Archive for 23 de janeiro de 2017

Pergunta para São Paulo, 463: A cidade trata como gente quem nada tem?

Leia no original:

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/01/22/pergunta-para-sao-paulo-463-a-cidade-trata-como-gente-quem-nada-tem/

Leonardo Sakamoto

O prefeito João Doria retirou o veto que proibia a remoção de cobertores, mantas, travesseiros, colchões, papelões de pessoas em situação de rua em São Paulo. A proibição havia sido adotada por Fernando Haddad após duras críticas sofridas por conta da remoção de ”itens portáteis de sobrevivência” pela Guarda Civil Metropolitana durante o frio de junho do ano passado. Continua proibido tomar outros bens pessoais, como documentos e muletas, e instrumentos de trabalho, como carroças.

Apesar de excluir o veto que impedia a remoção de cobertores, João Doria prometeu – de acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, neste domingo (22) – que não irá retirar… cobertores. ”É apenas para preservar o direito da GCM [Guarda Civil Metropolitana] para não haver a ilegalidade, mas jamais retirar pertences e cobertores.” A declaração, que respondeu não-respondendo, mantém a pergunta: se não para é retirar, por que não manter a regra? A decisão é assinada também pelas secretarias de Prefeituras Regionais, Justiça e de Governo.

Postei vários textos criticando ações da administração Haddad quando essa não garantia a dignidade da população em situação de rua. O mesmo vale para a gestão Doria, portanto.

Então, para ajudar o novo prefeito em sua tarefa inglória de ”higienizar” São Paulo para os ”homens e mulheres de bem”, atualizo meu guia de ”Regras Fascistas para Convívio Social com a População em Situação de Rua – Um guia fácil para uma cidade melhor”. Muitas das medidas já estão em curso há anos, outras – desconfio – que estejam sendo estudadas. E não vale apenas para a capital paulista, mas para cidades de todo esse nosso Brasil do ame-o ou deixe-o.

(A partir daqui, cuidado: texto com ironia, sarcasmo e cinismo.)

Por que o guia é útil? Porque uma dúvida segue aterrorizando muita gente na véspera de São Paulo completar 463 anos: Quem não tem nada deve ser tratado como gente mesmo assim?

Pessoa em situação de rua e arte urbana. Os primeiros inimigos da política higienista urbana. Foto: Hélvio Romero (https://helvioromero.wordpress.com)

Daí, perguntas derivadas dessa questão fundamental: Pode bater em ”mendigo” que dorme na rua? Queimar gente que cochila em ponto de ônibus é crime? Derrubar a casinha imaginária de papelão de quem não tem teto é errado? Jogar desinfetante em pobre que cheira mal é pecado? Esconder moradores de rua atrás de tapumes para proteger a ideia de belo é um equívoco? Eles têm o direito de ocupar o mesmo espaço que nós, que pagamos impostos? São, realmente, considerados seres humanos? A igreja já soltou algum comunicado dizendo que eles têm alma ou não da mesma forma como ela já fez com os índios?

Convenhamos: é tanta gente defendendo medidas de limpeza social na internet ou clamando por isso na TV que os ”homens e mulheres de bem” ficam perdidos em meio a tantas opções – o que é um absurdo. Ainda mais nessa vibe ”Cidade Linda” em que estamos entrando, quando mendigos e grafites cismam em atrapalhar o visual. Dane-se a ética! Viva a (questionável) estética!

Segue o guia:

1) É permitida a utilização de fogo com o objetivo de limpar áreas públicas de pessoas em situação de rua.

1.1) Considerando que o álcool vendido no varejo não queima como o de antigamente, recomenda-se o uso de gasolina, etanol, diesel ou querosene.

1.2) O uso do fogo como instrumento de limpeza social deve se atentar para o risco de atingir veículos automotores em vias públicas. Nesse caso, os infratores serão responsabilizados com todo o rigor da lei.

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2) Áreas cobertas em viadutos, pontes, túneis ou quaisquer locais públicos que possam acolher população em situação de rua devem ser preenchidas com concreto ou gradeadas, evitando assim a criação de nichos ou casulos de maltrapilhos prontos para assaltar o cidadão de bem.

2.1) Em caso de uso de concreto para preencher esses espaços, lembre-se que a face superiora da concretagem não deve ficar paralela à rua, mas com inclinação suficiente para que um corpo sem-teto nela estendido e prostrado de cansaço e sono role feito um pacote de carne velha até o chão.

2.2) Outra opção, caso seja impossível uma inclinação acentuada, é o uso de floreiras, cacos de vidro, lanças de metal ou cactos. É menos discreto, mas tem o mesmo resultado.

2.3) Se o pessoal dos ”direitos humanos” reclamar e/ou houver pressa para a solução do problema, a implementação de tapumes escondendo as pessoas em situação para os motoristas funciona como um alento provisório. Afinal, o que os olhos não veem, o coração não sente.

