tido outro tratamento. E também seu avô, seu ancestral. Se o assimilacionismo é um atalho para imigrantes brancos, é um alçapão para negros. Por um motivo muito simples: negros não chegaram às Américas como imigrantes, e sim como escravos.

Há modos e modos de escapar da condição de escravo. Uma é o confronto. A outra é deixando-se assimilar. Tornando-se um negro conveniente. Aquele que não só não cobra quem o oprime mas torna-se seu avalista. No Brasil e nos EUA, os negros convenientes encontram um bocado de portas abertas. Tantas que, com o passar do tempo, até esquecem que são negros. Até esquecem que, por mais que eles próprios já não se vejam mais como negros, a sociedade nunca deixou de vê-los assim.

Então, esses negros começam a agir como se desfrutassem dos mesmos privilégios que os brancos, ou qualquer raça ou etnia que não tenha entrado naquela sociedade como escrava: roubam, matam, mentem. Certos de que serão julgados com a mesma régua com a qual se julga todos os ancestrais de imigrantes. Quando descobrem que a tolerância com seus erros é outra, vem a descoberta. Ele havia esquecido que era negro.

Carlos Decotelli tem, no Rio de Janeiro, um histórico de intolerância com religiões de matriz africana. Cristão batista, é um negacionista do sistema de crenças de suas avós e bisavós e tetravós. Nas religiões que combate —e terreiros são profanados e destruídos maioritariamente nas regiões da cidade controlada por milícia, curral eleitoral do atual presidente Jair Bolsonaro e de seu filho, o atual senador Flávio Bolsonaro—, mentira e injustiça não são toleradas. No sistema de crenças pelo qual se deixou assimilar, basta confessar arrependimento que um deus único e misericordioso perdoa. Ou seja, vale tudo.

No Brasil, tem vida curta um ancestral de escravos que ofende os seus. Que ousa mentir como um ancestral de imigrantes, presumindo que desfrutará do mesmo tratamento que eles. Mas igualmente ofensivo é não considerar os motivos que fazem um negro negar a si e aos que o geraram. Não entender o que faz um negro a esquecer a cor que tem. E não chamar a atenção para o fato de que dinâmicas assim sustentam a estrutura econômica que nos envolve, nos corrompe e determina até nossas traições.

Da infantaria persa do comandante Mardónio às invencíveis colunas mongóis de vanguarda do general Subotai, a carreira militar é, há quase dezena de milhares de anos, um atalho pelo qual podem ascender as populações marginalizadas. Os donos das riquezas nunca se expõem: designam a tarefa a qualquer um que se disponha. Para tentar não ser negro no Brasil, brasileiros negros recorrem, muitas vezes, à carreira militar, como o ex-ministro Decotelli. É, muitas vezes, o único caminho permitido por quem detém privilégios.

Uma das torturas preferidas do herói dos Bolsonaros, o coronel Brilhante Ustra, era obrigar mulheres a beberem sua própria urina. Obviamente, o Ustra só possuía coragem de fazer isso com mulheres amarradas, imobilizadas e dopadas. Vencia pelo cansaço. Em algum momento, a pessoa sob tortura não aguentava e dizia o que fosse necessário para satisfazer a valentia de araque do torturador.

A condição do descendente de escravos no Brasil é, diariamente, essa: beber a própria urina e apanhar imobilizado, dopado. Uma hora o indivíduo cansa. E para sair dessa situação, se branquifica.

Ser negro, no Brasil, é lindo, porque além de tudo é um atestado de bravura maior do que se pode conseguir em qualquer exército. Porque se trata de uma guerra minuto a minuto. A única guerra verdadeira que há no Brasil. Por isso, é perverso não tentar se colocar no lugar de desertores. De Decotellis.

Ser negro dá trabalho.

O lugar do branco na luta antirracista

LEIA NO ORIGINAL: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2020/06/o-lugar-do-branco-na-luta-antirracista.shtml

Vera Iaconelli

Sentir vergonha é um bom começo, mas não basta

É triste reconhecer que nós brancos somos a banda podre da história nacional. Desde que nossa ascendência aportou por aqui, achou que os nativos não eram merecedores de viver nesta terra paradisíaca e comercializou pessoas negras para fazer o trabalho duro. Não satisfeitos, criamos –a partir da abolição– teorias pseudocientíficas que defendiam sermos o gabarito da humanidade e que serviam para justificar a manutenção de nosso status quo. Para aparar as arestas, retratamos Jesus loiro e de olhos azuis, escamoteando sua origem do Oriente Médio.

As demais etnias seriam uma versão inferior de nós, assim como a mulher seria uma versão inferior do homem. Juntando cor de pele e gênero fica óbvio o porquê das mulheres negras formarem a base de nossa pirâmide econômica e social.

Manifestam marcham durante protesto nos EUA após a morte de George Floyd por um policial branco
Manifestam marcham durante protesto nos EUA após a morte de George Floyd por um policial branco – Brown Frederic J. – 3.jun.20/AFP

O sabor de ficar na berlinda pode ser mais amargo para quem está acostumado a tamanho lugar de privilégio, que mal consegue reconhecê-lo. Talvez você queira se defender disso acusando negros e índios de fazerem mimimi, vitimização. Poupe a nós brancos de mais constrangimentos e busque ajuda para lidar com sua ferida narcísica. Se você pensou em “racismo reverso”, pode parar. Racismo é uma opressão estrutural baseada em falsos pressupostos raciais inventados pelos brancos. É totalmente ilógico imaginá-lo “reverso”. Recomendo o vídeo do youtuber Yuri Marçal parodiando Luísa Nunes Brasil, senhora que resume o que de pior nós brancos produzimos nos últimos 500 anos. Suas pérolas racistas, somadas à misoginia explícita revelam a incapacidade de reconhecer-se minimamente, seja como mulher oprimida, seja como branca opressora.

Se quisermos entender a experiência de: não se ver representado em nenhuma mídia, não ocupar cargos de liderança ou classes de ensino superior, ser visto com desconfiança nas lojas, bancos e supermercados por não ser considerado consumidor e ser suposto ladrão, ter seu corpo –pele, cabelos, lábios, quadris– tido como exótico e alvo de curiosidade, ter medo da aproximação da polícia e inúmeros outros exemplos de tratamento desigual, temos que dar voz a quem vive e estuda a questão. Lélia Gonzalez, Angela Davis, Franz Fanon, Silvio de Almeida, W. E. B. Du Bois, Djamila Ribeiro, Lilia Schwarcz –entre tantos outros– nos mostram o caminho. Estudos sobre a branquitude crítica e acrítica; a diferenciação entre racismo, discriminação e preconceito; racismo estrutural; a história silenciada da luta dos negros; a criação da ideia de raça são básicos e devem fazer parte do nosso dia a dia.

Sendo uma pessoa que preza a solidariedade e a bondade –possível– entre humanos não é fácil ser acusado de racista, apropriador cultural, privilegiado, mas é crucial refletir sobre quem somos e qual nosso lugar no condomínio Brasilis. Saber-se parte ativa da engrenagem que tritura negros e índios funciona como um choque de responsabilização e exige que tomemos decisões concretas na direção contrária. O próximo passo para os brancos antirracistas é transformar nossa vergonha em atos que promovam mudanças reais.

Adianto que ações espetaculosas que colocam o branco como redentor dos negros podem ser interpretadas como dificuldade em ceder o protagonismo. No limite, é o risco da comovida e bem intencionada campanha #Itakeresponsibility, na qual atores brancos afirmam seu apoio ao movimento antirracista norte americano. Aprendamos com as críticas e lutemos juntos, porque é disso que se trata.

