Archive for dezembro \28\-03:00 2015

A ignorância é uma benção

artigo de Daniel Clemente

opiniao

[EcoDebate] O sistema político democrático é espantoso, causa direta de tristezas individuais e coletivas. Atuando como se fosse um espelho, nos revela quem nós somos, e para negar essa realidade que tanto nos assombra se faz necessário condená-lo. A democracia brasileira golpeada pela história percorreu caminhos tortuosos para chegar onde está momentaneamente, revelando piratas disfarçados de políticos que saquearam todo o ouro nacional sem a necessidade de desenterrá-lo. Os usurpadores dos recursos públicos agora sendo denunciados mostram através das macroeconomias a face do brasileiro nas micro-relações diárias.

Por exemplo, quando se faz um “gato” na transmissão televisiva a cabo, ao adquirir atestado médico com o propósito de “matar” do dia de trabalho, apresentando “comprovante de miséria” para ser contemplado com programas assistencialistas governamentais, elabora a “cola” na prova obtendo nota sem mérito, desvia recursos hídricos, sonega impostos, suborna o policial rodoviário por conta da habilitação vencida, oferece “adicional” ao médico para ter preferência no atendimento público. Enfim, o político atual nada mais é do que o reflexo da população que o elegeu.

Mas para não assumir a culpabilidade de todo o caos, possível de ser observado somente em sistemas democráticos, muitos preferem as máscaras de um passado nostálgico, que não existiu em sua perfeição, sendo resgatado por indivíduos que optam pela amnésia de seu próprio ser, e proclamam como a salvação de todas as impurezas a volta dos militares ao poder. Nada melhor do que a anulação da liberdade para não ter que decidir e assumir erros e acertos de futuras decisões, a escravidão oferece suas vantagens, o indivíduo deixa de ser o responsável por sua atuação, sendo conduzido como uma marionete, bastando obedecer às ordens impostas, e aceitar tudo o que lhe é oferecido. O estrangulamento da imprensa complementará o desfecho suicida, os corruptos não mais existirão, pois não serão denunciados, verbas públicas não mais serão desviadas pois não haverá investigação, todos os servidores públicos serão honestos pois não será revelada as suas desonestidades.

O cantor John Lennon dizia que “a ignorância é uma espécie de bênção, se você não sabe, não existe dor”. E nas diversas manifestações que se propagam pelo território brasileiro, alguns grupos clamam por essa benção, pedem a volta dos militares, não querem se reconhecer no espelho da democracia e ver que os políticos eleitos muito se parecem com o próprio povo, e que para eliminá-los da vida pública seria necessário uma mudança de postura, originando incômodo individual, desmontando pequenos palanques, onde o ator que denuncia o drama é o mesmo que propaga a comédia.

O grito pela volta dos militares ao poder federal é desferido por aquele que concorda com a modalidade de politico “rouba mas faz”, a sua imagem e semelhança. Vê na pena de morte a justiça absoluta, pois seus crimes não serão condenados a pena capital. Contrário a ascensão econômica das classes baixas por meio do assistencialismo estatal, sendo que a desigualdade o mantém em sua posição privilegiada.

A história da marcha das botas ao poder é narrada de forma heroica, desprendida do contexto politico mundial de sua época. Natural em um país que ignora seu próprio povo negligenciando educação. Se você acha que educação é cara, experimente a ignorância.

Daniel Clemente
Professor de História e Sociologia
Colégio Adventista de Santos
Pós Graduando em História, Sociedade e Cultura PUC-SP

in EcoDebate, 18/12/2015

O que se esconde atrás do ódio ao PT?

Certos grupos prolongam as velhas elites que da Colônia até hoje continuaram antinacionais, reacionárias e achando que o povo não têm direitos.

Há um fato espantoso mas analiticamente explicável: o aumento do ódio e da raiva contra o PT. Esse fato vem revelar o outro lado da “cordialidade” do brasileiro, proposta por Sérgio Buarque de Holanda: do mesmo coração que nasce a acolhida calorosa, vem também a rejeição mais violenta. Ambas são “cordiais”: as duas caras passionais do brasileiro.
Esse ódio é induzido pela midia conservadora e por aqueles que na eleição não respeitaram rito democrático: ou se ganha ou se perde. Quem perde reconhece elegantemene a derrota e quem ganha mostra magnanimidade face ao derrotado. Mas não foi esse comportamento civilizado que triunfou. Ao contrário: os derrotados procuram por todos os modos deslegitimar a vitória e garantir uma reviravolta política que atenda a seu projeto, rejeitado pela maioria dos eleitores.
Para entender, nada melhor que visitar o notório historiador, José Honório Rodrigues que em seu clássico Conciliação e Reforma no BrasilI (1965) diz com palavras que parecem atuais:
”Os liberais no império, derrotados nas urnas e afastados do poder, foram se tornando além de indignados, intolerantes; construíram uma concepção conspiratória da história que considerava indispensável a intervenção do ódio, da intriga, da impiedade, do ressentimento, da intolerância, da intransigência, da indignação para o sucesso inesperado e imprevisto de suas forças minoritárias” (p. 11).
Esses grupos prolongam as velhas elites que da Colônia até hoje nunca mudaram seu ethos. Nas palavras do referido autor: “a maioria foi sempre alienada, antinacional e não contemporânea; nunca se reconciliou com o povo; negou seus direitos, arrasou suas vidas e logo que o viu crescer lhe negou, pouco a pouco, a aprovação, conspirou para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que continua achando que lhe pertence”(p.14 e 15). Hoje as elites econômicas abominam o povo. Só o aceitam fantasiado no carnaval.
Lamentavelmente, não lhes passa pela cabeça que “as maiores construções são fruto popular: a mestiçagem racial, que criava um tipo adaptado ao país; a mestiçavel cultural que criava uma síntese nova; a tolerância racial que evitou o descaminho dos caminhos; a tolerância religiosa que impossibiltou ou dificultou as perseguições da Inquisição; a expansão territorial, obra de mamelucos, pois o próprio Domingos Jorge Velho, devassador e incorporador do Piaui, não falava português; a integração psico-social pelo desrespeito aos preconceitos e pela criação do sentimento de solidariedade nacional; a integridade territorial; a unidade de língua e finalmente a opulência e a riqueza do Brasil que são fruto do trabalho do povo. E o que fez a liderança colonial (e posterior)? Não deu ao povo sequer os beneficios da saúde e da educação”(p. 31-32).
A que vêm estas citações? Elas reforçam um fato histórico inegável: com o PT, esses que eram considerados carvão no processo produtivo (Darcy Ribeiro), o rebutalho social, conseguiram, numa penosa trajetória, se organizar como poder social que se transformou em poder político no PT e conquistar o Estado com seus aparelhos. Apearam do poder as classes dominantes; não ocorreu simplesmente uma alternância  de poder mas uma troca de classe social, base para um outro tipo de política. Tal saga equivale a uma autêntica revolução social.
Isso é intolerável pelas classes poderosas que se acostumaram a fazer do Estado o seu lugar natural e de se apropiar privadamente dos bens públicos pelo famoso patrimonialismo, denunciado por Raymundo Faoro.
Por todos os modos e artimanhas querem ainda hoje voltar a ocupar esse lugar que julgam de direito seu. Seguramente, começam a dar-se conta de que, talvez, nunca mais terão condições históricas de refazer seu projeto de dominação/conciliação. Outro tipo de história política dará, finalmente, um destino diferente ao Brasil.
Para eles, o caminho das urnas se tornou inseguro pelo nível crítico alcançado por amplos estratos do povo que rejeitou seu projeto político de alinhamento neoliberal ao processo de globalização, como sócios dependentes e agregados. O caminho militar será hoje impossível dado o quadro mundial mudado. Cogitam com a esdrúxula possibilidade da judicialização da política, contando com aliados na Corte Suprema que nutrem semelhante ódio ao PT e sentem o mesmo desdém pelo povo.
Através deste expediente, poderiam lograr um impeachment da primeira mandatária da nação. É um caminho conflituoso pois a articulação nacional dos movimentos sociais tornaria arriscado este intento e talvez até inviabilizável.
O ódio contra o PT é menos contra PT do que contra o povo pobre que por causa do PT e de suas políticas sociais de inclusão, foi tirado do inferno da pobreza e da fome e está ocupando os lugares antes reservados às elites abastadas. Estas pensam em apenas fazer caridade, doar coisas, mas nunca fazer justiça social.
Antecipo-me aos críticos e aos moralistas: mas o PT não se corrompeu? Veja o mensalão? Veja a Petrobrás? Não defendo corruptos. Reconheço, lamento e rejeito os malfeitos cometidos por um punhado de dirigentes. Traíram mais de um milhão de filiados e principalmente botaram a perder os ideais de ética e de transparência. Mas nas bases e nos municípios – posso testemunhá-lo – vive-se um outro modo de fazer política, com participação popular, mostrando que um sonho tão generoso não se mata assim tão facilmente: o de um Brasil menos malvado. As classes dirigentes, por 500 anos, no dizer rude de Capistrano de Abreu, “castraram e recastraram, caparam e recaparam” o povo brasileiro. Há maior corrupção histórica do que esta?