Cactos plantados, em Salvador, embaixo de viadutos. Eles espantam pessoas em situação de rua (Fernando Vivas/A Tarde)

3) Prédios novos devem ser construídos sem marquises para impossibilitar o acúmulo de sem-teto ou de supostos marginais em noites frias e/ou chuvosas.

3.1) Caso seja impossível por determinações estéticas do arquiteto, a alternativa é murar o edifício ou cercá-lo de grades ou placas de acrílico. A colocação de seguranças armados é outra possibilidade, caso haja recursos para tanto.

3.2) Em caso de prédios mais antigos, uma saída encontrada por um edifício na região central de São Paulo e que pode ser tomada como modelo é a colocação de uma mangueira furada no teto, emulando a função de sprinklers. Acionada de tempos em tempos, expulsa desocupados e usuários de drogas. Além disso, como deixa o chão da calçada constantemente molhado, espanta também possíveis moradores de rua que queiram tirar uma soneca por lá.

Grade que chegou a ser instalada em Porto Alegre para evitar população em situação de rua (Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21)

4) Bancos de praça devem receber estruturas que os separem em três ou quatro assentos independentes. Apesar disso impossibilitar a vida de casais apaixonados ou de reencontros de amigos distantes, fará com que sem-teto não durmam nesses aparelhos públicos, atrapalhando a real função de um banco, é enfeitar a praça.

Novamente, Porto Alegre.

5) Em regiões com alta incidência de seres indesejáveis, recomenda-se o avanço de grades e muros para além do limite registrado na prefeitura, diminuindo ao máximo o tamanho da calçada. Como é uma questão de segurança, um fiscal municipal que discordar da situação pode ”se fazer entender” da importância de manter esse avanço irregular através de um mimo.

6) Cloro deve ser lançado nos locais de permanência de sem-teto para garantir que eles se espalhem. Caso não seja suficiente, pode ser necessária a utilização de produtos químicos mais fortes vendidos em lojas do ramo, como vem fazendo algumas lojas no Centro da cidade. A sugestão é o uso de um aspersor conforme o item 2.2, mas instalado no chão.

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7) Apoiar propostas legislativas, como a retirada compulsória de seres indesejáveis dos espaços públicos ou mesmo a flexibilização da legislação vigente, permitindo ações preventivas de uso da força contra mendigos que se aproximem de automóveis de cidadãos de bem em semáforos fechados.

7.1) Uma revisão das cláusulas pétreas na Constituição, relacionadas a direitos fundamentais e que atrapalham o aprofundamento da limpeza social na cidade, também se faz preciso. Especial atenção ao subversivo ”direito de ir e vir”.

8) Apoiar incondicionalmente a ação de prefeituras quando elas retiram cobertores e papelões que servem para proteger os seres indesejáveis nas noites e madrugadas frias.

8.1) A justificativa é de que essa ocupação irregular de poucos metros quadrados privatiza o espaço público e torna a cidade mais feia, o que é inaceitável. A privatização do espaço público e a imposição de violência estética só devem ser permitidas quando feitas por importantes empresas, grandes clubes, luxuosos condomínios e honoráveis cidadãos. Porque, afinal de contas, a cidade pertence a eles.

Pessoa em situação de rua usa sofá abandonado em noite de muito frio em São Paulo. Foto: Nacho Doce/Reuters

9) Albergues públicos devem ser garantidos em número bem inferior à quantidade de seres indesejáveis em cada bairro. Dessa forma, ou eles congelam e morrem do lado de fora ou fogem para outro lugar. Não importa, de qualquer jeito, o problema se resolve.

10) Caso seja questionado pela aplicação de qualquer uma das medidas acima apresentadas, responda com a argumentação desenvolvida há décadas pela elite da cidade e que se mantém atual e cheia de significado de como ela vê o papel do indivíduo e as responsabilidades do Estado: ”Tá com dó? Leva para casa”.

Agora, me digam: não é assustador que parte das pessoas que lerão este post irá considerar tudo isso boa ideia?

 

Teorias sobre a morte de Teori mostram em qual bolha da rede você está

Leia no original:
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/01/21/teorias-sobre-a-morte-de-teori-mostram-em-qual-bolha-da-rede-voce-esta/

Leonardo Sakamoto

Há muitas dúvidas envolvendo a queda do avião que levou à morte de Teori Zavascki, relator da operação Lava Jato no STF, e mais quatro pessoas, no mar de Paraty (RJ).

Como já disse aqui na própria quinta (19) da tragédia, apenas uma investigação séria e transparente, monitorada pela imprensa e pela sociedade, talvez seja capaz de dizer o que aconteceu, ou seja, se foi falha humana ou mecânica, condições metereológicas ou sabotagem da grossa.

Até lá, qualquer tentativa de cravar uma resposta é mimimi.

Mas tem um lado bom das teorias conspiratórias que surgiram no rastro do ocorrido. De certa forma, elas funcionam como um indicador que mostra em qual bolha você está inserido (OK, estou simplificando, porque não há apenas duas).

