Archive for 21 de maio de 2015

O que é e o que produz o ajuste fiscal?

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O que é e o que produz o ajuste fiscal?

Por João Sicsú
Da Carta Capital

Ajuste fiscal é um conjunto de políticas que busca equilibrar o orçamento do governo. Em 2014, o orçamento do governo federal obteve um déficit (nominal) de 6,7% do PIB. As causas desse desequilíbrio foram a desoneração fiscal de mais 100 bilhões de reais concedida pelo governo a grandes empresas, as elevadas despesas devido àalta dos juros (Selic) dos títulos do governo e a queda da arrecadação decorrente do baixo crescimento. Antes, de 2003 a 2013, o governo alcançou déficits (nominais) bem mais moderados.

“O governo quer reequilibrar o orçamento cortando gastos. Para tanto, lançou as Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665 que subtraem conquistas sociais: reduzem o acesso ao seguro desemprego, aos benefícios da Previdência e ao abono salarial”

O governo quer reequilibrar o orçamento cortando gastos. Para tanto, lançou as Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665 que subtraem conquistas sociais: reduzem o acesso ao seguro desemprego, aos benefícios da Previdência e ao abono salarial. Reconhece-se que uma readequação de regras no seguro-desemprego e na Previdência para eliminar irregularidades é necessária. Mas o que está sendo feito é: em nome das possíveis irregularidades são retirados direitos sociais e conquistas históricas dos trabalhadores brasileiros. Aos trabalhadores, o governo diz que suas MPs são para corrigir distorções, mas ao mercado financeiro diz que as mesmas MPs são parte do programa de contenção de gastos públicos. Ainda mais, promete aos financistas que novas medidas estão por vir.

Achatamentos

Ajustes fiscais, ou planos de austeridade, nunca deram certo. Reduzem a renda dos mais necessitados, enfraquecem o comércio e diminuem a arrecadação tributária. O corte de gastos, por debilitar a economia, gera desemprego, queda da arrecadação e manutenção ou ampliação do desequilíbrio fiscal. Durante o governo de FHC, foram feitos cortes de gastos e contingenciamentos. O resultado foi um grave desequilíbrio fiscal: em média, durante os 8 anos de governo FHC, o déficit nominal foi de 5,53% do PIB  (e em dois anos houve superávit primário negativo, tal como ocorreu em 2014). Com FHC, a dívida pública como proporção do PIB cresceu de 30,6%, em 1995, para 60,4%, em 2002. Portanto, o PSDB, hoje na oposição, não tem autoridade política e intelectual para criticar as medidas propostas pelo governo. Por coerência, deveriam apoiá-las. E por respeito a sua história, quem deveria votar contra seria o PT.

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Existe saída para reequilibrar o orçamento. A saída são políticas voltadas para o crescimento. O resultado fiscal é sempre o reflexo da saúde de uma economia. Uma economia estagnada gera um orçamento desequilibrado. Por outro lado, uma economia forte e dinamizada produz aumento da arrecadação e o resultado é o equilíbrio fiscal. Durante o segundo governo do presidente Lula, a economia cresceu em média 4,7% ao ano e a dívida pública caiu como proporção do PIB de 45,5%, em 2007, para 39,2%, em 2010. E como resultado do crescimento econômico de 7,6%, em 2010, o déficit (nominal) foi reduzido para 2,5% do PIB.

Situação

A situação econômica atual é preocupante. Os investimentos do governo federal estão parando. O desemprego cresce mês após mês. E é sempre maior do que foi no mesmo mês do ano passado.  A geração de empregos com carteira assinada está negativa em 2015. No acumulado do ano, de janeiro a março, foram fechados mais de 65 mil postos de trabalhos. A geração de empregos com carteira é um importante indicador do vigor da economia brasileira.

A economia está muito fraca. E tudo indica que a tendência é de agravamento porque as políticas de ajuste fiscal vão tirar bilhões de reais das mãos dos mais necessitados. Os recursos vão sumir das mãos daqueles que gastam tudo que recebem e dinamizam a economia através do comércio. A renda do trabalhador também está em trajetória de queda. E a arrecadação do governo federal está enfraquecida: de janeiro a março desse ano, houve queda de 4,4% em relação ao mesmo período de 2014.

Taxa de juros

“A elevação dos juros, além de não conter as causas atuais da inflação, agravará a situação fiscal. Quando a taxa de juros Selic é aumentada, a consequência é o aumento das despesas com o serviço da dívida pública”

Para agravar a situação, o Banco Central tem elevado a taxa de juros com a justificativa de reduzir a inflação. A inflação dos últimos meses foi provocada por aumento do preço dos alimentos, da energia elétrica e dos combustíveis. Não adianta elevar os juros. Juros não reduzem secas ou fazem chover para impedir quebra de safras agrícolas. Também não são capazez de reduzir preços que são administrados pelo governo: gasolina, diesel e eletricidade.

A elevação dos juros, além de não conter as causas atuais da inflação, agravará a situação fiscal. Quando a taxa de juros Selic é aumentada, a consequência é o aumento das despesas com o serviço da dívida pública. Ano passado, os gastos públicos com juros foram superiores a 300 bilhões de reais, ou seja, mais de 6% do PIB. Comparando: o déficit (nominal) no orçamento do governo foi de 6,7% do PIB e as suas despesas com juros foram de 6,1% do PIB. É óbvia onde está uma fonte de desperdício de recursos públicos.

Estímulos

A saída para as dificuldades atuais são políticas de estímulo ao crescimento econômico. Não só porque isso produziria o reequilíbrio fiscal, mas principalmente porque esse é o caminho para a retomada da trajetória de desenvolvimento iniciada durante os governos do presidente do Lula. Para reequilibrar o orçamento, para fazer justiça social e para financiar manutenção das conquistas sociais dos últimos anos será preciso fazer, também, uma reforma tributária. É preciso fazer os ricos, os milionários e o sistema financeiro contribuírem com a retomada da trajetória do crescimento e do desenvolvimento.

Uma nova estrutura tributária deveria ser uma das fontes do financiamento de uma nova etapa do desenvolvimento. A tabela do imposto de renda tem que ser corrigida pela inflação e alíquotas mais altas devem ser criadas para que ricos e milionários paguem de acordo com sua capacidade contributiva. Proprietários de helicópteros, jatinhos e iates, que são isentos de quaisquer impostos, têm que passar a pagar um imposto que seja semelhante ao IPVA. O Imposto Territorial Rural deve ser reformulado. Aproximadamente 1% dos proprietários rurais detêm 43% das terras. O Brasil tem latifúndios e latifundiários, mas a arrecadação de ITR só corresponde a 0,04% de toda a arrecadação de impostos.

Multinacionais

Mais ainda: multinacionais remetem todos os anos bilhões dólares em lucros para o exterior e não pagam um tributo sequer. Nos últimos 2 anos, remeteram mais de 50 bilhões de dólares sem pagar qualquer imposto. Além disso, a Constituição autorizou a União a cobrar o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), mas até hoje o poderio econômico impede que todos os projetos de regulamentação do IGF prosperem no Congresso Nacional. Um sistema tributário justo e progressivo será uma fonte importante de uma nova etapa do desenvolvimento.

Em resumo, adotar uma política de ajuste fiscal, ou de austeridade, é o mesmo que travar o País diante da possibilidade de uma nova fase de desenvolvimento. O Brasil progrediu em termos de direitos econômicos, isto é, ampliação do emprego, desconcentração da renda, melhoria real dos salários, redução da pobreza extrema e democratização do consumo. É hora de radicalizar o projeto de desenvolvimento ofertando serviços públicos de qualidade nas áreas da saúde, educação, transportes e segurança social e de vida.

Ajuste fiscal e estagnação econômica não vão solucionar os nossos problemas, vão agravá-los. Vão fazer o País retornar ao período de degradação econômica e social que antecedeu os governos do presidente Lula. Portanto, o ajuste fiscal será uma trava no projeto de desenvolvimento com justiça social que esteve em curso no País. Políticas de crescimento e justiça tributária conformam a combinação necessária ao novo salto de desenvolvimento que o Brasil precisa.