Endereçada ao jornal Folha de S. Paulo em desagravo aos professores Leda Paulani e Luiz G. Belluzzo.

Ao jornal Folha de S. Paulo
São Paulo, SP

 

Nós, abaixo assinados, vimos a público protestar veementemente contra a vileza de Alexandre Schwartsman (“O Porco e o Cordeiro”, Folha de S. Paulo, 16/12/2015), que atinge de forma acintosa a professora Leda Paulani e o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, com quem o colunista mantém divergências públicas no campo das ideias, aludidos covarde e indiretamente como “Leitoa” e “Porco”.

A agressão é duplamente vil, porque, cifrada, só pode ser compreendida pelas pessoas que tenham conhecimento de outras ofensas, igualmente violentas, perpetradas pelo mesmo colunista aos dois professores.

A falta de decência também se manifesta no chamar de “jumentinho italiano” e de “Dona Anta” duas autoridades legítimas de governo eleito e democrático.

Em geral, tal tipo de vilania merece ser desconsiderado, pois visa sempre a estampar manchetes, às quais não logra o agressor chegar por mérito, talento ou conhecimento. Mas há limites até para a sordidez!

Repudiamos o desrespeito no plano pessoal, a intolerância inadmissível no plano da disputa política democrática e a violação de todas as regras elementares do debate plural e civilizado de ideias.
Repudiamos também a conivência da Folha de S.Paulo e do respectivo editor na prática de tamanha torpeza, transgredindo o código de ética que o próprio jornal afirma seguir.

Assinaturas:

 