Se em suas timelines de redes sociais e mensagens de WhatsApp aparece apenas que Lula, Dilma e PT derrubaram o avião, você está em uma bolha.

Se aparece apenas que Temer, Jucá, PMDB e PSDB foram os responsáveis por sabotar, você está em outra bolha.

Se você é da minoria em que as duas teorias aparecem mais ou menos por igual, meus pêsames. Sua vida deve ser um inferno.

O mais interessante é que as pessoas não percebem que há um mundo de gente defendendo algo totalmente oposto à sua timeline porque não consegue ver além da bolha. Isso, é claro, é culpa do algoritmo das redes sociais, que garante que você veja coisas de pessoas com a qual interage mais, com a qual concorda mais. Dessa forma, você fica mais tempo na rede, gerando conteúdo de graça e clicando em links patrocinados.

O susto por conta de alguns resultados nas eleições de 2014 (muitos achavam que Aécio ia levar, por exemplo) e de 2016 (outros tantos ficaram de queixo caído com a eleição de Dória no primeiro turno) são provas disso. Ou mesmo todo o processo de impeachment.

Alguns veículos de comunicação de grande alcance, como o próprio UOL, têm se esforçado em trazer textos que separam o que é fato do que é especulação na queda do avião. Mas esses textos não chegam a quem deveria ou, lá chegando, são recebidos com desconfiança. Nem tanto pela perda de credibilidade da imprensa nesse momento de polarização estúpida em que vivemos, mas porque as pessoas estão sendo guiadas pela emoção e não pela razão.

A impressão é de que realmente querem uma conspiração para o caso por ajudar, como já escrevi aqui, a preencher um vazio deixado pela aparente falta de sentido de uma realidade política e econômica que transforma em estagiários os roteiristas de House of Cards e Game of Thrones.

Neste momento, muita gente divulga informação de sites que claramente estão alimentando teorias de conspiração ao invés de promover investigação séria. Porque esses sites não fazem jornalismo, não contam com profissionais analisando dados e entrevistando pessoas, mas caçam-cliques para ganhar dinheiro através de views em anúncios ou foram construídos como armas na guerra digital – que se fortaleceu no Brasil após a pancadaria promovida por Dilma e Aécio em 2014.

São sites que não informam os seus responsáveis, que não têm endereço, anônimos e apócrifos, produzidos para formarem opinião e manipularem as diferentes bolhas que se estabelecem na sociedade.

Até entendo as pessoas que nunca refletiram sobre isso e não veem diferença entre uma Folha de S.Paulo, um O Globo, uma Carta Capital, um Nexo, uma Ponte Jornalismo de sites que não contam com assinatura, redação, fotos de colunistas, enfim.

O primeiro grupo, independente do que acha deles, dá a cara a tapa para bater. Podem ser processados diante de informações equivocadas por um motivo: as pessoas existem e podem ser encontradas. O segundo grupo, vive no submundo, buscando gente que torce para ser enganada, sendo armas de certas organizações e políticos. Usam nomes que parecem de veículos antigos, mas dificilmente conseguem ser rastreados por um oficial de Justiça, com uma liminar de direito de resposta.

A tristeza é ver pessoas sérias, de um campo ideológico ou de outro, neste momento de extrema emoção, compartilhando esses sites e páginas abastecidas com notícias distorcidas.

Como há, pelo menos, duas bolhas defendendo que houve conspiração, está acontecendo um fato interessante: conteúdo produzido por esses sites e páginas para abastecer uma bolha, está sendo compartilhado pela outra.

Daí, sites que normalmente são criticados por um grupo como chorume estão sendo difundidos por pessoas desse grupo com comentários como ”Veja o link! Ele traz provas que comprovam que não foi acidente” ou ”Veja! Pelo menos isso dá o que pensar, não?”. Quando abrimos, vemos conteúdo não checado, com inferências vazias, apurações mal feitas, maquinações que não passam pelo crivo lógico ou um monte de wishful thinking.

Espero que o caso seja investigado de forma transparente e rápida, como já disse. E que imprensa e investigadores não se deixem levar pelo esgoto que está circulando loucamente.

A ideia de pós-verdade, quando a emoção ao transmitir um fato é mais importante para gerar credibilidade em torno dele do que provas de sua veracidade em si, nunca pareceu tão pertinente.

Não que uma conspiração não seja possível, claro que é. Mas temos que esperar para dizer isso.

O problema é que há tanta gente que já se decidiu por essa opção que elas só aceitarão uma investigação que levar a resultados que vão ao encontro de sua opinião. Ou seja, que foi A ou B que mandou matar.

Caso contrário, se apontar falha humana ou mecânica, chuva, vento ou sabotagem envolvendo outras pessoas (como J.Pinto Fernandes que, como lembra Carlos Drummond de Andrade, estava na quadrilha, mas não havia entrado na história), perderá um pouco mais de fé em nossas já desacreditadas instituições, rangendo os dentes para o caso por toda a vida.