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Tiranias só sobrevivem porque pessoas aceitam o aberrante como normal

LEIA NO ORIGINAL: Leia no original: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2020/06/tiranias-so-sobrevivem-porque-pessoas-aceitam-o-aberrante-como-normal.shtml

João Pereira Coutinho

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos

Foi Hannah Arendt quem popularizou a expressão “banalidade do mal”. Quando estava em Jerusalém, cobrindo para a New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann, Arendt concluiu que aquele homem não era o monstro amoral que se poderia imaginar.

Era apenas um funcionário que cumprira ordens sem pensar seriamente no que fazia. Essa explicação de Arendt nunca me convenceu. Motivo simples: Eichmann não era um personagem menor. Era um nazista convicto e um operacional decisivo do Holocausto.

Mas se a análise de Arendt não serve para Eichmann, o que ela nos diz sobre a “banalidade do mal” mantém a sua validade.

Quando falamos do comportamento dos alemães durante o Terceiro Reich, há teses para todos os gostos.

Os alemães colaboraram com o regime (ou, pelo menos, não se opuseram) porque o antissemitismo era endêmico na sociedade.

Os alemães se submeteram a Hitler porque a reverência pela autoridade era um traço de caráter.

Os alemães toleraram a indignidade porque também temiam pelas suas vidas.

Ilustração feita com pinceladas fortes em preto que revelam um rosto de uma pessoa com óculos e uma mão sob ele
Angelo Abu/Folhapress

Admito que todas essas explicações sejam válidas. Mas a “banalidade do mal”, entendida como ausência de pensamento e de empatia, é a mais poderosa.

Que o diga Brunhilde Pomsel, que só agora conheci. O documentário intitula-se “Uma Vida Alemã” e consiste numa longa entrevista com essa mulher, que na altura das filmagens, em 2016, tinha 104 anos. Acabaria por morrer no ano seguinte.

Entendo o interesse pela personagem: não é todos os dias que encontramos uma das secretárias de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. E que nos tem a dizer Brunhilde com uma clareza impressionante?

De início, ela ensaia as explicações clássicas para a submissão: pais autoritários; educação prussiana; medo da ditadura. E ignorância, muita ignorância sobre assuntos políticos.

Mas, depois, nos momentos de confissão mais sincera, tudo que vemos é a mediocridade do pensamento e da imaginação.

Nas vésperas da derradeira vitória eleitoral dos nazistas, em março de 1933, Brunhilde inscreve-se no partido para conseguir um bom emprego.

Depois, já no Ministério da Propaganda, Brunhilde fala do salário (ótimo), dos colegas (simpáticos), das roupas (elegantes), dos móveis (modernos) e até do próprio Goebbels (sempre bem vestido, apesar de coxear).

Nem o fato de ter uma amiga judia, que lentamente foi desaparecendo da sua vida, é analisado com tempo e seriedade. Sabemos que foi assassinada em Auschwitz, no último ano da guerra, e não se fala mais do assunto.

Dizer que Brunhilde Pomsel representa o mal seria ridículo, até porque a própria, aos 104 anos, reconheceu a desumanidade do regime.

O documentário é importante por outro motivo: as tiranias só sobrevivem porque as pessoas banais aceitam o aberrante como normalidade. Essa falha de pensamento, essa sabotagem da imaginação moral, essa redução da ética à mera conveniência pessoal é o sonho úmido dos tiranos.

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos.

Ataques do presidente à imprensa passam de ‘arroubos’ a tática consciente

Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas

LEIA DIRETO NO ORIGINAL fOLHA DE SÃO PAULO:

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/ataques-do-presidente-a-imprensa-passam-de-arroubos-a-tatica-consciente.shtml?origin=folha

Rodrigo Guimarães Nunes

Já se observou que a política brasileira hoje é algo entre “Sexta-Feira 13” e “Feitiço do Tempo”. Os domingos são nosso Dia da Marmota, o momento pré-agendado para que o presidente apareça com apoiadores para defender uma ruptura da ordem institucional que renegará no dia seguinte, mas dali a dois dias sugerirá de novo.

Quando as referências ao nazismo provocaram a demissão do secretário da Cultura Roberto Alvimcomentei nesta Folha que ele caíra não por suas preferências políticas, mas por ser pego manifestando-as. A punição não fora pelo conteúdo de sua performance, mas porque ele perdera a mão num jogo que praticamente todo o entorno de Jair Bolsonaro joga diariamente há tempos.

Houve quem entendesse “perder a mão” como uma minimização do ocorrido, mas o sentido era outro.

Tratava-se de indicar que, nesta série de repetições, não estamos lidando com “arroubos” que serão depois “corrigidos” “quando a cabeça esfriar”, mas com uma tática consciente que se aproveita da disposição dos outros de seguir tratando tais momentos como exceções para continuar disseminando sua mensagem.

O presidente Jair Bolsonaro exibe reprodução da capa da edição desta terça (5) da Folha a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada
O presidente Jair Bolsonaro exibe reprodução da capa da edição desta terça (5) da Folha a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada – Ueslei Marcelino/Reuters

Os compartilhamentos indignados na internet, os editoriais e as notas oficiais de repúdio não impõem limites a este mecanismo, eles são parte já contabilizada do mesmo. Se a grita for alta, basta emitir um desmentido ou queixar-se das más interpretações —e voltar à carga dias depois.

O erro de Alvim foi ter ido tão longe que deixou de ser possível fingir que ele se excedera ou enganara. Ele quebrou o pacto de plausibilidade que permite que um lado finja não querer dizer aquilo que efetivamente diz enquanto o outro finge acreditar quando eles pedem desculpas; ele não ajudou as instituições a ajudá-lo.

A questão é: se cada vez mais gente sabe que esta é a natureza da brincadeira, por que continua brincando?

A pergunta tem voltado com força porque o tom e a a frequência dos “arroubos” vindos do Palácio do Planalto têm subido a olhos vistos. Especialmente em relação à imprensa, já que, nos últimos três dias apenas, vimos um jornalista agredido por uma turba bolsonarista e o próprio Bolsonaro atacar a Folha e um de seus funcionários.

Uma primeira resposta poderia apontar para a “falha no sistema” que a extrema direita aprendeu a explorar. Nas vacas magras do jornalismo contemporâneo, conteúdo “polêmico” (preconceituoso, calunioso, falso etc.) vende, e quem oferecer este tipo de conteúdo receberá cobertura midiática grátis.

Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas, e uma indústria para prover este serviço em troca de cliques e publicidade. Isto faz com que, em países onde a extrema direita avança, a imprensa se comporte como um viciado, incapaz de dizer não àquilo que sabe poder matá-lo.

É uma escolha difícil, entre o imperativo do lucro e o instinto de autopreservação. Mas assim como o problema do viciado é confiar que com ele será diferente, talvez falte às empresas de comunicação convencer-se que os riscos são reais e seu status atual não necessariamente as protegerá da degradação do ambiente democrático.

Só isto explica que as Redações ainda não tenham tornado obrigatórias medidas que têm se tornado mais comuns nos últimos tempos. Medidas como jamais dar o título (que todos leem) para uma afirmação falsa que será desmentida no corpo do texto (que pouca gente lê) sem deixar clara sua falsidade.

Ou como nunca divulgar o “outro lado” de um debate sem deixar claro, quando for o caso, que trata-se de uma posição minoritária, desacreditada pela maioria dos membros de uma comunidade de pares, alvo de críticas e suspeitas etc.

O dever jornalístico de oferecer todos os ângulos não pode dar peso igual àquilo que é praticamente consenso e o que é erro ou fabricação.

Mas talvez seja hora de um pouco mais de ousadia. Circulou recentemente no Twitter que diversas redes de TV nos EUA haviam decidido não mais divulgar os pronunciamentos do presidente Donald Trump sobre a Covid-19 por entender que isto deixara de ser de interesse público.

Ironicamente, a notícia era falsa, embora baseada no fato que muitas emissoras não dão espaço ao vivo ao presidente sem checadores à mão.