  1. Ademir Aparecido Paschoa, produtor.
  2. Adriana Nunes Ferreira, economista.
  3. Adriano Biava, economista.
  4. Airton Paschoa, escritor.
  5. Alcides Goularti Filho, Unesc.
  6. Alcides Silva de Miranda, Professor Associado – Cursos de Graduação, Pós-graduação e Laboratório de Apoio Integrado em Saúde Coletiva – UFRGS.
  7. Amilton Jose Moretto, economista
  8. Ana Mesquita, economista.
  9. Ana Rosa Ribeiro de Mendonça, professora do IE/Unicamp.
  10. Ana Tereza da Silva Pereira Camargo, médica, Diretora Administrativa do CEBES.
  11. Anderson Henrique dos Santos Araújo, professor, Universidade Federal de Alagoas.
  12. Andre Lázaro, professor da UERJ e pesquisador da Flacso-Brasil.
  13. André Martins Biancarelli, professor e diretor associado do Instituto de Economia (IE/Unicamp).
  14. André Paulani Paschoa, Advogado.
  15. Andrés Vivas Frontana, economista, professor de Economia da ESPM e da Fecap.
  16. Anivaldo Padilha, presidente do Fórum 21.
  17. Antônio do Amaral Rocha, jornalista e editor, São Paulo.
  18. Antonio Prado, economista.
  19. Antonio Tadeu Oliveira, demógrafo.
  20. Barbara Fritz, director of the Institute for Latin American Studies (Freie Universität Berlin).
  21. Bruno de Conti, economista.
  22. Camila Gripp, pesquisadora, The New School for Social Research.
  23. Carlos Alonso B. de Oliveira, economista.
  24. Carlos Eduardo Silveira, economista.
  25. Carlos Salas, economista.
  26. Ceci Vieira Jurua, economista.
  27. Celso Amorim, diplomata.
  28. Christy Ganzert Pato, professor da Universidade Federal da Fronteira Sul.
  29. Cilaine Alves Cunha, professora de literatura brasileira (FFLCH/USP).
  30. Claudio Castelo Branco Puty, professor UFPA e secretário executivo do Ministério do Trabalho e Previdência.
  31. Cornelis Johannes van Stralen, psicologo social e cientista político, professor aposentado da UFMG.
  32. Dainis Karepovs, historiador.
  33. Daniel Brazil, roteirista e diretor de TV.
  34. Daniela Magalhães Prates, economista, professora associada do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do CNPq.
  35. Danilo Araujo Fernandes, professor da Universidade Federal do Pará.
  36. Denis Maracci Gimenez, professor do Instituto de Economia da Unicamp.
  37. Domingos Leite Lima Filho, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
  38. Eduardo Fagnani, economista (IE/Unicamp).
  39. Eleutério F. S. Prado, professor titular da USP.
  40. Eli Iola Gurgel Andrade, professora associada da Faculdade de Medicina da UFMG.
  41. Elias Jabbour, professor adjunto da FCE-UERJ.
  42. Elizabeth Harkot de La Taille, professora associada, Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, Departamento de Letras Modernas (FFLCH/USP).
  43. Elizete Mitestaines, jornalista.
  44. Emilio Chernavsky, doutor em Economia (FEA/USP).
  45. Erminia Maricato, professora titular aposentada da USP.
  46. Fabrício de Oliveira, economista.
  47. Fernando Caldas, historiador, mestre pela USP.
  48. Fernando Ferrari Filho, professor de Economia da UFRGS.
  49. Fernando Nogueira da Costa, professor titular do IE-UNICAMP.
  50. Fernando Rugitsky, professor da FEA/USP.
  51. Francisco Alambert, professor de História (FFFLCH/USP). istóriaHist´roia
  52. Francisco Luiz C. Lopreato, economista e professor do IE/Unicamp.
  53. Francisco Menezes, economista.
  54. Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti, professor.
  55. Frederico Gonzaga Jayme Jr., professor Economics Department, Cedeplar (UFMG).
  56. Frederico Mazzucchelli, economista.
  57. Gaudencio Frigotto, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  58. Gema Martins, advogada.
  59. Giorgio de Marchis, Università degli Studi Roma Tre, Dipartimento di Lingue, Letterature e Culture Straniere.
  60. Guilherme Leite Gonçalves, professor de Sociologia do Direito da UERJ.
  61. Guilherme Mello, economista.
  62. Heloísa Fernandes, socióloga, USP.
  63. Iná Camargo Costa, professora aposentada da USP.
  64. Isabel Frontana, historiadora, mestre pela USP.
  65. Isabel Loureiro, professora de Filosofia (UNESP).
  66. Isabela Soares Santos, cientista social.
  67. João Policarpo R. Lima, Departamento de Economia da UFPE/Pesquisador do CNPq
  68. João Sayad, economista, professor da FEA/USP.
  69. João Whitaker, professor livre-docente (FAU/USP) e secretário municipal de Habitação de São Paulo.
  70. José Carlos Braga, economista.
  71. Jose Dari Krein, economista.
  72. José Esteban Castro, Newcastle University, Reino Unido.
  73. Juan Pablo Painceira, economista, Banco Central do Brasil.
  74. Julia Braga, professora associada da Faculdade de Economia da UFF.
  75. Jurema Alves Pereira, assistente social, doutoranda (UERJ).
  76. Laura Carvalho, professora da FEA/USP.
  77. Laura Tavares, economista.
  78. Lauro Mattei, professor de Economia da UFSC.
  79. Lena Lavinas, professora titular do Instituto de Economia da UFRJ.
  80. Lenina Pomeranz, professor da FEA/USP.
  81. Léo Heller, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.
  82. Leonardo Boff, teólogo, professor emérito de ética da UERJ e membro da Iniciativa Internacional Carta da Terra.
  83. Ligia Giovanella, médica, pesquisadora Fiocruz.
  84. Luciana Vieira, economista.
  85. Luiz Eduardo de Vasconcelos Moreira, psicanalista.
  86. Luiz Eduardo Simões de Souza, Universidade Federal do Maranhão – PPGDSE.
  87. Luiz Fernando de Paula, economista (UERJ).
  88. Luiz Filgueiras, professor de Economia da UFBA.
  89. Magda Biavaschi, desembargadora aposentada e pesquisadora CESIT
  90. Manuela Lavinas Picq, Universidade San Francisco de Quito.
  91. Marcelo de Carvalho, docente do Curso de Ciências Econômicas (Unifesp).
  92. Marcelo Miterhof, economista.
  93. Marcelo Weishaupt Proni, economista.
  94. Márcio Lupatini, professor da UFVJM.
  95. Marcio Pochmann, economista.
  96. Marcio Sotelo Felippe, advogado.
  97. Maria Augusta Bernardes Fonseca, professora universitária.
  98. Maria Ciavatta, PPG-Educação Universidade Federal Fluminense.
  99. Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, professora do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.
  100. Maria Elisa Cevasco, professora (FFLCH/USP).
  101. Maria Noemi de Araujo, psicanalista.
  102. Maria Rita Kehl, psicanalista.
  103. Marildo Menegat, professor (UFRJ).
  104. Marina Macambyra, bibliotecária.
  105. Mário da Costa Campos Neto, professor titular em Geologia Estrutural e Geotectônica do Instituto de Geociências (USP).
  106. Maryse Farhi, economista.
  107. Maurílio Maldonado, advogado.
  108. Miguel Bruno, economista.
  109. Nazareno Affonso- Urbanista e artista Plástico
  110. Nelson Fernando de Freitas Pereira, médico.
  111. Niemeyer Almeida Filho, professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política.
  112. Paula Motagner, economista.
  113. Paulo Daniel e Silva, economista.
  114. Paulo Sérgio Fracalanza, diretor do IE/Unicamp.
  115. Paulo Henrique Furtado de Araujo, economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).
  116. Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.
  117. Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor associado (livre-docente) do Instituto de Economia/Unicamp.
  118. Pedro Rafael Lapa, economista.
  119. Pedro Rossi, economista.
  120. Pierre Salama, Professor emeritus, economia, Universidade de Paris XIII
  121. Potyara Pereira, professora da Universidade de Brasília.
  122. Ramón García Fernández, professor (UFABC).
  123. Raquel Raichelis, assistente social, professora da PUC/SP.
  124. Remi Castioni, Faculdade de Educação (UnB).
  125. Rennan Martins, jornalista e editor do Blog dos Desenvolvimentistas.
  126. Ricardo Antônio de Souza Karam, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED/UFRJ).
  127. Ricardo Musse, professor de Sociologia (FFLCF/USP).
  128. Ricardo Oliveira Lacerda de Melo, professor associado da Universidade Federal de Sergipe/ Departamento de Economia.
  129. Roberto Schwarz, professor de Literatura, Unicamp.
  130. Rodrigo Pimentel Ferreira Leão, mestre em Desenvolvimento Econômico.
  131. Ronaldo Coutinho Garcia, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
  132. Rosana Icassatti Corazza, economista, doutora em Política Científica e Tecnológica e professora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas.
  133. Rosangela Ballini, Professora – IE/Unicamp
  134. Rubem Murilo Leão Rego, professor (Unicamp).
  135. Rubens Luis Ribeiro Machado Jr., professor da ECA/USP.
  136. Rubens Sawaya, economista.
  137. Salete de Almeida Cara, professora (FFLCH-USP).
  138. Sandra Regina Alouche, professora universitária.
  139. Sebastiao Velasco, IFCH/Unicamp.
  140. Sérgio Alcides Pereira do Amaral, professor da Faculdade de Letras da UFMG.
  141. Sérgio Rosa, bancário.
  142. Silvio Antônio Ferraz Cario, economista e professor da UFSC (Campus Florianópolis).
  143. Simone Deos, economista.
  144. Solange Puntel Mostafa, professora da USP.
  145. Tania Bacelar de Araujo, doutora em economia e professora aposentada da UFPE.
  146. Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul.
  147. Tiago Oliveira, economista, mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.
  148. Vanessa Petrelli Corrêa, professora titular, IE/UFU.
  149. Wagner Nabuco, editor da Caros Amigos.
  150. Waldir Quadros, professor.
  151. Walquiria Domingues Leão Rego, professora universitária, Unicamp.
  152. Walter Belik, economista.
  153. Wilson Cano, economista.
  154. Wladimir Pomar, economista.

Em busca de alternativas para o déficit habitacional brasileiro

diplomatique.org.br

 Mariana Dias Simpson:

É possível alcançar escala e respeitar processos de construção de moradias? Na Tailândia, país com 67 milhões de habitantes no Sudeste Asiático, métodos avançados de autoconstrução de moradias vêm conseguindo alcançar uma escala que muitos acreditam ser possível apenas por grandes empreiteiras.