♦ Professor do Instituto de Economia da UFRJ, foi diretor de Políticas e Estudos Macroeconômicos do IPEA entre 2007 e 2011

São Paulo a seco

http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1857
“A ÁGUA FOI EMBORA E A DIGNIDADE TAMBÉM”

“Você sabe o que eles pretendem fazer? A Sabesp tem um plano B para o futuro?”, indaga. Todos olham para a debatedora, que responde desolada: “Não, eu tenho as mesmas informações que vocês e não faço a menor ideia se há um plano B, C ou D. Por outro lado, sei que o pior ainda está por vir”

por Anne Vigna

Um restaurante elegante no coração de São Paulo, capital econômica do Brasil. O sommelier apresenta a seus clientes uma garrafa de vinho, que ele manipula como se fosse um bebê, e em seguida serve seu conteúdo, em copos de plástico. Nos banheiros do local, impecáveis, o sifão foi desmontado e a água corre direto para um balde. Na porta, um cartaz sugere: “Caros clientes, por favor, utilizem a água de reúso para a descarga”. Há vários meses, a cidade dos superlativos – a mais populosa, a mais cheia de automóveis, a mais rica… – também se tornou a cidade das cenas mais estranhas. São Paulo está entre as megalópoles do mundo que tiveram um forte crescimento econômico na última década, mas a água começa a faltar de forma aguda.

No estado de São Paulo, com 41 milhões de habitantes, os conservadores estão no poder há 24 anos. No último debate televisivo entre os candidatos a governador, em outubro, os reservatórios já estavam com níveis assustadoramente baixos. Ao ser questionado sobre o tema, o candidato à reeleição, Geraldo Alckmin, do PSDB, foi categórico: “Não está faltando nem vai faltar água em São Paulo”. Ele ganhou as eleições, mas a frase ainda aparece nas redes sociais.

“No início, em agosto de 2014, eles cortavam a água apenas à noite. Mas agora cortam também na hora do almoço”, esbraveja o dono do restaurante chique apontando para os galões de água na cozinha – usados nos intervalos sem água. “Eles”? A Sabesp, empresa de economia mista1 encarregada da distribuição e saneamento na cidade. A reserva dos galões não é suficiente para as necessidades do estabelecimento: a louça da noite ficará acumulada até a manhã seguinte, e os cozinheiros só conseguem realizar suas atividades graças a garrafões de água potável. Assim como em todo lugar, o fenômeno repercute nos preços do cardápio. E as coisas não melhoram: a Sabesp chegou a considerar limitar o abastecimento a dois dias por semana em alguns bairros, mas depois voltou atrás. Os funcionários se inquietam, a empresa dá informações a conta-gotas. Após forte pressão popular, a concessionária indicou em seu site na internet as horas de corte de cada bairro. As informações, contudo, muitas vezes estavam equivocadas. E parou de dar entrevistas à imprensa.

O pior ainda está por vir

No fim da projeção do documentário A lei da água (ver boxe), de André D’Elia (Cinedelia, 2014), no fim de janeiro, ninguém se mexe. No salão lotado, como acontece com todas as sessões desse filme, todos esperam o debate com Ana Paula Fracalanza, pesquisadora da Universidade de São Paulo e especialista em gestão hídrica. Na casa de Maria Caçares, que estava na plateia e fez uma intervenção, o corte de água acontece antes de sua chegada do trabalho e só volta às 10h da manhã, quando ela já saiu de casa. Felizmente, em seu edifício, as pessoas mais velhas se encarregam de encher galões de água para os que trabalham fora. “Você sabe o que eles pretendem fazer? A Sabesp tem um plano B para o futuro?”, indaga a Fracalanza. Todos olham para a debatedora, que responde desolada: “Não, eu tenho as mesmas informações que vocês e não faço a menor ideia se há um plano B, C ou D. Por outro lado, sei que o pior ainda está por vir”.

Todos conhecem o plano A do governo: investir cerca de R$ 1 bilhão para captar a água do Rio Paraíba do Sul, que já abastece o Rio de Janeiro. Mas a operação – que privará o Rio de parte de sua fonte de abastecimento – precisa de dezoito meses para ser concluída, na melhor das hipóteses.

“Perdemos muito tempo por causa das eleições. Se o governo tivesse dito antes que era preciso economizar água, a população teria entendido”, explica Marcelo Cardoso, representante da Aliança pela Água, uma coalizão de organizações ecológicas que surgiu com a eclosão da crise. Em outubro passado, em Itu (SP), houve uma série de protestos pela situação de calamidade pública da cidade: sem água, os moradores atacaram prédios públicos. Os caminhões-pipa enviados pelo estado precisaram entrar na cidade escoltados pela polícia. Os manifestantes não eram fanáticos ou revoltados, eram cidadãos de “bem”, entre os quais muitas mulheres de classe média. “A água foi embora e a dignidade das pessoas também. Quando não podemos mais tomar banho, ir ao banheiro, cuidar das crianças, entramos em pânico”, explica Cardoso.

Segundo um relatório de serviços de informação do estado de São Paulo revelado pela edição brasileira do jornal El País,2 a região poderia experimentar manifestações graves como as de junho de 2013, desencadeadas pelo aumento da tarifa dos transportes públicos. O site especializado em questões de segurança Defesa.net3 assegura que a crise hídrica explica o “estágio” que funcionários do serviço de informação de São Paulo realizaram, em novembro último, em uma unidade policial especializada dos Estados Unidos chamada Special Weapons and Tactics (Swat). Ironia da história, São Paulo recebeu em março catorze veículos munidos de potentes canhões de água para dispersar manifestantes.4 Será que de fato o poder público ousará enfrentar manifestantes que protestam contra a falta de água com esse aparato?

Propostas que visam otimizar os recursos hídricos não faltam: desenvolvimento de agroecologia, despoluição do Rio Tietê – que se transformou em um esgoto a céu aberto em São Paulo –, reparações no sistema de abastecimento para mitigar perdas (estimadas em 25%), captação de água das chuvas etc. Nenhuma dessas iniciativas, porém, ganhou a atenção dos poderes públicos.

Desmatamento na Amazônia

A explicação dessa crise está mais ao norte, na floresta amazônica, devorada para dar lugar à plantação de soja e criação de gado. O Brasil se encontra em um impasse: a agroindústria, pilar de sua balança comercial, absorve quase 70% do consumo de água no país. A exportação de bens agrícolas representa uma transferência ao estrangeiro de cerca de 112 bilhões de litros de água por ano.5 Esse setor repousa sobre um regime de chuvas abundantes, colocado em risco pelo desmatamento que se amplia constantemente.

A floresta permite não apenas reter a água da terra, mas também o fenômeno da evapotranspiração do solo e das folhas – dessa forma, restitui à atmosfera uma quantidade considerável de vapor. Os cientistas estimam que a Bacia Amazônica emita o equivalente a impressionantes 20 trilhões de litros de água por dia. Essa umidade favorece a condensação de nuvens e provoca o fenômeno dos “rios aéreos de vapor”.

“Os ventos que provêm do oceano se encarregam do vapor constante que predomina na Amazônia e são barrados a leste pelos Andes, o que faz toda essa água ser reenviada para o sul do continente”, explica Antonio Donato Nobre, especialista em clima e autor de uma síntese de duzentos relatórios científicos sobre a Amazônia.6 O ecossistema da Amazônia e da Cordilheira dos Andes permite que o sul da América Latina sofra menos com a seca que atinge a maior parte do globo nessa latitude (como os desertos da Namíbia e da Austrália, por exemplo). A pluviometria que eles favorecem é crucial para cerca de 70% da produção da riqueza regional.7

“Desmatamos quase 90% da mata atlântica em toda a costa leste do país, mas sem sentir as consequências, porque a Amazônia oferece umidade suficiente”, continua Nobre. “Hoje, 18% da Amazônia está desmatada, e a área degradada já atinge 29% do bioma.8 Não podemos dizer com precisão em que momento sentiremos o efeito desse desastre, mas ele está anunciado há mais de uma década.”

De acordo com as últimas estimativas, 762.979 km² de floresta – mais de duas vezes a superfície da Alemanha – foram destruídos nos últimos quarenta anos. Somente em 2004, desapareceram 27.772 km². Se o ritmo anual pudesse voltar a 4.571 km² em 2012, essa situação poderia ter curta duração. Em 2011, o governo reformou seu Código Florestal sob pressão dos deputados e senadores chamados de “ruralistas”, que defendem os interesses da indústria agroalimentar. Esse novo código limita fortemente as zonas de conservação e anistia todos os processos judiciais ligados ao desmatamento, que pode se intensificar com as novas prerrogativas.

A falta de chuva se traduz igualmente por uma penúria de eletricidade em um país cuja produção energética provém 75% de usinas hidrelétricas. O ministrode Minas e Energia, Eduardo Braga, reiterou a vontade de construir uma barragem no Rio Tapajós, na Amazônia, enquanto a de Belo Monte, no Rio Xingu, nem sequer entrou em atividade.