Mas ela gera um bom experimento de pensamento, especialmente quando um estudo aponta correlação entre declarações de Bolsonaro e a queda de adesão à quarentena. E se os principais meios de comunicação deixassem de cobrir o “cercadinho” do Alvorada? E se decidissem parar de divulgar afirmações que servem para criar confusão e diminuir a eficácia das medidas sanitárias já tomadas?

O crescimento recente da extrema direita repete um padrão observado nos anos 1930: uma grande crise financeira seguida por uma crise de legitimidade em que as elites, incapazes de chegar ao poder com forças políticas próprias, se convencem que podem usar a extrema direita contra a esquerda e a favor de seus privilégios.

Sabemos como a história acabou da primeira vez: as elites só descobriram tarde demais que eram elas que estavam sendo usadas.

Penso nisso sempre que, diante do último abuso de poder do atual governo, os jornais se contorcem para encontrar equivalente nos governos do PT e reforçar a ideia de uma polarização simétrica entre esquerda e extrema direita.

Não percebem que estão reforçando a narrativa bolsonarista na qual tudo, inclusive o ataque à imprensa e às liberdades democráticas, se justifica contra uma ameaça fantasma comunista? Ou acreditam poder seguir explorando-a indefinidamente? Espero que em breve não descubramos da pior maneira que estavam errados.

Rodrigo Guimarães Nunes

Professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio

Metáfora da guerra não faz bem à saúde pública ou à democracia

Lúcia Guimarães

LEIA DIRETO NA FONTE: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/lucia-guimaraes/2020/04/metafora-da-guerra-nao-faz-bem-a-saude-publica-ou-a-democracia.shtml

Aplacar a pandemia mais devastadora em um século é fazer guerra?

metáfora da guerra está na boca de governantes e outras figuras públicas em todas as línguas. A negligência homicida de negacionistas no poder serviu de estímulo para a comparação feita por médicos, cientistas e público informado que sempre souberam não se tratar de uma gripezinha.

Mas aplacar a pandemia mais devastadora em um século é fazer guerra? Se palavras têm consequências, metáforas produzem resultados imprevisíveis e despertam certas reações no inconsciente coletivo.

Como, por exemplo, uma “guerra” à pobreza transformada em guerra aos pobres (“googlar” Ronald Reagan). Ou a guerra inicial à Aids, transformada em hostilidade epidêmica contra homens gays.

Guerras erodem democracias —“não é hora de pensar politicamente”. A proteção dos direitos humanos pode ser vista como prejudicial à missão maior. E guerras distraem a atenção de preocupações cotidianas e urgentes, como o sistema de saúde mais disfuncional de uma democracia desenvolvida.

Não será possível dissociar a imagem de sacos de corpos empilhados em caminhões refrigerados em Nova York da espantosa injustiça da assistência médica mais cara do mundo.

Guerras são travadas entre países ou blocos de países aliados. O coronavírus não conhece fronteiras. Não há como assinar um tratado de paz ou obter um cessar-fogo com o vírus.

Guerras inspiram pânico e comportamentos extremos como os afluentes comprando todas as máscaras disponíveis, aumentando o risco de morte para médicos e enfermeiros.

Guerras são mais do que momentos de unidade em apoio a um líder. Inspiram xenofobia de linguagem como “vírus chinês” e consequências reais em massa como o internação de americanos descendentes de japoneses em campos durante a Segunda Guerra.

Pandemia de coronavírus em fotos

Papa Francisco conduz bênção pela luta contra o coronavírus diante de uma praça de São Pedro vazia

Papa Francisco conduz bênção pela luta contra o coronavírus diante de uma praça de São Pedro vazia Vaticano – 27.mar.20/AFP

Doenças, como lembrou a autora Susan Sontag, são potencializadas por populistas e demagogos, como os que usaram a sífilis como um produto dos males de sociedades igualitárias.

“Sífilis era a ‘catapora francesa’ para os ingleses, o mal alemão para os parisienses, a doença de Nápoles para os florentinos, a doença chinesa para os japoneses”, escreveu Sontag.

Quatro anos depois de ter implementado uma vasta rede de proteções e investimentos sociais, conhecidos como a Grande Sociedade, o presidente Lyndon Johnson, enterrado no pântano do Vietnã, em 1968, comentou: “Aquela cadela da guerra matou a mulher que eu realmente amava”.

Ele se referia ao dilema em tempos de guerra conhecido como armas versus manteiga, produção militar se sobrepondo à economia civil.

No livro “On Immunity: An Inoculation” (sobre imunidade: uma inoculação, em português), publicado há seis anos, a autora Eula Biss sugere que a melhor metáfora para uma pandemia é a da educação.

O corpo precisa aprender como superar o vírus. Não se constrói imunidade sem a cooperação de todos.

Quem acumula máscaras não acumula anticorpos. Nesse sentido, em vez da metáfora da guerra, temos outra, a da praça pública da imunidade.

Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo. Colabora com o canal digital MyNews.

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie

Coronavírus: escancaramento da realidade urbana e saídas possíveis

LEIA DIRETO NA FONTE: https://www.cartacapital.com.br/blogs/coronavirus-escancaramento-da-realidade-urbana-e-saidas-possiveis/

BRCIDADES 4 DE ABRIL DE 2020Favela de Paraisópolis (Foto: Wikimedia Commons)

FAVELA DE PARAISÓPOLIS (FOTO: WIKIMEDIA COMMONS)

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie

*Por Paolo Colosso


Nos últimos anos de acirramento das políticas de austeridade com os cidadãos comuns há uma pauperização das populações urbanas. Concretamente, isso significa um  aumento de população de rua, das moradias precárias e superpovoadas. Esses fenômenos ganhavam pouca importância nos debates públicos, mas, com a pandemia de Coronavírus, essa realidade veio à tona.  As politicas mais sensatas demandam que a população fique em casa, mas muitos já se perguntam: qual casa?

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie. Aproximadamente 13 milhões de pessoas vivem em favelas. Há mais de 6 milhões de famílias sem uma moradia digna, 35 milhões de pessoas sem acesso a rede de abastecimento de água e 100 milhões – quase metade da população – não têm acesso a redes de coleta e tratamento de esgoto, cujo destino final é, frequentemente, rios, córregos, praias e lagoas. Às vezes três, quatro, até cinco famílias dividem uma unidade habitacional. Estas condições negadas à grande parcela da população são o básico do básico.

Somente em São Paulo, são cerca de 105 mil domicílios nessa situação de “coabitação familiar” e mais 47 mil com adensamento excessivo em domicílios alugados. Em favelas, onde a densidade habitacional é maior do que a média, são 830 mil domicílios. Em cortiços, 80 mil domicílios. São completamente imprevisíveis os impactos da pandemia da Covid-19 nesses espaços.  Uma política de dados com censos mais frequentes, levantamentos mais detalhados e atentos às desigualdades territoriais ajudaria muito a avançar nos diagnósticos.    

Há ainda a população de rua. No Rio de Janeiro são cerca de 14 mil, em São Paulo, estima-se mais de 20 mil.  São pessoas em extrema vulnerabilidade, que acumulam males  físicos e psicológicos diversos.  Não se sabe do Coronavírus nessas pessoas porque se tem pouca informação sobre eles. Os dados sobre as periferias e população de rua são deficitários e há certamente uma subnotificação do número de infectadas/os, isso porque são considerados cidadãos de segunda categoria e somente agora, considerados um perigo coletivo, que ganham visibilidade e atenção.

As sociedades atomizadas e rebaixadas pela inteligência privada, autocentrada em iniciativas individuais a despeito de seus respectivos entorno e coletividade, têm sofrido mais consequências com a Covid-19. Mas uma sociedade antes amesquinhada, petrificada por “time is money” e por “não existe almoço grátis”, agora se reumaniza, seja pelo medo do adoecimento generalizado, seja pela empatia com o sofrimento alheio. Descobre na dor que há bens e valores que não têm valor mercantil. Descobre no sofrimento fenômenos que nos colocam a todas e todos num destino em comum.