O programa Baan Mankong (Habitação Segura), do governo federal, pretende ser “um processo de desenvolvimento de habitação impulsionado pela comunidade, onde o morador é o principal ator, o principal responsável pela solução de problemas e o principal mecanismo de construção” (Codi, 2011a). A iniciativa canaliza fundos do governo sob a forma de subsídios para infraestrutura e crédito para a construção de unidades habitacionais, repassados diretamente para as comunidades de baixa renda organizadas em cooperativas. Todas as comunidades estão articuladas em redes e mantêm contato entre si por meio de reuniões e visitas de intercâmbio.

Empoderamento

O Baan Mankong baseia-se na capacidade de as pessoas gerirem suas necessidades coletivamente e no que as comunidades informais já desenvolveram (Boonyabancha, 2005). Com o apoio do governo e de uma forte rede comunitária de caráter nacional, as famílias controlam os recursos, contribuem com parte da verba, negociam soluções, planejam e gerenciam a construção de infraestrutura e de suas casas. Trata-se de um método bem-sucedido e avançado de “autoconstrução”.1 O Baan Mankong promove “muito mais do que melhorias físicas”, ele estimula mudanças profundas na estrutura social e nas relações dos moradores de favelas com autoridades e outros atores da cidade (Boonyabancha, 2005).

O programa é executado pelo Instituto de Desenvolvimento de Organizações Comunitárias (Codi, na sigla em inglês), que iniciou sua atuação com um aporte inicial de US$ 85 milhões. Entre 2003 e 2008, o instituto investiu US$ 65 milhões em subsídios para infraestrutura e outros US$ 66 milhões em empréstimos de fundos rotativos para compra de terra e construção de habitação (UN-Habitat, 2009). Esse valor foi suficiente para financiar 858 projetos em 1.546 comunidades de 277 cidades, nas 76 províncias da Tailândia, construindo um total de 90.813 unidades habitacionais (Codi, 2011b). Ou seja, é um investimento público de US$ 1.440 por família.

Por funcionar como um facilitador, e não como um órgão de entrega de unidades habitacionais prontas, como no caso do Minha Casa Minha Vida, o programa é capaz de lidar com a complexidade e a variabilidade das necessidades habitacionais de cada família e localidade. “O projeto é definido pelas pessoas, não por arquitetos que nunca viveram no local. E se há moradoras, mulheres, envolvidas na definição do projeto, é porque estamos fazendo direito” (Boonyabancha, 2005, p.26).

O Codi fornece suporte técnico por meio de “arquitetos comunitários”, que apresentam soluções variadas de design e infraestrutura para que as famílias decidam coletivamente o que melhor atende a suas necessidades e recursos. Por exemplo, uma família com idosos construirá uma casa com apenas um pavimento, enquanto uma numerosa fará mais quartos e uma que possui um negócio em casa pode optar por transformar seu primeiro pavimento em uma loja ou uma pequena empresa.

Para Somsook Boonyabancha (2005, p.27), diretora do Codi por dez anos e agora diretora da Aliança Asiática pelo Direito à Moradia,2 a principal mudança de paradigma do Baan Mankong está no fato de o programa ser ativamente demandado pelas comunidades, em vez de ofertado pelo governo. Ainda que as iniciativas brasileiras também respondam a anos de luta e reivindicações, a diferença entre os dois casos é tangível e pragmática.

No Rio de Janeiro, projetos e localidades para a construção de moradia ou para urbanização de favelas são escolhidos “de cima para baixo”. Quase sempre moradores de favelas são apenas informados pela imprensa de que tiveram a “sorte” de ser incluídos no próximo programa governamental.

Presenciei em diversas ocasiões lideranças comunitárias especulando sobre as razões pelas quais suas comunidades eram objeto do PAC/Favelas. Um exemplo recente foi o Morar Carioca, programa que nem chegou a sair do papel. As comunidades seriam priorizadas “por ordem de aparição”: as que mais impactariam a realização das Olimpíadas de 2016 seriam urbanizadas primeiro. Ou seja, as decisões vêm “de cima” e estão desconectadas das demandas das pessoas que vivem “em baixo”. Da concepção à construção, a participação real dos moradores (no Brasil tecnicamente chamados de “beneficiários”) é praticamente inexistente.

Na Tailândia, as comunidades precisam se inscrever (“aplicar”) no programa Baan Mankong coletivamente e comprovar que estão suficientemente organizadas para conduzir as intervenções, negociadas diretamente com a comunidade. Tal comprovação é feita por meio da realização de poupanças coletivas, descritas a seguir.

Com esse mecanismo, os moradores sentem que são os principais agentes de mudança, o que reforça laços comunitários, o sentimento de pertencimento e de propriedade. Embora a exigência de “organização comunitária” possa excluir muitas comunidades, seu cumprimento é estratégico para o sucesso do programa. E é importante notar que não é necessário que todo o assentamento se mobilize: o programa pode ser colocado em prática apenas entre algumas dezenas de vizinhos, inspirando os demais a fazer o mesmo. Ainda assim, o projeto precisa incluir todos os moradores envolvidos – os mais pobres e os menos pobres, proprietários e inquilinos. No caso de reconstrução total (demolição da casa preexistente e construção de nova unidade) ou realocação para um terreno próximo, a terra em geral é dividida igualmente entre as famílias participantes.

A habitação, antes informal, torna-se formal, porém, na maioria dos casos, sua propriedade é coletiva por dez anos – tempo em que o programa considera que as famílias estão mais “vulneráveis”, por terem de pagar o empréstimo e por desejarem investir em acabamentos e mobiliário novo. Boonyabancha (2005) afirma que essas condições não são “sentimentalistas”, mas estratégias criadas para responder a questões surgidas ao longo da aplicação do programa.

Poupança coletiva

Na Tailândia, o Codi investe entre US$ 750 e US$ 1.625 por família em subsídios para a instalação de infraestrutura (água e esgoto, iluminação pública, espaços públicos e/ou o que mais as comunidades considerarem necessário), além de 5% do valor total para subsidiar custos administrativos da cooperativa e sua participação em redes. Para a construção ou melhorias habitacionais individuais, as famílias organizadas têm acesso a crédito subsidiado e apoio técnico para a produção de habitação.

Tal como quando se opera com um banco, as comunidades organizadas são obrigadas a fazer um depósito de 10% do valor total da obra para garantir seu empréstimo. Os empréstimos são concedidos às cooperativas (corpo jurídico da comunidade), com uma taxa de juros de 4% ao ano – muito menor do que as taxas de mercado, mas alta o suficiente para garantir a sustentabilidade a longo prazo dos fundos rotativos do Codi. As cooperativas, por sua vez, fazem empréstimos individuais às famílias a uma taxa de juros que varia entre 5% e 7% ao ano, também com o objetivo de deixar uma margem para garantir a sustentabilidade financeira e organizacional da própria cooperativa.3 É importante notar que os empréstimos concedidos pelo governo são para o coletivo (a cooperativa), e não para indivíduos.