Essa seca na megalópole brasileira permitirá uma tomada de consciência sobre a necessidade de proteger a Amazônia? Por enquanto, o governo federal concentra sua ação no financiamento do plano A de São Paulo. Ele deverá igualmente responder às dificuldades dos outros estados em crise, como Rio de Janeiro e Minas Gerais – sem mencionar os auxílios que os agricultores reivindicam para enfrentar a seca e os subsídios fiscais que as indústrias exigem para se munir de equipamentos que consomem menos água. O “bombeiro” federal precisa conter todos os incêndios que ameaçam seu edifício. Mas o dinheiro, assim como a água, é escasso.

“Deus é brasileiro, e Ele fará chover”

Na imensa favela da Brasilândia, a uma hora de ônibus ao norte do centro de São Paulo, os moradores já estão bem conscientes do problema que se anuncia. Abaixo da favela, os cortes acontecem como no resto da cidade, mas, quanto mais avançamos pelo labirinto de ruas morro acima, menos acesso à água têm os moradores. Uma avó que tenta recolher a água usada da máquina de lavar roupa nos explica: “Com isso, limpo toda a casa”. Ela fica surpresa com o fato de, naquele mesmo dia, a Folha de S.Paulo ter publicado um infográfico pedagógico apresentando justamente formas de economizar água: recuperar a água da máquina de lavar, reutilizar a água do banho, fechar a torneira quando escovamos os dentes etc. “Até o pessoal lá de baixo está fazendo isso? Então a situação é grave”, conclui.

Ao subirmos na laje, observamos uma profusão de galões e baldes empilhados nos tetos vizinhos. Com qualquer chuvinha, “subimos e posicionamos os recipientes para recolher água da chuva”, comenta seu filho mais velho. A técnica funciona bem, mas, em um país tropical como o Brasil, tem consequências previsíveis. Segundo a Secretaria de Saúde da cidade, os casos de dengue se multiplicaram por três em janeiro deste ano em relação ao mesmo período em 2014.9

A crise da água produz múltiplos efeitos. Para exemplificar um dos mais espetaculares, é preciso visitar os reservatórios do Sistema Cantareira, um dos sistemas mais importantes de adução do mundo. A paisagem que vemos por lá é desoladora. O imenso lago artificial parece, hoje, uma mina a céu aberto. A terra exposta ao sol está rachada. O que resta de água corresponde a 18,2% (em 26 de março) do nível original.

“Ninguém pode nos dizer o tempo que será preciso para recuperar o nível de antes da crise, mas certamente estamos falando de anos, pois, como a terra está exposta, a água se infiltra quando chove, mas também evapora rápido e não faz o nível subir muito”, explica Francisco de Araújo, adjunto da Secretaria de Meio Ambiente de Bragança Paulista. Nas margens, as cinco marinas, em geral cheias durante o verão, estão desesperadamente vazias. “Quase todos os nossos clientes levaram seus barcos para o litoral e não acho que voltarão”, explica Sydney José Trinidad, proprietário de um desses pequenos portos.

Rumores sugerem que, depois de deslocar seus barcos, os mais abastados também já deixaram São Paulo. Mas o ministro de Minas e Energia permanece sereno: “Deus é brasileiro, e Ele fará chover”.

Anne Vigna é jornalista.

Ilustração: Bernardo França

A lei da água

Documentário brasileiro sem fins lucrativos que explica a relação entre o novo Código Florestal, o desmatamento e a crise hídrica brasileira. O filme está sendo exibido em uma série de cinedebates gratuitos espalhados pelo país (acesse a agenda: https://aleidaaguafilme.wordpress.com/agenda-cinedebates/) e chegará aos cinemas de algumas cidades por uma campanha de financiamento colaborativo via Catarse (https://agua.catarse.me/).

1         O estado de São Paulo detém 50,3% do capital da Sabesp. O resto está nas Bolsas de São Paulo e Nova York.

2    “Polícia teme onda de protestos por causa da falta de água e de luz”, El País Brasil, São Paulo, 6 fev. 2015.

3  “Seca em São Paulo é tratada como caso de segurança pública”, 30 nov. 2014. Disponível em: .

4  “PM de São Paulo terá caminhões com canhões de água”, O Estado de S. Paulo, 9 jul. 2013.

5  Isabella Bueno, “A água virtual no contexto da exportação”, Jornal Biosferas, Rio Claro, 10 mar. 2015.

6  Antonio Donato Nobre, “O futuro climático da Amazônia. Relatório de avaliação científica”, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, out. 2014 (disponível on-line).

7  Ibidem.

8  Deterioração de uma floresta por corte seletivo e não durável, em particular pela instalação de pastos e exploração do gado. Nos casos mais graves, pode chegar a se configurar desmatamento.

9          “Secretaria divulga segundo balanço de dengue e chikungunya na cidade”, comunicado do Serviço Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, 12 fev. 2015.

Reforma política: democracia ou plutocracia? (Brasil)

http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1843

Deve-se notar quão diferentes são os projetos: o de Eduardo Cunha, assentado no binômio “financiamento privado” e “voto facultativo”, em contraste com o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público e o empoderamento dos partidos políticos e do cidadão comum

por Francisco Fonseca

O último governo militar, comandado pelo general Figueiredo e articulado ideologicamente pelo general Golbery, o atual sistema político foi estruturado com o objetivo de, parcialmente, contemplar demandas democráticas (caso do pluripartidarismo), mas fundamentalmente manter o statu quo, o que implicou, por um lado, impedir qualquer reprimenda às barbáries impetradas pelos militares e, por outro, vetar grandes reformas estruturais: políticas, sociais e econômicas.1

Deu-se a redemocratização, e a espinha dorsal do sistema político não foi alterada, pois:

a)  o pluripartidarismo foi levado às últimas consequências, a ponto de termos hoje 28 partidos legais com participação no jogo político, dos quais grande parte é considerada “partido de balcão”;

b)  o financiamento dos partidos políticos se consolidou de forma mista (fundo partidário público e financiamento privado legal), mas com uma terceira e decisiva forma de financiamento, ilegal: o chamado caixa dois, que se desenvolve durante todo o período governamental. Neste, as prioridades governamentais (a questão da agenda), que se dão desde o momento eleitoral (coligações eleitorais), passam por parte significativa das licitações, pela composição dos governos (distribuição de nacos de poder a grupos com interesses muito distintos) e pela lógica da chamada “governabilidade”, por meio de “bases de apoio” amplíssimas (coalizão), tornando o caixa dois uma verdadeira instituição informal da vida política brasileira. Nesse sentido, independentemente de partidos políticos e governos, o que se vê, desde a redemocratização, é uma sucessão de escândalos, cuja lista é longa e perpassa todos os governos, e cuja raiz é o financiamento de partidos/campanhas tanto por meio de doações privadas legais – cuja lógica é beneficiar-se após as eleições – como por meio do caixa dois;

c)  a lógica da “governabilidade a qualquer custo”, anteriormente referida, aprofundou-se de tal forma que qualquer governo de coalizão paga um custo político brutal – notadamente os partidos ideológicos, quando vencem eleições ao Executivo – para governar, a ponto de perder sua identidade, então construída quando de oposição (caso notório do PT). Tal sistema tornou-se verdadeira “máquina de moer partidos”, em boa medida indiferenciando-os no quesito “comportamentos/costumes políticos” – embora não quanto a determinados conteúdos de políticas, mesmo que incrementais –, o que traz consequências trágicas à chamada “cultura política”, isto é, aos valores referenciados à “esfera pública”;

d)  distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento; entre outros;

e)  os mecanismos institucionais/legais de fiscalização, embora tenham avançado enormemente, não foram capazes de desfazer a lógica privatizante da vida “pública” brasileira, a ponto de “engavetadores-gerais da República” serem possíveis, uma vez que, em boa medida, dependem do perfil de quem está no poder das instituições fiscalizatórias;

f)   o papel despolitizante, simplificador ao extremo dos problemas nacionais e antidemocrático da grande mídia formou gerações e gerações de “cidadãos” manipulados e incapazes de minimamente refletir sobre os aspectos basilares do processo político (caso das manifestações das classes médias ocorridas no dia 15 de março). Nunca é demais relembrar que a grande mídia brasileira é fortemente oligopolizada (conceito econômico) e oligárquica (conceito político: famílias detentoras de enorme poder comunicacional), tendo prestado enormes desserviços à democracia no Brasil, e jamais foi contida por nenhum governo desde a redemocratização, por quaisquer meios: institucionais, legais, políticos, econômicos, creditícios etc.