A pandemia nos mostra que, em determinadas situações, é impossível  “tocar  minha vida e cuidar da minha família”. Não por acaso, as comunidades e sociedades com mais vínculos e solidariedade enfrentam mais rapidamente a crise e os desafios. O vírus exige capacidade organizativa, cidadania ativa e ação coordenada.

As periferias e movimentos sociais, com cooperação de institutos, laboratórios e universidades, têm dado exemplos muito importantes sobre como rapidamente conseguem montar campanhas de arrecadação para ações prioritárias, produzir materiais de orientação e inciativas,  rodízio de mães solidárias para cuidado dos filhos que estão em casa, comitês de bairro, brigadas de saúde e mesmo hospitais em equipamentos públicos nos territórios periféricos, a fim de realizar testes e atendimento. Vem deles também planos de emergência para distribuição de água, de kits de higiene, congelamento de preços de compra pelo poder público de itens básicos à alimentação. Além disso, manutenção de merendas ou repasse dos alimentos dessas, ampliação da rede de wi-fi público e aumento do transporte coletivo para diminuir aglomeração.

E como já nos lembraram muitos nas ultimas semanas, em momentos de crise e instabilidade generalizada, o poder público – em todos os seus níveis – volta a ser o ator social fundamental. A iniciativa privada, fragmentada e reduzida a seus interesses próprios, não tem responsabilidade nem condições de dar respostas às questões que tocam a população como um todo. O mercado é uma instituição para fins e setores específicos. Por isso, em tempos de desespero e instabilidade, todos somos um pouco keynesianos intervencionistas e demandamos ações coordenadas e estratégicas que recoloquem a vida da humanidade como prioridade.

Há iniciativas interessantes de atores que até há pouco nada podíamos esperar. Aprovar a proposta de renda básica emergencial foi um sinal de civilidade do dito centrão. Cientes de que o presidente é irresponsável, inconsequente e divisionista, multiplicam-se também as propostas da sociedade. Isenções de contas de água e luz, suspensão de ordens de despejo, uso de hotéis ociosos, arquitetas e arquitetos envolvidos em projetos emergenciais de habitação social.   Universidades públicas colocando pesquisadoras/es – cujas bolsas estão sendo cortadas – para desenvolver métodos de detecção do vírus. 

Mas precisamos de mais. Precisamos de um pacto sanitário para que todas e todos possam ter o distanciamento social – total ou parcial – em condições minimamente dignas, ou seja, uma moradia salubre. Muitas boas propostas estão sendo feitas, mas é importante adicionar um desafio às autoridades: mitigar as necessidades habitacionais diversas, através do uso de imóveis ociosos devedores de IPTU. Trata-se de uma medida de reparação histórica com as populações espoliadas pela urbanização excludente e especulativa. Com o auxilio de equipes técnicas  e cooperativas, movimentos populares como a Frente de Luta por Moradia, a União Nacional por Moradia Popular e o Movimento de Trabalhadores Sem-Teto têm capacidade organizativa e de gestão para, num prazo entre 15 e 30 dias, transformar edifícios ociosos em lares para grandes contingentes. Além disso, construir por autogestão outras tantas unidades emergenciais. 

A esmagadora maioria desses imóveis ociosos é de famílias que já vivem de renda, mantêm esses edifícios parados, com dívida de IPTU e em processos litigiosos. São patrimônios esquecidos – em desacordo com a Constituição e o Estatuto da Cidade – de pessoas que, agora, também têm de se preocupar com a vida de seus anciãos e anciãs. Não se trata de benevolência, mas de pactuar a construção de saídas coletivas. Trata-se de reconstituição de uma outra ordem social. 

Também é preciso dizer que, daqui em diante, não é mais eticamente aceitável reproduzirmos o raciocínio mesquinho da politica de salvação das classes proprietárias privilegiadas e espoliação dos outros 99%, como tem sido nos últimos anos. O momento de crise desfaz todos os nexos que davam sentido para esse mundo que, antes natural, agora se torna inadmissível. De fato, não voltaremos ao normal porque o normal era o problema. A crise deve ser o momento de estruturar, desde as raízes, um outro modo de vivermos juntos nas cidades.


*É professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Arquiteto e urbanista, é bacharel em filosofia pela Unicamp, mestre e doutor em filosofia pela USP. Atualmente compõe a coordenação nacional do BrCidades

Coronavírus: escancaramento da realidade urbana e saídas possíveis

Coronavírus: escancaramento da realidade urbana e saídas possíveis

BRCIDADES 4 DE ABRIL DE 2020Favela de Paraisópolis (Foto: Wikimedia Commons)

FAVELA DE PARAISÓPOLIS (FOTO: WIKIMEDIA COMMONS)

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie

*Por Paolo Colosso


Nos últimos anos de acirramento das políticas de austeridade com os cidadãos comuns há uma pauperização das populações urbanas. Concretamente, isso significa um  aumento de população de rua, das moradias precárias e superpovoadas. Esses fenômenos ganhavam pouca importância nos debates públicos, mas, com a pandemia de Coronavírus, essa realidade veio à tona.  As politicas mais sensatas demandam que a população fique em casa, mas muitos já se perguntam: qual casa?

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie. Aproximadamente 13 milhões de pessoas vivem em favelas. Há mais de 6 milhões de famílias sem uma moradia digna, 35 milhões de pessoas sem acesso a rede de abastecimento de água e 100 milhões – quase metade da população – não têm acesso a redes de coleta e tratamento de esgoto, cujo destino final é, frequentemente, rios, córregos, praias e lagoas. Às vezes três, quatro, até cinco famílias dividem uma unidade habitacional. Estas condições negadas à grande parcela da população são o básico do básico.

Somente em São Paulo, são cerca de 105 mil domicílios nessa situação de “coabitação familiar” e mais 47 mil com adensamento excessivo em domicílios alugados. Em favelas, onde a densidade habitacional é maior do que a média, são 830 mil domicílios. Em cortiços, 80 mil domicílios. São completamente imprevisíveis os impactos da pandemia da Covid-19 nesses espaços.  Uma política de dados com censos mais frequentes, levantamentos mais detalhados e atentos às desigualdades territoriais ajudaria muito a avançar nos diagnósticos.    

Há ainda a população de rua. No Rio de Janeiro são cerca de 14 mil, em São Paulo, estima-se mais de 20 mil.  São pessoas em extrema vulnerabilidade, que acumulam males  físicos e psicológicos diversos.  Não se sabe do Coronavírus nessas pessoas porque se tem pouca informação sobre eles. Os dados sobre as periferias e população de rua são deficitários e há certamente uma subnotificação do número de infectadas/os, isso porque são considerados cidadãos de segunda categoria e somente agora, considerados um perigo coletivo, que ganham visibilidade e atenção.

As sociedades atomizadas e rebaixadas pela inteligência privada, autocentrada em iniciativas individuais a despeito de seus respectivos entorno e coletividade, têm sofrido mais consequências com a Covid-19. Mas uma sociedade antes amesquinhada, petrificada por “time is money” e por “não existe almoço grátis”, agora se reumaniza, seja pelo medo do adoecimento generalizado, seja pela empatia com o sofrimento alheio. Descobre na dor que há bens e valores que não têm valor mercantil. Descobre no sofrimento fenômenos que nos colocam a todas e todos num destino em comum.

A pandemia nos mostra que, em determinadas situações, é impossível  “tocar  minha vida e cuidar da minha família”. Não por acaso, as comunidades e sociedades com mais vínculos e solidariedade enfrentam mais rapidamente a crise e os desafios. O vírus exige capacidade organizativa, cidadania ativa e ação coordenada.