Um ditado comum no Codi é “sem poupança, sem casa”. Mas como as comunidades podem pagar depósitos? Os moradores fazem isso por meio da criação de “grupos de poupança”, uma prática rara na América Latina, mas comum no Sudeste Asiático e em partes da África. As comunidades pobres da Ásia têm longa tradição em criar poupanças comunitárias para investir em melhorias coletivas e para a cessão de empréstimos individuais a juros baixos, visando ao bem-estar social dos moradores.

Para Boonyabancha (2005), a administração das finanças pelas próprias comunidades quebra um paradigma comum a projetos sociais: “Alguém de fora sempre segura a carteira, enquanto as pessoas (por não terem tido a oportunidade de aprender a lidar com finanças) ficam com a mão estendida. A poupança faz a comunidade crescer. É a diferença entre fazerem para você e fazer por você mesmo. Se uma comunidade não sabe administrar recursos, estará para sempre condenada a ter seu processo de desenvolvimento determinado por terceiros”.

O Codi (2011b) estima que existam cerca de 50 mil grupos de poupança na Tailândia, somando mais de US$ 760 milhões. De fato, há comunidades que optam por participar do Baan Mankong sem pegar empréstimo, usando recursos próprios, utilizando apenas o apoio técnico do instituto e o subsídio para infraestrutura coletiva. “Mecanismos de poupança e crédito não são apenas para juntar dinheiro, são para juntar pessoas” (Burra, 2000).

Líderes comunitários concordam que a poupança não é um problema. Antes mesmo de o programa ser iniciado na comunidade, cada família já tendia a economizar entre US$ 4 e US$ 17 por mês. Quando a obra é concluída e as famílias precisam começar a pagar pelo empréstimo tomado junto à cooperativa, o valor geralmente aumenta para entre US$ 25 e US$ 50 por mês, dependendo do valor que cada família optou por tomar. Os níveis de inadimplência são baixíssimos.

Segundo um líder da comunidade Bang Pua, a obrigação de pagar o empréstimo tende a empurrar as pessoas para o mercado de trabalho: “Antes do Baan Mankong, era a mesma coisa em todas as casas. Uma pessoa trabalhava, seis ou sete estavam desempregadas. Com o projeto de desenvolvimento e a necessidade de pagar o empréstimo, as pessoas se sentiram estimuladas a conseguir um emprego, e um ajudou o outro a encontrar trabalho. As pessoas se tornaram mais ativas e muitas também aprenderam uma profissão durante as obras” (entrevista de campo, maio de 2011).

Autossuficiência e direitos

Há um mundo de semelhanças e também de diferenças entre os assentamentos informais e a maneira como a questão é tratada no Rio de Janeiro e em Bangcoc. Comunidades tailandesas contam com um nível de mobilização que as brasileiras deixaram de ter, em razão dos anos de controle político e violento que fragmentaram esses territórios. Ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro conta com um nível de políticas públicas e de planejamento urbano para essas áreas que não existe em Bangcoc. E, claro, existem diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas.

Talvez a diferença cultural mais óbvia entre os dois casos seja que os movimentos sociais tailandeses buscam a autossuficiência, refletindo a cultura de um país onde “é esperado que as pessoas cuidem de si mesmas” (Kitti, 2011). No Brasil, as organizações seguem a abordagem dos direitos, o que também reflete a história e a cultura locais. Nosso Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, com a defesa do “direito à cidade” e, entre outros pontos, “o direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos”, é admirado em todo o mundo. A estratégia escolhida para a batalha por aqui não é a do “faça você mesmo”, mas a exigência do cumprimento de direitos.

Um exemplo concreto de diferença entre as duas abordagens está em debates sobre padrões construtivos: em Bangcoc, lideranças fazem lobby por regulamentos mais flexíveis para a legalização de imóveis, argumentando que as normas não são para os pobres; no Brasil, como unidades habitacionais subsidiadas são entregues prontas pelo governo, os padrões mínimos são vistos como conquistas, e a luta é para melhorá-los e certificar-se de que o Estado os cumpra.

Turner (1988) observou que as pessoas tendem a aceitar padrões inferiores e problemas construtivos quando elas têm o senso de propriedade, quando as condições de moradia são um reflexo de seu próprio suor. Isso provavelmente está refletido na rápida degradação dos conjuntos habitacionais brasileiros, nos quais, além do péssimo padrão construtivo, famílias tendem a não tomar para si a responsabilidade pela manutenção, principalmente de espaços coletivos, uma vez que não necessariamente reconhecem o “problema” como seu, pois não participaram das decisões ou da construção das unidades habitacionais, tampouco tiveram a oportunidade de construir um senso de comunidade ao longo do processo.

Levando a meta de autossuficiência adiante, a União Nacional de Organizações de Comunidades de Baixa Renda (Nulico) começou a recolher US$ 7 por família por ano com o objetivo de reduzir sua dependência de fundos do governo. Esse “Fundo de Desenvolvimento Urbano” cresceu com os anos e é hoje uma realidade que se espalha pela Ásia, já sendo capaz de financiar, independentemente, diversos projetos nos moldes do Baan Mankong.

Por outro lado, a crença de que as comunidades são capazes de resolver seus problemas por conta própria pode criar ilusões sobre o que é possível ser feito sem intervenção governamental, reforma ou ruptura, protegendo o status quo quando é este que precisa ser mudado (Marcuse, 1992).

O desafio da escala

Alcançar escala é um desafio frequentemente enfrentado por iniciativas de desenvolvimento em todo o mundo. O Codi acredita que ele pode ser vencido ao permitir que “as pessoas se tornem a escala da solução” (Boonyabancha, 2011), uma vez que o Baan Mankong atua apenas como um facilitador do desenvolvimento e trabalha com fundos rotativos. Com esse entendimento, desde que comunidades continuem interessadas em participar do programa e pagando seus empréstimos, sua escala é teoricamente ilimitada.

Na prática, porém, o principal fator limitante para o fim do déficit habitacional urbano, tanto no Brasil como na Tailândia, é o acesso à terra urbanizada. No caso do Baan Mankong, a questão se torna visível quando o Codi não pode apoiar comunidades que ocupam terra sob disputa4 – situação recorrente em Bangcoc, que pode comprometer a escala do programa.

Favela é cidade

O ponto fraco do programa asiático é não dar suficiente atenção à integração de suas comunidades com o resto da cidade. As debilidades de projetos de autoconstrução são particularmente evidentes quando se trata do acesso à terra, do planejamento de infraestrutura e da prestação de serviços públicos que são fornecidos apenas no nível municipal, e não no de projeto a projeto (Marcuse, 1992, p.15). Vemos, portanto, que uma abordagem posta em prática somente pela comunidade não é capaz de oferecer uma solução completa. “Autonomia significa autogestão interdependente, não autossuficiência independente” (Turner, 1988, p.15).

No entanto, dadas as políticas urbanas progressistas já colocadas em prática no Rio, como o Favela Bairro, tem-se aqui a compreensão da importância da integração de áreas informais com o resto da cidade. Como resultado de uma história de luta e resistência, nossos movimentos de moradia organizados têm a expertise necessária para tornarem-se os protagonistas de seu desenvolvimento, componente faltante no modelo brasileiro atual. A experiência do Grupo Esperança de Jacarepaguá, realizada no âmbito do Minha Casa Minha Vida Entidades no Rio de Janeiro, é prova disso.