Em razão desse conjunto de problemas, tem havido intensos debates, propostas diversas de reforma política e inúmeros embates desde a redemocratização. Dessa forma, duas grandes propostas se consolidaram, desde o ano passado, como projetos claramente antagônicos.

Do lado conservador, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 352/2013, de autoria do hoje ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e encampada pelo deputado e atual presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ),2 que, em linhas gerais, fundamentalmente institucionaliza o financiamento privado – por meio de um inexequível sistema de “escolha”, por partido, da forma de financiamento, isto é, se público, misto ou privado; institui o “voto facultativo”; e impede a reeleição aos executivos; entre outras medidas, a maior parte conservadoras e outras nem tanto, embora, estas, de menor importância. Sobretudo as duas primeiras medidas são suficientes para simultaneamente derrogar toda a luta por reformas de cunho democrático e institucionalizar o que há de pior na vida política do país. Como bem aponta Maria Inês Nassif: “O país, agora, está diante de uma ação desafiadora do presidente da Câmara e de seus asseclas, que têm especialmente como objetivo manter o financiamento privado de campanha, centro de todos os escândalos políticos que envolvem o país desde a primeira eleição direta para a Presidência da República pós-ditadura, em 1989”.3

A chamada “privatização da vida pública” tem no financiamento privado (legal e ilegal) verdadeiro pilar, uma vez que torna estratosférico o preço das campanhas; impede que os pequenos partidos ideológicos tenham a mínima chance de concorrer com os grandes partidos que “jogam o jogo”; torna os poderes do Estado e boa parte de suas ações verdadeiros “balcões de negócios”; estimula a existência ao infinito de partidos e atrai políticos sem qualquer compromisso com a democracia e sem o mais tênue sentido de “esfera pública”; elitiza fortemente a política, dificultando estruturalmente reformas populares ao blindar as elites de qualquer possibilidade de “reformas radicais democráticas”; desestimula a participação política do cidadão comum, abrindo caminho para os lobbies e toda forma de tráfico de influência. Tudo isso amparado, coordenado e amplificado pelo aparato midiático, espécie de “intelectual orgânico” do capital e das classes médias gestoras deste, e que precisa igualmente ser reformado. A PEC n. 352 constitucionaliza, portanto, a plutocracia, isto é, a formalização do governo dos detentores do capital, que hoje atua de maneira informal.

Quanto ao voto facultativo, trata-se de verdadeira derrubada de qualquer vestígio popular de democracia, o que é um paradoxo. Afinal, num país em que historicamente se descrê, e de maneira vigorosa, das instituições estatais e do sistema político,4 o voto facultativo – cuja imagem é a ideia de que “direitos não se obrigam” – tenderia fortemente a excluir os pobres da vida política. A plutocracia fecharia o círculo: pela origem, via capital privado, e pela dinâmica, por meio do voto das classes médias e dos ricos.

Não é coincidência que a agenda conservadora tem no voto facultativo um de seus motes, reforçado ao extremo pela cobertura dos grandes meios de comunicação: TVs, rádios, jornais, revistas e grandes portais privados. A imagem negativa das instituições e do sistema político como algo intrinsecamente sujo tende a afastar da vida política institucional os mais pobres, mais vulneráveis ao “pensamento único” e àquilo notabilizado por Goebbels e válido fortemente nos dias de hoje: a estratégia de que “uma mentira contada reiteradas vezes torna-se verdade”. Portanto, o voto facultativo adquire enorme importância para a lógica privatista e elitista: excluir os pobres – num sistema “formalmente” democrático – da democracia sem a utilização da violência e de regimes autoritários. Reitere-se que a combinação de constitucionalização do financiamento privado com voto facultativo liquida liminarmente a experiência democrática brasileira.5

De maneira oposta, diversas organizações democrática e politicamente organizadas vêm se articulando em torno da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas,6 que reúne mais de uma centena de entidades, entre as quais OAB, CNBB, centrais sindicais e inúmeras outras, das mais distintas naturezas, mas com um único propósito: reformar o sistema político brasileiro numa perspectiva de fato democrática. Os pilares da proposta, que necessita de 1,5 milhão de assinaturas para ser apresentado ao Congresso, baseiam-se na proibição do financiamento empresarial a partidos e candidatos; o voto em lista em dois turnos: no primeiro turno o eleitor vota em uma lista de candidatos apresentada pelo partido e, no segundo turno, em um candidato específico; fim das coligações proporcionais; paridade entre homens e mulheres nas listas partidárias;7 e fortalecimento dos mecanismos de democracia direta com a participação da sociedade em decisões nacionais importantes.

Trata-se de um projeto autenticamente popular e democrático: forma e conteúdo. Afinal, impede o financiamento empresarial8 ao expor a incoerência e a desigualdade resultante desse instrumento, que privilegia determinados partidos em detrimento de outros, torna o jogo político iníquo e fundamentalmente permite o domínio do capital sobre o cidadão.

O projeto procura empoderar dois atores fundamentais: primeiro, os partidos políticos, por meio do voto em lista preordenada, em que os partidos se tornam protagonistas, em vez de os candidatos como indivíduos. Os partidos políticos passam, portanto, a ser responsabilizados e cobrados pela lista de candidatos ofertada, o que implica tornar os mandatos dos eleitos pertencentes, de fato, aos partidos que lhes deram guarida. Mas, o mais importante, implica fortalecê-los como instituição, diminuindo o personalismo individualista que rege o cenário partidário brasileiro.

Segundo, as mulheres (política de gênero) são igualmente empoderadas ao se estatuir paridade entre homens e mulheres na lista ofertada aos eleitores. O projeto considera fundamental que as mulheres sejam protagonistas na vida político/institucional, uma vez que não apenas são maioria da população brasileira (51%, de acordo com o último Censo), como sua participação – nas três esferas do Estado – é historicamente diminuta. Embora haja a lei dos 30% de vagas reservadas às mulheres candidatas aos parlamentos, por partido, o fato é que a participação feminina continua extremamente aquém de seu número e, sobretudo, de sua importância.

Por fim, quanto aos mecanismos de participação direta – também chamados de “democracia direta” e de “controle social” –, procura-se equalizar a democracia representativa (institucional) e a democracia direta (ou de base), de forma que se complementem. Afinal, não há qualquer incompatibilidade entre ambas,9 visto que conselhos gestores de políticas públicas, conferências locais, regionais e nacional de políticas, formas diversas de participação, incluindo-se as digitais, entre outras, já fazem parte da dinâmica social brasileira, embora sem a formalização de uma lei orgânica, que seria o caso do decreto presidencial que os institucionalizaria.

Deve-se notar quão diferentes, isto é, opostos, são os projetos: o de Eduardo Cunha, assentado no binômio “financiamento privado” e “voto facultativo”, em contraste com o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público (fim da plutocracia) e o empoderamento dos partidos políticos (voto em lista), das mulheres (paridade) e do cidadão comum (formas de democracia direta e controle social). Embora em ambos os projetos haja outras questões, tal como proibição da reeleição aos executivos (PEC n. 352), reeleição apenas uma vez, incluindo-se os cargos parlamentares (proposta da Coalizão), entre tantas outras, os pilares de ambos os projetos ancoram-se na forma de financiamento, na obrigatoriedade ou não do voto e na formatação do sistema eleitoral.

Quanto a este último – no bojo das premissas que devem reger a reforma política –, a questão fundamental baseia-se no conjunto de princípios, isto é, representatividade, legitimidade, responsividade, transparência e expressão de uma doutrina política que deve possuir o sistema político e, consequentemente, seus subsistemas: partidário e eleitoral.

A PEC n. 352 (forma e conteúdo), encampada pelo deputado Eduardo Cunha, coloca sobre a democracia brasileira verdadeira “bala de prata”, com o objetivo de ceifá-la, tornando-a uma democracia “formalmente democrática”, mas, na prática, “essencialmente plutocrática”. O projeto da Coalizão é simples e extremamente democrático.

São dois projetos de Brasil. A vitória de um ou de outro impactará gerações. Não é pouco o que está em jogo!

Francisco Fonseca

é mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.

Ilustração: Luciano Feijão
1  Analisei a trajetória recente do sistema político brasileiro na edição de outubro de 2014 do Le Monde Diplomatique Brasil, no artigo intitulado “A que(m) serve o sistema político brasileiro?”.