As periferias e movimentos sociais, com cooperação de institutos, laboratórios e universidades, têm dado exemplos muito importantes sobre como rapidamente conseguem montar campanhas de arrecadação para ações prioritárias, produzir materiais de orientação e inciativas,  rodízio de mães solidárias para cuidado dos filhos que estão em casa, comitês de bairro, brigadas de saúde e mesmo hospitais em equipamentos públicos nos territórios periféricos, a fim de realizar testes e atendimento. Vem deles também planos de emergência para distribuição de água, de kits de higiene, congelamento de preços de compra pelo poder público de itens básicos à alimentação. Além disso, manutenção de merendas ou repasse dos alimentos dessas, ampliação da rede de wi-fi público e aumento do transporte coletivo para diminuir aglomeração.

E como já nos lembraram muitos nas ultimas semanas, em momentos de crise e instabilidade generalizada, o poder público – em todos os seus níveis – volta a ser o ator social fundamental. A iniciativa privada, fragmentada e reduzida a seus interesses próprios, não tem responsabilidade nem condições de dar respostas às questões que tocam a população como um todo. O mercado é uma instituição para fins e setores específicos. Por isso, em tempos de desespero e instabilidade, todos somos um pouco keynesianos intervencionistas e demandamos ações coordenadas e estratégicas que recoloquem a vida da humanidade como prioridade.

Há iniciativas interessantes de atores que até há pouco nada podíamos esperar. Aprovar a proposta de renda básica emergencial foi um sinal de civilidade do dito centrão. Cientes de que o presidente é irresponsável, inconsequente e divisionista, multiplicam-se também as propostas da sociedade. Isenções de contas de água e luz, suspensão de ordens de despejo, uso de hotéis ociosos, arquitetas e arquitetos envolvidos em projetos emergenciais de habitação social.   Universidades públicas colocando pesquisadoras/es – cujas bolsas estão sendo cortadas – para desenvolver métodos de detecção do vírus. 

Mas precisamos de mais. Precisamos de um pacto sanitário para que todas e todos possam ter o distanciamento social – total ou parcial – em condições minimamente dignas, ou seja, uma moradia salubre. Muitas boas propostas estão sendo feitas, mas é importante adicionar um desafio às autoridades: mitigar as necessidades habitacionais diversas, através do uso de imóveis ociosos devedores de IPTU. Trata-se de uma medida de reparação histórica com as populações espoliadas pela urbanização excludente e especulativa. Com o auxilio de equipes técnicas  e cooperativas, movimentos populares como a Frente de Luta por Moradia, a União Nacional por Moradia Popular e o Movimento de Trabalhadores Sem-Teto têm capacidade organizativa e de gestão para, num prazo entre 15 e 30 dias, transformar edifícios ociosos em lares para grandes contingentes. Além disso, construir por autogestão outras tantas unidades emergenciais. 

A esmagadora maioria desses imóveis ociosos é de famílias que já vivem de renda, mantêm esses edifícios parados, com dívida de IPTU e em processos litigiosos. São patrimônios esquecidos – em desacordo com a Constituição e o Estatuto da Cidade – de pessoas que, agora, também têm de se preocupar com a vida de seus anciãos e anciãs. Não se trata de benevolência, mas de pactuar a construção de saídas coletivas. Trata-se de reconstituição de uma outra ordem social. 

Também é preciso dizer que, daqui em diante, não é mais eticamente aceitável reproduzirmos o raciocínio mesquinho da politica de salvação das classes proprietárias privilegiadas e espoliação dos outros 99%, como tem sido nos últimos anos. O momento de crise desfaz todos os nexos que davam sentido para esse mundo que, antes natural, agora se torna inadmissível. De fato, não voltaremos ao normal porque o normal era o problema. A crise deve ser o momento de estruturar, desde as raízes, um outro modo de vivermos juntos nas cidades.


*É professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Arquiteto e urbanista, é bacharel em filosofia pela Unicamp, mestre e doutor em filosofia pela USP. Atualmente compõe a coordenação nacional do BrCidades

O que o prefeito de Orlando nos ensina sobre a mediocridade branca?

O que o prefeito de Orlando nos ensina sobre a mediocridade branca?

LEIA DIRETO NA FONTE: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-que-o-prefeito-de-orlando-nos-ensina-sobre-mediocridade-branca/

Adilson Moreira

ADILSON MOREIRA 

O que o prefeito de Orlando nos ensina sobre a mediocridade branca?

Muitas pessoas brancas que sempre se beneficiam do nepotismo, do clientelismo e do favoritismo pressupõem que são competentes

Algumas pessoas chamaram a minha atenção para outro caso de racismo recreativo. Um indivíduo chamado Rodrigo Branco fez comentários racistas em tom de chacota sobre duas mulheres negras. Segundo ele, elas adquiriram notoriedade porque são negras, posição que reflete a ideia de que elas não teriam qualquer projeção se fossem submetidas a uma análise de cunho meritocrático, motivo do seu completo desprezo por elas.

Não me preocupo mais em me pronunciar sobre acontecimentos dessa natureza porque escrevi uma obra que explica de forma pormenorizada a dinâmica cultural e psicológica por trás desse tipo de comportamento. Mas quero tecer algumas considerações sobre esse caso específico de racismo porque ele expressa um aspecto muito curioso da fala de várias pessoas brancas brasileiras, elemento que tem sido reproduzido em inúmeras decisões judiciais e também no discurso de autoridades públicas: a ignorância real ou estratégica do papel central do privilégio branco no processo de distribuição de recursos e oportunidades na sociedade brasileira.

Muitas pessoas brancas que sempre se beneficiam do nepotismo, do clientelismo e do favoritismo pressupõem que elas e todas as pessoas brancas estão no lugar que estão por serem competentes; o fato de serem brancas significa necessariamente que elas merecem ocupar suas funções. Assim, essa retórica permite que homens brancos e mulheres brancas profundamente incompetentes acreditem que eles estão em posições de destaque porque são realmente capazes. Muitos deles e muitas delas estão entre os mais ferozes opositores de medidas de inclusão racial, sempre argumentando que uma sociedade só deve distribuir oportunidades e recursos por meios meritocráticos. Devemos então compreender o que é o privilégio branco e como ele opera para beneficiar todas as pessoas brancas de maneira sistemática. Utilizarei um caso extremo para que sua operação fique muito clara.

Assisti algumas semanas atrás um documentário sobre a vida de Ted Bundy, um dos mais sanguinários assassinos em série da história, um indivíduo responsável pela morte por esquartejamento de dezenas de mulheres. O penúltimo episódio analisa o julgamento que o condenou a morte e menciona um fenômeno curioso: a presença de várias mulheres brancas ao longo de todo o processo, algumas delas claramente flertando com um homem sendo acusado de assassinatos em massa.

TED BUNDY, ASSASSINO EM SÉRIE.

Entrevistadas, elas disseram que não podiam acreditar que um homem alto, bonito e de olhos azuis profundos pudesse ser responsável por aquelas mortes bárbaras. Elas diziam isso apesar de terem conhecimento das provas conclusivas apresentadas pelos promotores, sendo que algumas delas mantiveram a opinião mesmo depois de Bundy ter confessado a autoria dos assassinatos, muitos com um grau tremendo de perversidade. Vários órgãos da imprensa, entidades totalmente controladas por pessoas brancas, entrevistaram Bundy ao longo de seu julgamento e durante o período no qual aguardava sua execução, todos interessados em saber o que teria dado errado com aquele belo homem branco que parecia “um de nós”. O comportamento do juiz que conduziu o caso é perturbador: ele praticamente pediu desculpas para aquele homem branco por estar o sentenciando à morte seguindo a decisão do júri. Ele disse que tinha grande admiração por ele e que lamentava que um homem como ele tivesse perdendo a vida.