Isso significa romper, de uma vez por todas, com um paradigma que insiste na entrega de unidades habitacionais prontas e insustentáveis. Morar é um verbo (Turner, 1972). Para o pobre urbano, a moradia é ainda um longo processo incremental e pessoal de construção de comunidade.

O “problema” do processo de construção de moradias sustentáveis é que ele contraria poderosas empreiteiras que garantem contratos multimilionários enquanto generosamente patrocinam campanhas políticas. Além disso, “processos” não trazem o benefício político imediato que vem com a entrega de chaves a uma família pobre por uma autoridade em evento público.

No entanto, a crença de que a informalidade pode ser substituída por uma moradia formal entregue pronta pelo Estado é inatingível, cara e ineficiente. É um “enxugamento de gelo” com consequências nefastas para essas famílias e para a cidade como um todo. Morar é um processo que ocorre na cidade e que precisa ser protagonizado pelo morador para ser sustentável.

Mariana Dias Simpson

Mariana Dias Simpson é pesquisadora do Ibase

Ilustração: Mariana Dias Simpson

1              Para a execução das obras, por exemplo, as comunidades organizadas podem optar por realizar mutirões, capacitar e contratar moradores (remunerados), contratar empreiteiras e/ou contratar o trabalho da “Rede de Pedreiros Comunitários”, formada por grande grupo de profissionais oriundos de diversas comunidades e que já passaram pelo programa.

2    A proposta do Baan Mankong se espalhou por vários países da Ásia e, por meio da ONG Coalizão Asiática para Ação Comunitária (Acca), já foram ou estão sendo feitos projetos em 215 cidades de dezenove países, sendo 146 habitacionais de grande porte (beneficiando diretamente mais de 10 mil famílias) e 2.139 de pequeno porte. Foram criados também 136 fundos de desenvolvimento urbano, e 11.339 grupos de poupança estão organizados com mais de 400 mil usuários ativos. A ação, inicialmente independente, está fomentando políticas públicas em diversos países e estimulou a criação de instituições do formato do Codi no Camboja, Nepal e Mongólia.

3    Dados coletados pela autora durante visita de campo em maio de 2011.

4    Mais explicitamente que no Rio, assentamentos informais são considerados invasões ilegais e sujeitos à remoção em Bangcoc. Como um órgão governamental que trabalha com fundos públicos, o Codi não pode interferir nem urbanizar comunidades localizadas em terras sob disputa. Em Bangcoc, embora uma parte da terra ocupada por favelas pertença a proprietários privados, assentamentos informais geralmente ocupam terras pertencentes a outros setores do governo ou à família real, que é filantrópica e tem status de semideus. Como no Rio de Janeiro, cerca de 20% dos 8 milhões de habitantes de Bangcoc vivem em assentamentos informais. Programa do governo tailandês lançado em 2003 é exemplo do que pode ocorrer quando o Estado passa a atuar como facilitador, em vez de provedor de habitação subsidiada, permitindo que moradores de favelas definam e apliquem suas próprias soluções

Referências bibliográficas

BOONYABANCHA, S. “Scaling up slums and squatters settlements upgrading in Thailand” [Regularização de favelas e assentamentos precários avançam na Tailândia]. Environment and Urbanisation, v.17, n.1, abr. 2005, p.21-46.

______. “The Baan Mankong programme”, apresentação para estudantes do DPU/Universidade de Londres no Instituto de Desenvolvimento de Organizações Comunitárias. Bangcoc, Tailândia, 10 maio 2011 (mimeo).

BURRA, S. “A journey towards citizenship: The Byculla Area Resource Centre” [Uma viagem para a cidadania: o centro de recursos da área de Byculla], Mumbai, 2000. Disponível em: .

CODI (Community Organizations Development Institute). “Baan Mankong Collective Housing”, 2011a. Disponível em: .

______. “Live updates”, 2011b. Disponível em: .

KITTI, P. “Housing Finance in Thailand” [Financiamento habitacional na Tailândia], apresentação para estudantes do DPU/Universidade de Londres no Instituto de Desenvolvimento de Organizações Comunitárias. Bangcoc, Tailândia, 11 maio 2011 (mimeo).

MARCUSE, P. “Why conventional self-help projects won’t work” [Por que projetos de autoajuda convencionais não vão funcionar]. In: MATHEY, K. (Ed.). Beyond Self-Help Housing [Além da habitação de autoajuda], Londres, Mansell, 1992.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. “Estatuto das Cidades”, 2001. Disponível em: .

TURNER, J. F. C. Building Community: a Third World Case Book [Comunidade construtora: um livro de caso do Terceiro Mundo]. Bertha Turner, Building Community Books, Londres, 1988.

TURNER, J.; FICHTER, R. (Eds.). Freedom to Build: Dweller Control of the Housing Process[Liberdade para construir: controle popular sobre o processo habitacional]. Nova York, The Macmillan Company, 1972.

UN-HABITAT. “Community development fund in Thailand: a tool for poverty reduction and affordable housing” [Fundo de desenvolvimento comunitário na Tailândia: uma ferramenta para redução da pobreza e aquisição de moradia]. In: The Human Settlements Financing Tools and Best Practices Series[As melhores práticas e as ferramentas financeiras de assentamentos humanos]. Nairóbi, United Nations Human Settlements Programme, 2009.

A Bolívia de olho no mar

diplomatique.org.br

 Cédric Gouverneur:

A aurora desponta em El Alto, subúrbio de La Paz, a 4 mil metros de altitude. No frio matutino, Juan Capiona e Sandro T.1 ligam o motor de seus semirreboques. Como fazem todo mês, eles estão prontos para seguir em direção à costa chilena, uma viagem delicada através do Altiplano, dos Andes e do Deserto do Atacama, da qual voltarão com 45 toneladas de carga cada um. “Seria muito mais simples se não houvesse fronteiras”, suspira Juan, que mais uma vez se prepara para enfrentar filas, controles intermináveis, formalidades administrativas.

Em um artigo recente, no qual se colocou em busca de grandes oximoros,2 o jornalista britânico Edward Luce citou “carvão limpo” e “marinha boliviana”.3 Como a maioria de seus compatriotas, Juan ficaria surpreso ao ler isso: ele sabe que o território que separa seu país do mar nem sempre foi estrangeiro. Quando a Bolívia se tornou independente, em 1825, ela tinha 400 quilômetros de litoral, que foram anexados pelo Chile na Guerra do Pacífico. Desde então, o país é o único do continente completamente sem costa, já que o Paraguai tem acesso ao Atlântico pelo Rio Paraná. De acordo com El libro del mar, documento publicado pela Bolívia em 2014,4 isso atrapalha seu desenvolvimento, principalmente encarecendo as exportações e privando o país dos recursos do território anexado.

Um estudo realizado pelo economista norte-americano Jeffrey Sachs5 concluiu que o crescimento econômico anual de países sem acesso ao mar é 0,7 ponto percentual inferior do que se não o fossem.6 Em todos os continentes, a nação mais pobre é exatamente a que não tem acesso ao mar: Moldávia, Níger, Afeganistão, Nepal e Bolívia. Mas os bolivianos são os únicos que perderam seu litoral após uma guerra.7 Por isso, eles vivem essa situação não como uma fatalidade geográfica, mas como uma injustiça.