2  Ver em: www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/456328-GRUPO-DA-REFORMA-POLITICA-PROPOE-FIM-DA-REELEICAO-E-CONSOLIDA-PROPOSTA-FINAL.html.

3  Maria Inês Nassif, “A quem serve a reforma política que Eduardo Cunha tirou do baú?”, Carta Maior, 21 fev. 2015. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-quem-serve-a-reforma-politica-que-Eduardo-Cunha-tirou-do-bau-/4/32909. Deve-se notar, além do mais, a pressa com que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pretende votar o projeto, aproveitando-se de sua popularidade, assim como o conservadorismo de alguns dos principais nomes componentes da comissão que analisa o projeto, a começar por seu presidente, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).

4  Descrença essa captada por pesquisas sobre crença na democracia nos países da América Latina pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pelo instituto chileno Latinobarómetro (www.latinobarometro.org). Ver também o texto de Francisco Fonseca, “Mídia e poder: elementos conceituais e empíricos para o desenvolvimento da democracia brasileira”, Texto para Discussão, Brasília, Ipea, 2010 (TD 1509). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=9660.

5  Embora o voto obrigatório não seja um fim em si mesmo – o que significa que poderá futuramente ser alterado tendo em vista a democratização da sociedade e do Estado –, permanece ainda hoje como fundamental em virtude da ainda vigorosa desigualdade brasileira (em diversos sentidos), da lógica privatista do sistema político e do oligopólio do sistema midiático, entre outros fatores.

6  Ver: http://www.reformapoliticademocratica.org.br. Trata-se de projeto de iniciativa popular construído por entidades representativas da sociedade politicamente organizada – também chamada, por muitos, de “sociedade civil”.

7  Desses tópicos, o fim das coligações nas eleições proporcionais é semelhante nos dois projetos, que, de resto, têm pressupostos e objetivos antagônicos, embora com um ou outro aspecto semelhante.

8  Não há menção ao financiamento privado por pessoas físicas, aceito no projeto da presidenta Dilma e do PT, mas com tetos parcimoniosos.

9     Deve-se notar que não foi dessa forma a percepção majoritária do Congresso Nacional sobre a “Política Nacional de Participação Social” (PNPS), iniciativa da presidenta Dilma Rousseff ao final de seu primeiro mandato, tendo em vista que fora derrogada. Ver PNPS: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8243.htm.

Lugar de honra

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Entrevista. Philippe Meirieu

Para conceituado pedagogo francês, o reconhecimento que um país dá aos seus professores é sinal da importância que atribui a seus filhos, ou seja, a seu futuro

Andrei Netto | PARIS

09 Maio 2015 | 16h 00

É uma leva de professores nas ruas, mais outra de alunos sem aula e a sensação recorrente de que a educação brasileira nunca chega lá. Um dos problemas mais evidentes é o salário baixo de quem se propõe a ensinar. Na tabela mais recente divulgada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o mestre brasileiro ganha, por ano, US$ 10,3 mil, um dos piores salários de professor do mundo. O melhor, para comparar, é o de Luxemburgo: US$ 66 mil anuais. Ter como ofício transmitir o conhecimento, no Brasil, exige alto teor de abnegação e, principalmente, estímulo. Muito estímulo.

Eis o porquê desta entrevista com o escritor e pedagogo francês Philippe Meirieu. Inspirador das reformas pedagógicas realizadas na França nos anos 1990, ele é pesquisador e vice-presidente da região de Rhônes-Alpes, no sul da França, onde cuida da política educacional. Seguidor de Jean-Jacques Rousseau, Pestalozzi e Freinet, aplica os princípios da pedagogia da Nova Educação, iniciativa que o transformou em referência na área muitas milhas além das fronteiras da Europa.

Vácuo: corrida em direção aos resultados diminui papel do mestre e dá poder extremo ao gestor
Vácuo: corrida em direção aos resultados diminui papel do mestre e dá poder extremo ao gestor

No entanto, mais que herdeiro de uma tradição pedagógica utopista, Meirieu é célebre pela defesa feroz do diálogo entre alunos e professores, entre colegas do magistério e entre mestres e administradores. Considerado pelo jornal francês Libération o pedagogo mais ouvido pelos governos da França, Meirieu teria muito a dizer aos líderes brasileiros. Aqui ele aborda um de seus temas de maior repercussão: as tensões inerentes ao ato de educar. Para Meirieu, a educação é responsabilidade coletiva. “Ela deveria envolver todos, absolutamente todos os adultos: pais, políticos, mundo econômico e associativo.”

Suas referências pedagógicas costumavam ser Rousseau, Pestolazzi, Freinet, Montessori, Claparède. Esses grandes autores continuam atuais para a pedagogia contemporânea? Por que são importantes?

A situação obviamente mudou muito desde a época de Rousseau e até mesmo desde os tempos de Freinet, Montessori e Claparède. Mas ainda há no empreendimento educacional uma dimensão antropológica que permanece fundamental: educar é acolher uma criança, a quem convém transmitir não só os meios para compreender este mundo e para nele agir, mas também para renová-lo e até torná-lo melhor. A educação tem, na minha opinião, duas dimensões essenciais: a transmissão e a emancipação, a formação de pessoas capazes de se integrar à sociedade por meio do conhecimento e das habilidades que nós lhes transmitimos; e a formação de cidadãos, que não só têm de se adaptar e obedecer, mas aprender a pensar por si mesmos e se tornar atores sociais em uma democracia vibrante. O que torna as coisas complicadas é que esses dois movimentos – a transmissão e a emancipação – devem ser realizados no mesmo ato, na mesma operação, ao aprender a ler e escrever, ao trabalhar em ciência e literatura, por exemplo. Eu preciso aprender gramática e, ao mesmo tempo, construir minha liberdade por meio de um melhor domínio da comunicação escrita, que me permite ser mais rigoroso e persuasivo para expressar meus pontos de vista. E eu preciso aprender ciências para ser bem-sucedido em minha escolaridade e, ao mesmo tempo, tomar o poder sobre mim e sobre o mundo, lutar contra a fatalidade, buscar ultrapassar as relações de força pela busca da verdade e pelo bem comum. Cada ato de transmissão deve, assim, ser questionado sobre sua capacidade de emancipação. Era nisso que Rousseau estava interessado, assim como Claparède ou, no Brasil, Paulo Freire. Esse é o coração da pedagogia. E, ainda que tenhamos de adaptar nossos meios para fazê-lo, o objetivo continua o mesmo.

Em seu livro ‘Carta a um Jovem Professor’ (Editora Penso), o senhor manifesta a vontade do professor de ser o veículo do aprendizado, um ‘passeur’. No entanto, as tecnologias tomam cada vez mais lugar na educação da criança, que tem mais autonomia. O papel do professor continua o mesmo?

Imaginemos um pesadelo de ficção científica no qual as escolas e as salas de aula desapareceriam e onde cada aluno trabalharia sozinho diante de uma tela, acessando diretamente bases de dados gigantescas, com exercícios que ele utilizaria em função de seu nível. Os alunos teriam a supervisão de vigias, substitutos eficazes dos professores, que se tornariam inúteis. Esse seria o pior dos mundos. Primeiro porque a função do professor não é apenas transmitir os saberes, mas também o amor pelos saberes e o desejo de ser sempre mais preciso, mais correto, mais rigoroso na busca pela verdade. Além disso, as tecnologias podem ser utilizadas de forma pertinente, mas também levar a interpretações erradas e graves. Uma ferramenta de busca não classifica os conhecimentos segundo seu grau de fiabilidade científica, e sim segundo sua atratividade. Um software de educação pode ser muito eficaz para um estudante e inútil para outro. Por último, porque a escola não tem apenas a vocação de franquear o aprendizado aos estudantes; ela deve ser o lugar onde se aprende em conjunto. Digo em conjunto porque isso permite sair do individualismo e construir um coletivo de solidariedade. Em conjunto quer dizer que a discussão e a ajuda mútua são meios preciosos de formação cidadã. Essa é a razão pela qual as tecnologias não tornam o professor inútil. Ao contrário: é ele que se torna o fiador de seu bom uso e de seu caráter educativo.

O senhor fala em “dimensão secreta” no ofício de professor. Essa é uma ideia metafísica. Acredita que o professor é mais missionário do que profissional? 