O caso mostra então algumas coisas interessantes. Você pode ser um assassino em série, as autoridades podem apresentar provas da sua natureza pérfida, mas muitas mulheres brancas ainda estarão convencidas de que você é um parceiro sexual aceitável porque elas se recusam a considerar a ideia de que um homem branco bonito possa ser uma pessoa maléfica.

A mesma imprensa que classifica homens negros que roubam supermercados para comer como delinquentes incorrigíveis, como pessoas que merecem a maior pena possível, olha para um assassino sanguinário com empatia e garante a ele a possibilidade de explicar seus atos criminosos. Você pode ser um assassino em série, mas o sistema judiciário te tratará como um indivíduo especial e lamentará sua execução, mesmo com provas inequívocas da autoria das suas atrocidades.

Bem, se isso ocorre no julgamento de um homem branco que assassinou e esquartejou dezenas e dezenas de mulheres, o que acontece então em situações corriqueiras como, por exemplo, uma entrevista de emprego? Um vídeo sobre racismo institucional do governo do Paraná responde essa pergunta.

Profissionais brancos de recursos humanos foram convidados para participarem de um experimento no qual deveriam fazer comentários sobre pessoas em situações corriqueiras. As falas desses profissionais brancos seguem um padrão muito claro: a descrição da foto muda completamente de acordo com a raça da pessoa. Uma mulher branca com uma lata de tinta na mão é uma grafiteira, uma artista. Uma mulher negra na mesma situação é uma pichadora, uma delinquente. Um homem branco vestido de terno é um executivo, um homem negro vestido com a mesmíssima roupa é um motorista. Um homem branco correndo está se exercitando, um homem negro com a mesma roupa e na mesma pose é um ladrão.

O experimento mostra algo muito importante para a demonstração das formas como o privilégio branco opera como uma fonte permanente de vantagens sociais. Pessoas brancas estão sempre atribuindo características negativas a pessoas negras, características que a vasta maioria delas não possui e elas também estão sempre atribuindo qualidades positivas a pessoas brancas, qualidades que a vasta maioria das pessoas brancas certamente não possuem em maior grau do que indivíduos de outras raças. Isso ocorre porque pessoas brancas são culturalmente treinadas para reconhecerem qualidades positivas apenas em pessoas brancas, mesmo quando elas não as demonstram. Isso significa que aqueles profissionais brancos de recursos humanos impediram milhares de pessoas negras de terem acesso a oportunidades profissionais, oportunidades que foram destinadas a pessoas brancas, sendo que muitas delas não eram devidamente qualificadas.

A percepção da qualificação decorre em grande parte dos condicionamentos sociais que moldam o julgamento do valor de pessoas negras e brancas, pobres e ricas, homens e mulheres.

Esses falsas pressuposições sobre as qualidades morais de pessoas brancas não operam apenas no campo profissional. Eu morei nove anos em Massachusetts, o estado norte-americano com a maior concentração de imigrantes brasileiros daquele país. Atuei durante algum tempo como voluntário em uma instituição que organizava campanhas de conscientização para a prevenção de contaminação de doenças sexualmente transmissíveis. Nós nos reuníamos quinzenalmente e durante esses encontros eu ouvi os seguintes relatos feitos de voluntários brancos sobre as falas de muitos homens brancos e mulheres brancas heterossexuais e homossexuais que eles atendiam: “

Olha, eu sei que é importante usar camisinha e tal, mas eu não faço sexo com negros ou hispânicos”;

“Pô, mas é aquela coisa, você olha para menina branquinha, bonitinha, loirinha e você vê que ela tá limpa”;

“Ah, mas é aquele negócio. Você vê aquele americano loiro, de olho verde dirigindo uma Escalade e você vai pensar em camisinha? Você sabe que ele não ele não tem problema porque ele não transa com qualquer um.”

Essas não são apenas presunções absurdas de pessoas brancas que não têm informações adequadas sobre cuidados médicos. Essas falas expressam a atitude cotidiana da vasta maioria de pessoas brancas que, por exemplo, vão para baladas a procura de parceiros ou parceiras sexuais. Elas chegam em um bar, olham para uma pessoa branca, elas partem do pressuposto que ela deve ser uma pessoa boa por ser branca, que ela deve ser de classe média e que ela deve ser uma boa amante porque, além de ser branca, também é bonita. Elas acham então que podem sair daquele local e ir para um motel que nada de negativo poderá ocorrer com elas, mesmo não sabendo absolutamente nada sobre aquela pessoa.

O fato de um homem ser branco e bonito significa que ele é um parceiro sexual ideal. Se, por um lado, muitas mulheres brancas partem do pressuposto de que todos os homens negros são uma ameaça e atravessam para o outro lado da rua, por outro, muitas delas acreditam que podem sair de um bar com belos homens brancos altos, bonitos e de olhos azuis. Elas estão certas que não correrão o racismo de serem ofendidas, agredidas, contaminadas ou assassinadas. E essa presunção parte da raça do parceiro sexual. Ser bonito significa necessariamente ser bom, significa necessariamente ser honesto, ser companheiro e ser bom amante.

A raça é o fator que garante uma vida sexual e afetiva porque ela é o critério fundamental da avaliação estética e moral das pessoas.

Quanto mais próximo do ideal ariano de beleza que os brasileiros cultuam obsessivamente, maiores serão as possibilidades de você ter uma vida sexual, quanto mais retinta for a cor da pele de uma pessoa, menores serão as chances dela ter respeitabilidade no plano profissional ou afetivo.

Devemos nos perguntar:  a postura racista expressa por Rodrigo Branco simplesmente brotou na cabeça dele? Certamente não. Ele foi criado em uma sociedade na qual 99,99% de todas as produções culturais retratam apenas pessoas brancas. Ele vive em uma sociedade na qual 99,99% de todos os filmes e de todas as novelas têm homens brancos heterossexuais como protagonistas sociais. Esse fato influencia estruturalmente a forma como pessoas brancas percebem a si mesmas, como elas percebem o próprio valor e também a qualificação, os lugares e funções que pessoas de outras raças devem desempenhar.

Pessoas brancas racistas pensam que negros só podem estar em lugares subalternos porque elas aprendem desde o dia que nascem até o dia que morrem que apenas pessoas brancas podem desempenhar funções sociais de maneira competente. A presença hegemônica de pessoas brancas nos meios de comunicação representa uma política cultural que almeja justificar arranjos sociais específicos. Por esse motivo, mulheres negras não podem estar em lugares de poder e prestígio porque são pessoas naturalmente inferiores.

Essa não é apenas a lógica que anima a fala de homens brancos racistas, indivíduos que sentem seus privilégios ameaçados com a demonstração de competência de mulheres negras. Essa é a mesma lógica por trás dos profissionais de recursos humanos que são culturalmente treinados para só identificar habilidades profissionais em pessoas brancas, mesmo naquelas que são menos qualificadas.

Esse treinamento cultural é uma fonte permanente de privilégios raciais. Eles estão presentes em todas as instâncias sociais e garantem vantagens estruturais a todas as pessoas brancas sem nenhuma exceção. O fato de uma pessoa ser branca significa que ela não pensará em abandonar a escola em função da sua raça, que ela fará amigos nesse ambiente porque as outras pessoas já partirão do pressuposto de que ela é uma pessoa boa e que ela tem coisas e características em comum com elas, que ela poderá fazer parte dos círculos de poder que controlam o acesso a oportunidades educacionais e profissionais.

O fato de uma pessoa ser branca significa que os outros não se recusarão a sentar ao lado dela no metrô, que as pessoas não evitarão contato visual com ela, que as pessoas serão cordiais com ela, que as pessoas acharão que ela é sexualmente atraente, que ela não será seguida em todos os lugares, que ela não será assassinada pela policia por estar dirigindo um carro, que ela tem bom caráter, que ela será beneficiada profissionalmente mesmo quando não possuir todas as habilidades necessárias para o desempenho de uma função.