Os semirreboques deixam El Alto rumo ao sul. Os caminhões não são dos mais novos: na porta de um, ainda estão o nome e o endereço de uma transportadora finlandesa, vestígio da primeira vida do venerável equipamento. Juan, que tem 27 anos, é caminhoneiro há seis. Ele vai frequentemente ao Chile buscar cargas que às vezes leva até a fronteira do Brasil. Ele acha o oceano “bonito, sem limites”, e lamenta nunca ter tomado um banho de mar ou desfrutado a praia, “por falta de tempo”. Como todos os bolivianos que encontramos, ele sonha “voltar um dia a ver nossa bandeira tremulando sobre alguns quilômetros de costa”.

Assim como seu pai, Lizardo, empresário e presidente da Câmara de Comércio de Pando (departamento no extremo norte da Bolívia), Juan apoia o presidente Evo Morales sobre essa questão que vive à flor da pele. Em 24 de abril de 2013, o presidente abriu um processo no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, exigindo que o Chile “negocie de boa-fé e de maneira efetiva para chegar a um acordo que garanta acesso plenamente soberano ao Oceano Pacífico”. Em relação a esse assunto, Morales – reeleito por ampla margem para um terceiro mandato em outubro de 2014 – é quase uma unanimidade. Sinal de que essa luta transcende as divisões partidárias, o embaixador boliviano itinerante encarregado de defender a causa marítima pelo mundo não é ninguém menos que o ex-presidente conservador Carlos Mesa (2003-2005). A Bolívia aposta na recente reeleição da presidente socialista chilena Michelle Bachelet, com quem começara um diálogo em seu primeiro mandato (2006-2010), para resolver a disputa secular.

Por volta de meio-dia, na saída da cidade mineira de Oruro, os dois caminhões seguem para o oeste. O Altiplano é cada vez mais árido, e no horizonte se desenham os picos nevados da cordilheira. As lhamas pastam entre chullpares, túmulos pré-colombianos visíveis aqui e ali. No fundo de uma ravina, um contêiner amassado confirma o perigo da estrada, nem sempre asfaltada. Foram iniciadas obras com o apoio da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), um programa de modernização em grande parte elaborado pela burguesia de São Paulo para obter acesso à costa do Pacífico.8 Cruzamos com uma longa fila de semirreboques carregados com automóveis tinindo de novos: veículos sul-coreanos e japoneses que cruzaram o oceano em porta-contêineres. Mesmo íngreme e acidentada, a estrada é um eixo vital do comércio mundial.

No fim da tarde, chegamos a Pisiga, povoado boliviano adormecido que marca a fronteira. Juan Capiona e seu parceiro não se esquecem de encher o tanque: no Chile, o combustível custa o dobro (o equivalente a R$ 3,10 o litro). Depois estacionam em frente à barreira já fechada, para estar entre os primeiros a atravessá-la quando a alfândega abrir, às 8 da manhã – ou 9, no horário chileno. Atrás deles, caminhões e ônibus enfileiram-se por centenas de metros. “Isso não é nada”, comenta um deles. “Durante a greve da alfândega chilena [em novembro de 2013], nós éramos milhares de bloqueados durante dias na fronteira.” De acordo com a Câmara de Exportadores (Camex) boliviana, 40% das exportações do país, o equivalente a 1,5 milhão de toneladas por ano, precisam passar pelos portos do vizinho chileno.

Na manhã seguinte, depois de tomar mate, os dois homens levam seus caminhões até o posto de fronteira, onde os veículos serão inspecionados. Com os documentos em mãos, entram na fila que leva aos balcões do serviço de migração. Primeira surpresa: não há fila reservada para profissionais. Os caminhoneiros bolivianos afogam-se em uma multidão de passageiros de ônibus de turismo: famílias chilenas voltando das férias, trabalhadores bolivianos que viajam para o Chile, mochileiros…

Os controles, meticulosos, parecem intermináveis. A Bolívia está entre os principais produtores de cocaína, e todos os dias há “mulas” – passadores de drogas muitas vezes pobres e vulneráveis, manipulados por cartéis – tentando a sorte no posto de fronteira. Acostumados às formalidades, os motoristas padecem pacientemente. Três horas depois, voltam finalmente para seus caminhões. “Às vezes demora mais”, lança Juan, sacando do bolso um pacote de amendoins: “A polícia não viu!”, diz com um sorriso cúmplice. Para evitar a contaminação bacteriana de seu frágil ecossistema, o Chile proíbe que os visitantes entrem com alimentos, mesmo sanduíches. Para os caminhoneiros, a proibição é dolorosa: no Chile, a mais simples refeição custa cinco vezes mais que do outro lado da fronteira.9

Agora os caminhões galgam as estradas íngremes do Deserto do Atacama, antes de descer até o Pacífico: um desnível de mais de 4.300 metros. No meio da tarde, os caminhoneiros param em Alto Hospicio, vila localizada a uns 10 quilômetros de Iquique, onde devem pernoitar todos os caminhoneiros em trânsito. Juan dá de ombros ante a visão do oceano cintilante: ele precisa voltar o mais rápido possível para a Bolívia, onde uma nova carga o aguarda.

No dia seguinte, vamos encontrá-lo na Zona Franca de Iquique (Zofri). Criada em 1975 sob a liderança dos “Chicago boys”,10 ela é a maior da América do Sul – uma verdadeira cidade dentro da cidade, por onde escoam, livres de tarifas aduaneiras, produtos provenientes da Ásia, para grande deleite dos consumidores chilenos, que chegam a vir da capital, Santiago, localizada 1.800 quilômetros ao sul. Estivadores chilenos carregam um dos semirreboques com 88 motos japonesas made in China; o outro, com centenas de caixas de bebida. Com suas cargas arrumadas e lonadas, no dia seguinte ambos subirão para Arica, onde seus caminhões serão pesados. Em seguida atravessarão novamente o Atacama e os Andes, até a Bolívia. De lá, subirão até Cobija, na fronteira com o Brasil, destino final de suas mercadorias.11 Depois, descerão até Santa Cruz de la Sierra, capital econômica da Bolívia, para pegar outra carga, antes de finalmente voltar a La Paz.

“UM CORREDOR ALEMÃO ATRAVESSANDO PARIS?”

Segundo o Banco Mundial, essa ronda infernal explica, em parte, por que as exportações da Bolívia são 55% mais caras que as do Chile. O país andino tem os mais altos custos de transporte na América do Sul: eles ultrapassam a média dos 31%.12 Munidas desses dados, as autoridades bolivianas imputam parte do atraso do país à perda do litoral: “Embora os problemas de desenvolvimento humano, econômico e social da Bolívia não sejam resultado exclusivo de seu isolamento forçado”, analisa El libro del mar, “é evidente que essa situação limita significativamente seu potencial de desenvolvimento”.