Nenhum ofício pode ser reduzido à soma de suas competências necessárias. Não é assim para o jogador de futebol, nem para o jornalista, nem para o agricultor, nem para o engenheiro. Os professores não são exceção à regra. Em cada professor há uma espécie de “casa mitológica” no centro de seu compromisso: é a paixão de transmitir, a vontade de que ninguém fique pelo caminho, a necessidade de compreender por que tal aluno não consegue fazer algo e buscar a forma de ensiná-lo, para que todos experimentem o desejo de aprender e a felicidade de compreender. Isso não é metafísico, é um projeto que faz do professor um verdadeiro aventureiro do século 21.

Eu faço essa pergunta porque em ‘Carta a um Jovem Professor’ encontramos uma “inevitável e dolorosa decepção” por parte do professor diante de uma realidade “difícil de aceitar”, já que o trabalho cotidiano fica longe do ideal. Acredita mesmo que a decepção é o destino incontornável do professor?

Sim, sempre há um pouco de decepção no exercício desse ofício, porque o projeto de compartilhar todos os saberes a todos os alunos é necessário porém, ao mesmo tempo, um projeto quase impossível. Mas essa decepção não deve de forma alguma se transformar em fatalismo, ao contrário. É preciso fazer dela um meio de reforçar nossa determinação individual e coletiva, uma maneira de suscitar e estimular nossa criatividade.

O senhor afirma que uma das razões dos disfuncionamentos da escola é a autoridade no interior do estabelecimento, que deixou de ser do professor e está nas mãos dos gestores. Quais são as consequências dessa mudança na hierarquia da escola?

Nós estamos, em especial nos países ocidentais, em uma corrida em direção aos “resultados”, que dão um poder excessivo aos gestores. A obrigação dos resultados na educação é um absurdo: bastaria selecionar os alunos na entrada e obteríamos sempre bons resultados na saída. Além disso, os “gestores” acabam por esquecer o que está no coração do ato pedagógico: o desejo de aprender. Nós podemos ter uma instituição séria, bem-organizada, com uma multiplicidade de escalas e controles, avaliações e painéis de bordo de toda espécie. E, diante de nós, alunos para quem o conhecimento ensinado não tem sentido algum. Então eles só trabalham para evitar sanções e se tornam “carreiristas”. Perguntemo-nos sempre o que pode mobilizar a inteligência de uma criança, busquemos a cultura que seja suscetível de ajudá-lo a sair de suas preocupações imediatas, o que pode lhe abrir os olhos para o mundo e conduzi-lo a saberes mais complexos. É preciso evitar, creio eu, reduzir a escola a uma máquina de ensinar porque, como máquina, a escola não funciona. Ela funciona apenas como ponto de encontro vivo entre “professores-pesquisadores” e “estudantes-pesquisadores”.

O senhor denuncia a “teorização excessiva, tecnocrática” do ato de ensinar. A educação teria se tornado mercantil demais, orientada demais à eficiência. Mas mesmo a escola pública e gratuita caiu nessa armadilha? Qual seria o antídoto para essa situação?

A verdadeira eficiência da escola seria transmitir o desejo de aprender, não transformar a escolaridade em uma corrida de obstáculos. Todas as nossas escolas estão ameaçadas pelo utilitarismo de ensinar apenas “o que vai servir” imediatamente. Mas o prazer de aprender está no reencontro com a cultura, porque a cultura não responde apenas aos problemas concretos e imediatos, mas às questões fundamentais que o ser humano se faz sobre suas origens e sobre seu futuro, sobre o que o inquieta e sobre o que lhe dá esperança. Eu sonho com uma escola na qual se ensine aos estudantes por que e como Pitágoras elaborou o famoso teorema ou em que condições Newton descobriu a gravidade, uma escola na qual, por meio da literatura, possamos aprender a domar nosso medo do outro e a pactuar com a incerteza. Eu sonho com uma escola onde ensinemos saberes vivos e não saberes fossilizados.

Em 2008 o filme francês ‘Entre os Muros da Escola’, de Laurent Cantet, fez enorme sucesso, inclusive no Brasil, ao abordar as condições de ensino nas periferias da França. Como chegamos a esse ponto? E como sair dele?

Esse filme me pareceu muito caricatural, tanto pela realidade que ele descreve quanto pela atitude demagógica do professor que ele promove. É claro que a situação se tornou muito difícil em algumas turmas porque nós não mais escolarizamos apenas as crianças privilegiadas, que encontraram suas panóplias de bons alunos aos pés de seus berços. Mas estou certo de que devemos ser exigentes com os estudantes, estruturar a classe com regras que permitam de fato o trabalho em conjunto, propor conteúdos que mobilizem os estudantes e fazer tudo isso em estabelecimentos que sejam verdadeiras “instituições” sólidas, com equipes de professores solidários, que assumam e acompanhem os grupos de alunos que eles conhecem. Eu sou a favor da implantação de “microestabelecimentos” dentro dos estabelecimentos, que reagrupem uma centena de estudantes, sob os cuidados de cinco ou seis professores responsáveis. Não precisamos de grandes estabelecimentos anônimos nos quais os alunos são abandonados a eles próprios e à boa vontade de alguns adultos voluntários. Precisamos de “medidas estruturantes”, com escala humana.

Na França fala-se muito na cultura-zapping dos alunos, em especial dos estudantes de periferia. No Brasil, no entanto, a realidade é ainda mais dura: a da evasão em massa, do abandono, do tráfico de drogas dentro dos muros da escola, da violência entre estudantes e dos estudantes para com os professores. Como um professor talentoso, idealista, pode sobreviver em um ambiente tão hostil?

Posso bem imaginar a dificuldade da tarefa e o sofrimento dos professores. Frente a isso, creio antes de mais nada na força do trabalho em equipe, em romper a solidão, em trabalhar em conjunto, em trocar impressões sobre dificuldades e conquistas. Trabalhar em duplas de professores em uma mesma turma, mesmo que mais numerosa, pode ajudar a retomar as rédeas. Além disso, mesmo os alunos mais marginalizados, mais difíceis, podem se apaixonar por alguma coisa – um projeto, uma atividade cultural forte – que lhes permitirá mudar de comportamento. Eu sei bem que os professores se sentem desgastados, mas eles devem saber que, em muitos casos, mesmo se uma atividade parece não interessar aos alunos, mesmo se uma situação degenera em violência, mesmo se a indiferença se instala, não podemos nunca saber se não influenciamos alguns que, por pudor, não dirão nada, mesmo que estejam marcados profundamente para o resto de suas vidas. Enfim, claro que a escola não pode, sozinha, reparar todas as feridas da sociedade. A educação é uma responsabilidade coletiva de todos os adultos, absolutamente todos os adultos: pais, políticos, mundo econômico e associativo. Nós temos todos uma responsabilidade educativa e temos um “dever de intervenção” a cada vez que uma situação se degenera. Não podemos exigir tudo dos professores. O dever da exemplaridade concerne a todos nós.

O professor no Brasil é um dos mais mal pagos do mundo, segundo indicadores estatísticos. O que isso quer dizer sobre a importância da educação em um país? 

Evidentemente é um mau sinal. O professor tem um ofício muito duro. Deve ter direito a um reconhecimento que seja ao mesmo tempo simbólico e material. O reconhecimento que um país dá aos seus professores é o sinal da importância que atribui a seus filhos, ou seja, a seu futuro.

No sul do Brasil, um movimento de greve e uma manifestação de professores foram reprimidos pela polícia a cacetadas e a tiros de balas de borracha há alguns dias. O que o senhor pensa disso?

Não consigo entender tal comportamento da polícia. Em uma democracia os governantes devem prestar atenção extrema às demandas dos professores e manter um diálogo aberto e permanente com eles. Os governos podem não estar de acordo com os professores e vice-versa; pode haver conflitos, até mesmo graves. Mas é preciso sempre que os dirigentes deixem a porta aberta aos professores. Isso não significa que devam ceder em tudo, mas que eles os escutem, compreendam e procurem avançar em harmonia. Não podemos governar de forma sustentável hostilizando os encarregados de formar nossa juventude. A história nos ensina isso permanentemente. A revolta dos professores é sempre, em uma sociedade, sintoma de um mal-estar que deve ser levado a sério. Não é um movimento caprichoso que deve ser reprimido.

O senhor costuma dizer que uma das missões da escola é ensinar a viver juntos, a respeitar as diferenças, a escapar da armadilha da formação de comunidades fechadas. Chama isso de ‘aprendizado da liberdade’. Mas parece que vivemos numa espiral inversa, a da radicalização, do entrincheiramento, da reafirmação de nossas próprias convicções, a despeito do outro. Como lutar contra isso?