É óbvio que muitas pessoas brancas estão no lugar que estão porque merecem, mas isso também decorre do fato de que a raça nunca operou como um empecilho para a afirmação profissional delas. É óbvio também que muitas delas estariam nesses lugares mesmo se não demonstrassem ter o nível de competência que possuem. O escrutínio sobre competência pessoal só é dirigido a pessoas negras porque elas precisam provar o tempo inteiro que merecem estar nesses lugares e a presença delas será questionada mesmo quando são expoentes de capacidade profissional. Aliás, essa é exatamente essa a situação na qual elas serão mais atacadas. Quanto maior for o sucesso de Maju Coutinho, maior será o número de seus detratores e detratoras.

Isso significa que o fato de ser um homem branco é um dos motivos principais pelos quais o senhor Rodrigo Branco alcançou visibilidade profissional.

Qualificação e competência têm pouca relevância em uma sociedade historicamente baseada no nepotismo, no clientelismo e no favoritismo. Possuo dois doutorados, dois mestrados e duas graduações, títulos obtidos nas melhores instituições de ensino superior do Brasil e do mundo e já fui preterido várias vezes por pessoas brancas muito menos qualificadas do que eu, duas vezes por pessoas brancas que tinham acabado de concluir o mestrado.

A ação conjunta do racismo e do sexismo impede que profissionais da mais alta competência estejam nos lugares como os que Maju Coutinho ocupa, a mesma sociedade que celebra pessoas brancas medíocres todos os dias.

A ficção individualista liberal

A ficção individualista liberal

Por João Feres Júnior*

LEIA DIRETO NO ORIGINAL: https://aterraeredonda.com.br/a-ficcao-individualista-liberal/

Bem mais cínicos que Hayek, neoliberais como Paulo Guedes preconizam abandonar os pobres à sua própria sorte como uma maneira de beneficiá-los!

É difícil pensar em algo bom que possa vir da crise atual. Na verdade, estamos somente começando uma travessia que pode durar boa parte do já fatídico ano de 2020. Em meio à depressão, ansiedade e desamparo causados pelo confinamento a que fomos quase todos submetidos, somos forçados a encarar aspectos da nossa existência pessoal e coletiva sobre os quais raramente refletimos em tempos normais.

A primeira constatação óbvia à qual somos forçados é a dependência que nossa existência individual tem do coletivo; da sociedade, como dizem por aí. A desagregação e desorganização da vida coletiva causada pela pandemia colocam em risco a nossa saúde física e mental. Essa já é uma lição e tanto para os individualistas radicais, aqueles que veem o indivíduo como o alfa e o ômega da existência humana. Aristóteles já havia bem compreendido o caráter eminentemente coletivo de nossa humanidade há quase 25 séculos. Contudo, a normatividade individualista proposta pelo liberalismo, provavelmente germinada na Reforma Protestante, produziu uma ficção que toma o “dever ser” da autonomia moral individual pelo ser.

A ficção individualista liberal tornou-se hegemônica no direito moderno, por meio das Constituições de todas as democracias contemporâneas. Esse foi um movimento fundamental no desmonte dos regimes monárquicos no Ocidente. Por outro lado, a ficção não transformou o caráter coletivo da realidade social. Na verdade, o movimento histórico foi bem o contrário. Quanto maiores, mais populosas e mais complexas se tornaram as sociedades, mais interdependentes ficaram as pessoas. O vírus – esse ser infinitesimal que trafega entre o biológico e o mineral – veio nos jogar na cara o caráter fundamentalmente coletivo da nossa existência individual.

A vida coletiva dos gregos antigos estava sob uma constante ameaça de desintegração, particularmente por meio da guerra, fosse ela civil ou contra um inimigo externo. A filosofia política nasceu como um esforço intelectual de conceber maneiras de evitar a tal morte social. Essa ameaça era muito presente naquele contexto por uma razão bem simples: as polis gregas não tinham Estado, da maneira como conhecemos esse conjunto de instituições nos dias de hoje.

Em outras palavras, não havia um grupo estável de profissionais que tomasse conta dos inúmeros serviços que promovem a integração social. Aí reside mais uma razão para o efeito cognitivo perverso que assola os individualistas radicais dos dias de hoje. Muitas pessoas simplesmente dão de barato a existência desses serviços básicos, como água, luz, pavimentação, segurança, etc., que garantem o funcionamento da vida coletiva. Isso sem falar no fato óbvio, mas também ignorado por muitos, de que a vida humana é quase totalmente artificial, isto é, praticamente tudo que nos cerca, em casa ou na rua, é produto do trabalho de outras pessoas e chegam até nós por meio das nossas interações sociais.

E é justamente quando essa vida coletiva está gravemente ameaçada que nos vemos nas mãos daquele que é um dos mais simplórios individualistas que nosso país já produziu: o ministro da Economia Paulo Guedes. Suas colunas no jornal O Globo, publicadas por anos a fio, quando ainda era um desconhecido, transpiram um neoliberalismo doutrinário para o qual a solução de qualquer problema político ou social redunda na diminuição do Estado e no aumento da liberdade individual. Se antes sua falta de capacidade de reconhecer os diferentes contextos e detalhes dos problemas que afetam nossa vida coletiva redundava somente na produção de panfletos toscos, hoje ela nos coloca em risco mortal.

Guedes é o único ministro do governo Bolsonaro que obteve algum sucesso político em 2019. A reforma da Previdência foi fortemente apoiada pelas forças que comandam a política brasileira desde o impeachment de Dilma. Amplos setores do empresariado – finanças, indústria e comércio –, partidos da centro-direita à extrema direita, movimentos da nova direita, muitos evangélicos e uma farta fatia da classe média sudestina se irmanaram no esforço de dar um banho de neoliberalismo no Brasil. Claro, não podemos nos esquecer da grande mídia, que fornece para toda essa gente a narrativa de total hegemonia da concepção fiscalista e reacionária neoliberal. Para os aderentes dessa narrativa, as reformas de Guedes, assim como a PEC da Morte antes delas, são escolhas óbvias; consequências naturais da boa gestão da coisa pública.

Mas o neoliberalismo, como todo idealismo, não convive bem com a realidade. As promessas de destravamento da economia não se concretizaram. Da mesma maneira, as promessas de aumento do nível e da formalização do emprego trombeteadas pelos defensores da vitoriosa reforma trabalhista do período Temer também se mostraram falaciosas. A taxa de informalidade no mercado de trabalho superou a marca de 41% no final do ano passado, a maior desde 2016, quando o IBGE começou a investigar esse índice.

Se tomarmos o liberalismo em sua realidade histórica, como um dos produtos ideológicos do Iluminismo, constatamos facilmente que o neoliberalismo é na verdade um tipo de antiliberalismo. Ora, o fulcro do movimento iluminista e dos regimes liberais nascidos da Era das Revoluções foi a ideia de igualdade moral entre os homens (sic). É claro que tal ideal, que anima todas as constituições democráticas do mundo, sempre encontrou obstáculos imensos a sua realização, mas o neoliberalismo simplesmente o descarta em nome da maximização de uma suposta liberdade individual, também de caráter ficcional. Sem se preocupar em soar racista ou elitista, Friedrich Hayek, um de seus mais influentes ideólogos, expõe a coisa com bastante clareza: se aplicarmos leis iguais a uma população marcada por desigualdades, o resultado é a preservação dessas desigualdades, senão sua potencialização. Ele, obviamente, não via problema algum nisso.