Tem razão. A sociedade que você descreve é exatamente aquela em que vivemos. Mas, frente a ela, a escola não deve ter vergonha de remar contra a maré, ao contrário! É a sua missão! Frente ao entrincheiramento individual, a escola deve promover o coletivo, a solidariedade. Frente ao aumento da desatenção e da demagogia, a escola deve promover o esforço intelectual e o prazer que dele se depreende. Frente a todas as formas de radicalização, a escola deve ensinar e mostrar de forma concreta a diferença entre o “saber” e o “crer”. Frente ao apelo da pulsão consumista, a escola deve ensinar a limitar as demandas. Frente à aceleração infernal imposta pelas tecnologias, a escola deve dar tempo para pensar, tatear, refletir. A escola não deve ter vergonha de reequilibrar a sociedade. É a sua missão fundamental.

Cansamos! (EUA)

http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,cansamos,1679864

D. Watkins – O Estado de S. Paulo

02 Maio 2015 | 16h 00

‘Se a polícia nos espanca e nos mata, é inútil dar as mãos e obedecer aos pastores. A opção é revoltar-se’, diz escritor morador de Baltimore

O que está ocorrendo em Baltimore neste momento, tem a ver com Freddie Gray, o jovem negro de 25 anos espancado de maneira selvagem por policiais no dia 19 de abril, aparentemente por ter olhado para eles. Depois de dominá-lo, eles praticamente quebraram sua espinha dorsal, destruíram sua laringe, e ele foi levado numa van da polícia, embora várias vezes pedisse um médico. Morreu uma semana mais tarde.

Punhos cerrados: Moradores protestam contra morte de F. Gray.
Punhos cerrados: Moradores protestam contra morte de F. Gray.

No entanto, não tem a ver apenas com Freddie Gray. Como ele, eu cresci em Baltimore, e eu e todos os meus conhecidos temos histórias semelhantes para contar, embora as nossas terminassem de maneira um pouco diferente. Para nós, a polícia de Baltimore não passa de um bando de terroristas pagos por nossos impostos, que espancam diariamente gente da nossa comunidade, sem jamais ter de explicar coisa alguma ou pagar por suas ações. A situação chegou a tal ponto que nós não chamamos a polícia, a não ser que precisemos de um boletim de ocorrência para pedir uma indenização.

E a questão não é só a polícia. Nós ficamos assistindo enquanto a prefeita, Stephanie Rawlings-Blake, juntamente com o chefe do Departamento de Polícia, Anthony W. Batts, levaram uma semana investigando o que era claramente um caso elementar. Tenho certeza de que, se eu quebrasse o pescoço de uma pessoa sem nenhum motivo, seria acusado em poucos minutos. Mas o sistema – mesmo quando dirigido por um prefeito negro e um chefe de policia negro, e quando a maioria dos vereadores da cidade é negra – protege a polícia, independentemente do seu comportamento abertamente brutal.

Vou pular os casos das vítimas inocentes da sanha policial que receberam ao todo cerca de US$ 6 milhões em acordos extrajudiciais da prefeitura, nos últimos três anos, ou os de Tyrone West, Anthony Anderson, Freddie Gray e das mais de 100 pessoas assassinadas pelos policiais da cidade nos últimos dez anos, e trato diretamente de algumas das experiências que tive com policiais por eu ser preto em Baltimore.

Quando eu tinha dez anos, bandidos chutaram a porta da minha casa até arrancá-la das dobradiças, à procura de drogas. Eles nos mantiveram durante horas sob a mira das armas enquanto destruíam nossa casa. Quando foram embora, minha mãe chamou a polícia; ela chegou duas horas mais tarde, e nos tratou como se nós fôssemos os bandidos, queixando-se de ter de fazer um relatório policial.

Quando eu tinha 12 anos, jogava basquete em Ellwood Park, no lado leste da cidade. Um dia, os policiais chegaram dizendo que procuravam um suspeito de roubo. De repente, cerca de seis policiais entraram na quadra e mandaram todo mundo deitar no cimento, com a cara virada para o chão. Um amigo meu, Fat Kevlin, perguntou: “Por que tratam a gente como animais?” Um dos policiais berrou “Porque vocês não valem nada!” e falou um palavrão.

Então, quando eu tinha 14 anos, um policial derrubou um garoto chamado Rick da moto. Rick pulou na hora, gritando “O que foi que eu fiz?” e instantaneamente foi imobilizado com o cassetete por dois policiais. O rosto de Rick ficou bastante machucado durante semanas.

Poderia contar um monte de episódios que ocorreram nos anos seguintes, do jardim da infância à universidade. Se agora fazem manifestações ou incendeiam carros da polícia é porque quase todos os negros de Baltimore já passaram por experiências semelhantes.

A polícia de Baltimore, como em muitas outras partes do país com uma densa população negra, está fora de controle há muito tempo. Um dos principais motivos é que muitos policiais de Baltimore não moram em Baltimore. Alguns nem sequer vivem no estado de Maryland. Muitos não conhecem ou não se importam com os cidadãos das comunidades que deveriam proteger. É por isso que vêm para cá, nos espancam e nos matam sem dó nem piedade.

Muitos outros cidadãos sentem da mesma maneira, e é por isso que os grupos mais variados de manifestantes vão para as ruas todos os dias desde a morte de Freddie Gray. A maioria dos protestos é pacífica. Os primeiros atos de violência só ocorreram depois de um protesto não violento na noite de sábado, na frente da prefeitura. Dali, um grupo de manifestantes, eu entre eles, se dirigiu para Camden Yards, onde os Orioles jogavam (beisebol) com os Boston Red Sox. Enquanto passávamos em frente a uma série de bares, torcedores brancos que estavam do lado de fora, com o uniforme de Baltimore e de Boston, gritaram: “Nós não damos a mínima! Não damos a mínima!” Nos chamaram de macacos. Então começou uma briga, pessoas se machucaram.

Alguns poderão perguntar: “Por que Baltimore?” Mas a pergunta certa é: “Por que demorou tanto?” Os jovens revoltados de Baltimore estão atentos aos protestos pacíficos de Sanford, Flórida, Ferguson, Missouri, e Nova York, e ficam decepcionados com o resultado.

Todos nós começamos a achar que darmos as mãos, obedecer aos pastores e os protestos pacíficos são inúteis. A única opção é revoltar-se. E obrigar a prefeita a fazer o que deveria ser uma opção fácil entre parar de proteger o emprego dos policiais que mataram Freddie Gray, ou então ficar vendo Baltimore queimar de cima abaixo.

/ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

D. WATKINS É ESCRITOR, AUTOR DE THE BEASTSIDE, UMA COLEÇÃO DE ENSAIOS, E COOK UP, UM LIVRO DE MEMÓRIAS, NO PRELO. ELE ESCREVEU ESTE ARTIGO PARA THE NEW YORK TIMES

Política como teatro

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José de Souza Martins – O Estado de S. Paulo

02 Maio 2015 | 16h 00

Manifestantes que invadiram aula de Haddad na USP seguiam roteiro, tinham decorado seus papéis – algo que vem se tornando comum nas manifestações coletivas

O site da Rádio Jovem Pan divulgou link da invasão da sala de aula em que o professor Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, ministrava seu curso de pós-graduação sobre Economia Política da Cidade, na Faculdade de Filosofia da USP. A invasão foi feita por cerca de 40 jovens do grupo Luta do Transporte no Extremo Sul, que recebe apoio do Movimento Passe Livre, organização atuante nas manifestações urbanas desde 2013. Querem cinco linhas de ônibus em sua região que poupem os moradores de longas caminhadas em seus deslocamentos.

Periferia vs. Centro: Reivindicação era legítima, porém feita no lugar errado
Periferia vs. Centro: Reivindicação era legítima, porém feita no lugar errado

Haddad está licenciado da USP para exercer a função de prefeito. Mas decidiu retornar à sala de aula, como é comum nas grandes universidades de países com outros índices de civilização. A invasão da aula de Haddad foi para fazer exigências que deveriam ser feitas na prefeitura. No entanto, a demanda fora de lugar é em si mesma esclarecedora, porque no desconforto das personagens – manifestantes, professor e alunos – expressaram-se os sintomas de um Brasil sem rumo.

Os moradores de Parelheiros e de Engenheiro Marsilac fazem reivindicação legítima. Fazem-na, porém, no lugar errado. O prefeito manteve a serenidade e lhes deu a resposta cabível: convidou-os a conversar no corredor e marcou uma ida aos bairros para tratar do assunto diretamente com a população, não só com o grupo. O prefeito o é em sua prefeitura; o professor o é em sua sala de aula. É como se fossem duas diferentes pessoas. Cada qual com a missão que lhe cabe.

Os manifestantes apresentaram-se munidos de microfones, alto-falantes e filmadora. Estavam equipados, coisa de gente organizada, com respaldo. No link postado eles são ouvidos claramente, enquanto mal se consegue ouvir as respostas do prefeito. Foram para falar e exigir, para impor ao prefeito a assinatura de um documento de compromisso com o que pediam. Não foram para ouvir e negociar, como é próprio da política, embora se refiram a “diálogo” e questionem o prefeito na pessoa do professor, sugerindo que naquela disputa de espaço ele se recusava ao diálogo, o que a gravação mostra não ser verdade. O prefeito sugere que a dificuldade para o atendimento da intimação se deve ao fato de que se trata de região de proteção ambiental. Não é questão que dependa de vontade política como aos manifestantes sugeriram funcionários da prefeitura. As demandas sociais têm limites no próprio interesse de todos.

Os manifestantes falavam basicamente pela boca de dois líderes jovens, um dizendo coisa diversa da do outro, ao mesmo tempo que o que estava mais próximo de Haddad acusava o prefeito de não deixá-lo falar, quando era exatamente o oposto. Seu próprio colega sobrepunha seu discurso ao discurso do suposto porta-voz do grupo. A acusação era parte do teatro. Ali ocorria algo que vem se tornando comum nas manifestações coletivas, aqui e em outros países: a política como teatro. Os manifestantes levaram o roteiro, haviam decorado seus papéis. Havia uma certa criatividade teatral na ocorrência. Tanto o prefeito quanto os alunos não foram avisados de qual era o script e tiveram que improvisar. A improvisação era a reação esperada dessa espécie de teatro experimental das novas formas de manifestação política.

Manifestantes e alunos eram aproximadamente da mesma idade, separados, no entanto, pelo abismo das grandes distâncias sociais, não só o da polarização espacial que vem definindo em São Paulo o cenário da ação política, a periferia em conflito com o centro. Foi o próprio PT que instrumentalizou e conceituou essa espacialidade das disputas políticas, construindo uma geografia imaginária sem conteúdo para, a partir dela, engendrar sujeitos de ação política que derivam do cenário e não propriamente da práxis e da respectiva situação social.

Nesse incidente de sala de aula, a periferia fez o discurso das carências elementares dos que vivem no limite, os pobres, contra o que, nessa lógica, é o centro, a produção e difusão do conhecimento erudito, o que é próprio da universidade. Num certo momento, uma das alunas protestou contra a interrupção da aula pelos invasores. Teve agressiva resposta imediata de uma manifestante. “Eu trabalho!”, gritou a moça. Estava ali, naquele confronto, o estereótipo que centraliza a ideologia dos que veem na universidade pública não só o centro como um centro de poder, mas também como lugar dos que não trabalham, apenas desfrutam. A aluna ainda tentou explicar que ela também trabalha, o que é verdade em relação aos alunos de pós-graduação e a um numeroso grupo de alunos da graduação, especialmente os dos cursos noturnos. Já saindo os manifestantes da sala, um deles gritou para os alunos que aquilo (sim) era a luta de classes. Era uma crítica à cíclica agitação estudantil de uma classe média afluente que usurpou a ideologia da luta de classes para justificar demandas que não se explicam nessa perspectiva. Mera imitação da classe operária por quem operário não é.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DEFILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)

Injustiça com as próprias mãos

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Túlio Vianna – O Estado de S. Paulo

16 Maio 2015 | 16h 00

Foram necessários séculos de civilização para se perceber que não é razoável sair por aí queimando pessoas acusadas de bruxaria pelos vizinhos. Mas a internet resgatou o hábito de jogar gente ‘suspeita’ na fogueira

Outro inocente sofreu execração pública na internet essa semana. Na Austrália, um homem estava tirando uma selfie ao lado de um pôster do Darth Vader. Algumas crianças se aproximaram e ele pediu que elas aguardassem um segundo para que ele concluísse a foto. A mãe viu a cena, imaginou que ele estivesse fotografando seus filhos e não teve dúvidas: fotografou o sujeito e postou no Facebook, afirmando que se tratava de um pedófilo. Mais de 20 mil pessoas compartilharam a postagem e o homem teve que ir à polícia esclarecer a situação e tentar salvar o que sobrou de sua reputação. Mais tarde, percebendo o grave equívoco, a mulher se desculpou publicamente e logo em seguida passou a ser ela própria vítima da fúria dos execradores nas redes sociais.

Exagero: era só uma selfie com o Darth Vader, mas a mãe viu o mal em pessoa
Exagero: era só uma selfie com o Darth Vader, mas a mãe viu o mal em pessoa

A maioria das pessoas não pensa muito antes de compartilhar gravíssimas acusações como essa. A emoção despertada pela indignação com a notícia e o pânico moral de que aquele indivíduo possa produzir novas vítimas são capazes de desligar qualquer resquício de racionalidade e senso crítico da maior parte das pessoas. E, assim, denúncias falsas, ainda que bem-intencionadas, tornam-se virais e espalham-se pela internet em uma velocidade exponencial.

Não bastasse essas reações espontâneas e emocionais de quem compartilha graves denúncias em um ímpeto de indignação, está se tornando moda na internet os “escrachos” orquestrados por ativistas políticos desejosos de fazer “justiça” a qualquer preço.

No início deste mês, militantes feministas acusaram um segurança de uma boate de São Paulo de ter estuprado uma frequentadora. As acusações geraram enorme repercussão na internet. Posteriormente, a suposta vítima esclareceu na delegacia que não houve estupro e que o contato dela com o segurança havia sido consensual. Tarde demais. A vida sexual da moça já havia sido exposta, o segurança já havia ganhado o rótulo de estuprador e a reputação da boate já havia se desgastado. Tudo em nome da “justiça”.

O problema é que ninguém acha que faz injustiça com as próprias mãos. Todo mundo tem sempre a plena convicção de que está fazendo justiça. Nenhuma declaração de guerra foi feita em nome do mal; todo general que se preze alega estar lutando em nome do bem. Nenhuma tortura, seja da inquisição ou das polícias de nossos dias, foi praticada em nome do mal; todo verdugo afirma que age em nome do bem. Nenhum linchamento ou esculacho é praticado por malfeitores; todo justiceiro está convicto de que é um homem de bem. E é por isso que o inferno está cheio de pessoas bem-intencionadas.

Boas intenções nem sempre trazem bons resultados. Foram necessários séculos de civilização para se perceber que não é razoável sair por aí queimando pessoas simplesmente por terem sido acusadas de bruxaria pelo vizinho. O Direito ocidental consagrou princípios como legalidade, contraditório e ampla defesa não para “defender bandidos”, como muitos insistem em dizer, mas para defender acusados da fúria dos bem-intencionados.

A cultura da justiça pelas próprias mãos baseia-se na premissa de que os fins justificam os meios. Dessa forma, quem age em nome do bem, de Deus, de minorias oprimidas ou de qualquer causa que considere relevante se julga legitimado para passar por cima da própria lei. E é por isso que essa é uma ideologia inevitavelmente antidemocrática. Em um Estado de Democrático de Direito, quando a lei é falha, deve-se procurar modificá-la no parlamento, e não simplesmente violá-la.

É bem verdade que o caminho democrático para a realização da justiça é muito mais longo e árduo que a solução simplista da justiça com o próprio teclado. É muito mais fácil escrachar supostos racistas pela internet do que acionar o Ministério Público para que ele seja processado e julgado pelo crime de racismo. É muito mais fácil escrachar supostos homofóbicos na internet do que lutar pela aprovação de uma lei que criminalize a homofobia. E é muito mais fácil escrachar supostos estupradores pela internet do que dar os meios para que as vítimas de estupro processem criminalmente seus agressores.

A democracia pode até não ser o sistema mais simples e rápido de resolução de conflitos, mas a adoção da justiça pelas próprias mãos deixa a porta aberta ao totalitarismo. Patrulhas morais da internet não são uma alternativa democrática às deficiências dos órgãos públicos, pois estão fadadas a cometer os mesmos excessos autoritários de qualquer milícia.

A cultura do escracho digital é um indício frustrante de decadência do ativismo político na internet, que parece ter deixado de ser uma ágora de debates e de pressão pela aprovação de novas leis no Congresso Nacional para se converter em um pelourinho para execrações públicas.

TÚLIO VIANNA É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG. AUTOR DE UM OUTRO DIREITO (LUMEN JURIS)