As consequências práticas de tal movimento teórico neoliberal são claras: preservação ou agravamento de todo tipo de desigualdade – moral e material – entre as pessoas, e preservação e naturalização de todo privilégio social e econômico. Bem mais cínicos que Hayek, neoliberais como Paulo Guedes preconizam abandonar os pobres à sua própria sorte como uma maneira de beneficiá-los! Ele é somente um exemplo triste e bastante didático, pois simplório, da aberração que é sua doutrina.

Coerente com sua mentalidade dogmática, Guedes reagiu à ameaça do Coronavírus (Covid-19) de maneira assustadora. Declarou na semana passada que a crise era uma janela de oportunidade para o aprofundamento das reformas, isto é, na prática, para mudar as normas que regulam o emprego público e alterar o sistema tributário.

O sentido da primeira reforma, a administrativa, certamente será o da fragilização do emprego público. Quanto ao nosso sistema tributário, ele é de fato bastante iníquo. Contudo, não há garantia alguma de que vá se tornar mais progressivo, pois o ministro, além de não ter plano, já demonstrou em várias oportunidades uma total falta de sensibilidade com relação às atribulações sofridas pelas camadas mais pobres da população brasileira. Por que agora seria diferente?

O agravamento da crise, contudo, deu-lhe um xeque-mate. A única solução para tentar aliviar os efeitos devastadores da desagregação social e consequente falência econômica é o gasto público. Não serão sequer gastos típicos do Estado desenvolvimentista, como investimentos em infraestrutura e fomento da atividade econômica – coisa que Guedes abomina. À massa de brasileiros desempregados e desamparados pela crise econômica prolongada e pela deterioração dos programas sociais, que está em andamento desde o impeachment, agora vão se juntar um enorme contingente daqueles atingidos em cheio pela crise do Covid-19.

Todos demandando muita assistência social por parte do governo, que também precisará criar esquemas de proteção que evitem a quebradeira geral de empresas. Em suma, Guedes está sendo chamado para liderar o enterro de tudo aquilo que sempre pregou com fanático entusiasmo. Caso se negue a fazê-lo, o que é bem possível, será rapidamente defenestrado. Em suma, ou perde ou perde, merecidamente.

*João Feres Júnior é professor de ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da UERJ. É coordenador do GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (http://gemaa.iesp.uerj.br/) e do LEMEP – Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público.

Há uma década, políticos resgataram bancos. Agora, terão de socorrer gente

O que está em jogo não é o sistema capitalista, mas a vida de milhares de pessoas. Porém, a pandemia de coronavírus desembarca em um mundo que optou por estar despreparado

Homem usa máscara de proteção na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, nesta segunda.
Homem usa máscara de proteção na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, nesta segunda.SILVIA IZQUIERDO / AP (AP)

JAMIL CHADE

LEIA DIRETO NO ORIGINAL; https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-24/ha-uma-decada-politicos-resgataram-bancos-agora-terao-de-socorrer-gente.html

Aquela instituição supostamente sólida era a ponta de um iceberg de um sistema corroído. Meses depois, governos de todo o mundo tinham destinado 9 trilhões de dólares para salvar seus bancos e casinos, diante da maior crise do capitalismo em 70 anos.

Contas públicas quebraram, governos mentiram e políticos caíram, mas o sistema foi preservado.

Uma década depois, é o estado uma vez mais que volta a ser convocado para assumir o papel central de salvador. Mas, agora, não bastará reuniões com bancos e salvar o mercado financeiro. Não falta liquidez nos bancos.

O resgate terá de ser ao povo, o que exige uma transformação importante na lógica de governos que, nos últimos anos, desmontaram modelos de proteção social, reduziram benefícios e acusaram milhões de “vagabundagem” por se apoiar no estado.

No Reino Unido, a crise chega em um momento complicado para o setor de saúde, alvo de sucessivos cortes nos últimos anos. Resultado: o país tem hoje uma das menores taxas de leitos por habitantes entre os países ricos e inferior mesmo à China.

Em tantos outros lugares, os efeitos do resgate de 2008 e 2009 ainda eram sentidos e traduzidos em cortes de seguro-desemprego e aumento da idade mínima de aposentadoria.

Agora, justamente quanto o sistema foi desmontado em grande parte, uma pandemia de coronavírus desembarca em um mundo que optou por estar despreparado.

Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que 25 milhões de pessoas podem perder seus empregos por conta da atual crise. E fica a pergunta: qual rede social vai preservar a dignidade dessas pessoas?

Alguns governos já se deram conta que o apoio terá de ir diretamente à população. Na Austrália, o plano anunciado pelo primeiro-ministro Scott Morrison previa um cheque de 750 dólares australianos para os mais vulneráveis. Bancos foram instruídos a ampliar os prazos de pagamentos de dívidas de pequenas e médias empresas, enquanto isenções fiscais entrarão em vigor.

Pequenas empresas também poderão pegar emprestado recursos, colocando o governo como fiador. Seguro-desemprego foi dobrado, enquanto outras medidas continuam a ser avaliadas.

Pela Europa, o caminho é semelhante. Na Alemanha, o governo passou a dividir com empresas os gastos por manter milhões de pessoas empregadas. Na Irlanda, empresas poderão pagar seus empregados e receber uma compensação de até 203 euros por semana por parte do governo. Para aqueles contaminados por coronavírus, o estado reembolsará as empresas em 305 euros.

Mas isso não vai ser suficiente e a crise exigirá de governos uma ação de uma escala ainda maior para resgatar seus cidadãos. No total, os trabalhadores podem perder uma renda de 3,4 trilhões de dólares, afirma a OIT. O risco é de que a pandemia crie uma legião de novos pobres.

Para os próximos dias, a ONU e entidades internacionais vão se unir para lançar uma operação humanitária global, na esperança de sair ao resgate de milhões de pessoas que, ainda que sanas, passarão a ser ameaçadas de desnutrição ou outras doenças diante da falta de recursos.

Especialmente preocupante é a situação de milhões de pessoas que, apesar de trabalhar, já vivem à beira da miséria.

“Ao contrário da crise financeira de 2008, injetar capital apenas no setor financeiro não é a resposta. Esta não é uma crise bancária ―e, na verdade, os bancos devem ser parte da solução”, disse o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.

“E não é um choque comum na oferta e na procura; é um choque para a sociedade como um todo. A liquidez do sistema financeiro deve ser garantida, e os bancos devem usar sua resiliência para apoiar seus clientes”, afirmou. “Mas não esqueçamos que isto é essencialmente uma crise humana”, alertou.

“Acima de tudo, precisamos nos concentrar nas pessoas ―trabalhadores com salários baixos, pequenas e médias empresas e os mais vulneráveis. E isso significa apoio salarial, seguros, proteção social, prevenção de falências e perda de empregos”, defendeu.

“A recuperação não deve vir nas costas dos mais pobres —e nós não podemos criar uma legião de novos pobres”, alertou. “Precisamos colocar os recursos diretamente nas mãos das pessoas”, completou.

Desta vez, o que está em jogo não é o sistema capitalista. Mas a vida de milhares de pessoas. De uma forma irônica, a pandemia volta a dar cara ao estado. Ela testa a relação de confiança entre autoridades e cidadãos, justamente num momento de uma fratura profunda nesse pacto social.

Não serão banqueiros ou mega-empresários que salvarão as comunidades com sua filantropia. Nem muito menos um patriotismo oco de redes sociais com a repetição de palavras como “mito”.

Não serão caças ou submarinos, nem o porte de armas, que trarão um sentimento de segurança. Mas um sistema de saúde robusto. Um estado resiliente e que tenha o cidadão como prioridade.

Nos últimos dias, diante da certeza de uma recessão no mundo, a OCDE fala na necessidade de se criar um novo Plano Marshall. Mas, desta vez, o que está em jogo não é a sobrevivência de uma elite no poder financeiro-político. Mas um resgate que impeça que a pandemia se transforme em miséria para aqueles que consigam sobreviver.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.