Do lado chileno, a história é diferente. Em Iquique, Jorge Soria Quiroga, ex-atleta de 78 anos, é uma figura da política local. Eleito há meio século, preso pela ditadura, o socialista recuperou seu assento com o retorno da democracia, em 1990. Ele perde as estribeiras quando falamos das reivindicações bolivianas: “Você aceitaria que um corredor alemão atravessasse Paris?”, protesta com sua voz de barítono. Uma comparação ousada? Seja como for, ela ilustra a extrema sensibilidade da questão, de um lado a outro do espectro político. “As fronteiras da Europa são resultado das guerras”, diz. “Ninguém imagina os europeus voltando atrás. Até Augusto Pinochet [ditador chileno entre 1973 e 1990] queria uma solução para o conflito: ele propôs a Hugo Banzer [ditador da Bolívia entre 1971 e 1978] um corredor ao norte de Arica. E adivinha? O Peru foi contra, porque não teria mais fronteira com o Chile. Essa é uma prova de que redesenhar fronteiras é impossível!” Desde o fracasso dessas negociações, em 1978, Bolívia e Chile não têm mais relações diplomáticas. Já em 1970 os países discutiam a possibilidade de estabelecer um corredor boliviano. No entanto, o golpe do general Banzer colocou fim às negociações…

No dia 8 de julho, porém, em sua visita à Bolívia, o papa Francisco incentivou os vizinhos ao “diálogo”, aconselhando a “pensar no mar”. O Chile declarou-se pronto a restaurar “imediatamente” e “sem condições” as relações diplomáticas com a Bolívia. Morales, por sua vez, convidou Bachelet a ir com ele ao Vaticano “para chegar a uma solução definitiva, que dê à Bolívia acesso soberano ao Pacífico, tendo como fiador o papa”. Desde então, o presidente boliviano fala do pontífice como um aliado, chegando a mencionar, em entrevista, o “apoio do papa à causa marítima”.13 Não é certo que o Chile veja realmente com bons olhos um papa vindo da rival Argentina…

Historicamente, a área anexada pelo Chile fazia parte da Bolívia. Criada pela coroa espanhola em 1559, a subdivisão administrativa “Real Audiência de Charcas” incluía o atual território boliviano e a costa compreendida entre os rios Loa, ao norte, e Salado, ao sul. Como imaginar que o libertador da América Latina, Simón Bolívar (1783-1830), deixaria sem acesso ao mar o país que, desde a independência, leva seu nome? Nascida peruana, Iquique tornou-se chilena durante a Guerra do Pacífico. Na cidade, diversos locais celebram a batalha ocorrida na enseada em 21 de maio de 1879. Naquele dia, a corveta chilena Esmeralda foi abalroada e afundada pelo couraçado peruano Huascar. No porto, os turistas podem visitar uma réplica da Esmeralda financiada pela empresa Collahuasi, proprietária de uma mina de cobre na região. Perto dali, o museu naval exibe fragmentos da embarcação naufragada, uniformes e maquetes de navios, destacando o aspecto estratégico.

Assim, aprendemos que a corveta chilena, já obsoleta no momento do conflito, não tinha nenhuma chance contra o couraçado peruano, mais rápido e armado. Derrotado com seus marinheiros, o capitão da Esmeralda, Arturo Prat, foi elevado a herói no Chile: há avenidas e praças com seu nome, estátuas representando-o, e sua imagem na cédula de 10 mil pesos. O museu também homenageia o capitão do Huascar, Miguel Grau, expondo a carta de condolências que o oficial peruano enviou à viúva de seu oponente. Porém, seis semanas após a batalha, Iquique caiu nas mãos dos chilenos.

A mesma leitura épica da história pode ser vista nos outros dois portos conquistados pelo Chile, Arica e Antofagasta. Situada próximo à fronteira com o Peru, Arica é dominada por um promontório rochoso que, em 1880, era defendido por um forte, o qual caiu nas mãos das tropas chilenas no dia 7 de junho daquele ano. Ali se encontra hoje um museu gerido pelo Exército, inaugurado em 1975 pelo general Pinochet. Tendo as marchas militares como pano de fundo, o lugar celebra a tomada de Arica e exalta o sentimento patriótico: uma enorme bandeira chilena visível a quilômetros de distância, túmulo do soldado desconhecido, afresco de cobre oferecido ao Exército pela mina vizinha… Mais uma vez, saudamos a coragem do inimigo: em pleno centro da cidade, uma rua leva o nome do coronel Francisco Bolognesi, comandante da guarnição peruana. Exibe-se um orgulhoso nacionalismo: entre as causas da guerra, o museu cita o “impulso expansionista do povo chileno”. Em Antofagasta, outrora porto boliviano, o museu local apresenta o conflito como uma revolta dos pioneiros, majoritariamente chilenos, sobrecarregados pelo Estado boliviano:14 “Um estado de crise que, direta ou indiretamente, contribuiu para a ocupação de Antofagasta pelo Exército chileno em 14 de fevereiro de 1879”, segundo lemos em uma plaquinha explicativa. Nas docas, uma placa – obviamente de cobre – proclama: “Lembrem que este mar é o sangue do Chile”.

“O mar nos pertence. Recuperá-lo é um dever, e não um direito”, responde, do outro lado dos Andes, outra placa de cobre. Todo ano, no dia 23 de março, a Bolívia inteira celebra o Dia do Mar, aniversário da defesa desesperada de Calama, liderada pelo coronel Eduardo Abaroa. A praça com seu nome e sua estátua ficam, não por acaso, sob as janelas do Ministério da Defesa, ele próprio decorado com uma enorme faixa proclamando o compromisso do país com sua reivindicação territorial. Nesse dia, representantes das instituições reúnem-se solenemente ao redor do monumento. “Nunca mais Bolívia sem mar!”, repetiu Morales no dia 23 de março, diante de seu governo reunido, da polícia, do Exército e até da improvável Marinha boliviana, cujos navios nunca provaram o sal – eles patrulham o lago Titicaca, embora acordos permitam que seus marinheiros treinem no mar a bordo de navios peruanos e argentinos. Nas escolas, as crianças cantam o “Hino do mar” durante as aulas de Educação Cívica. Elas aprendem que a “Guerra do Salitre” – nome dado pelos bolivianos ao conflito – foi injusta e que o Chile, cúmplice do imperialismo britânico, atacou de surpresa, no dia seguinte ao Carnaval, para mutilar sua pátria. No lado chileno, os livros didáticos insistem no dever de defender os chilenos de Antofagasta, taxados por um Estado boliviano instável.15

PRIVILÉGIOS INSUFICIENTES

Em março, Evo Morales anunciou que a leitura de El libro del mar16 passaria a ser obrigatória nas escolas. “Desde a infância, ensinam-nos que o Chile roubou nosso mar”, explica Gonzalo Chávez Alvarez, professor de Economia da Universidad Católica de La Paz. “Essa convicção é profundamente enraizada na alma boliviana, especialmente entre as pessoas modestas. Então pouco importa que o Chile conceda esta ou aquela vantagem a nossas empresas em seus portos! O que os bolivianos querem é acesso soberano.” Um corredor descendo pelos Andes até o Pacífico, ou um enclave na costa chilena. Aberração geográfica? Há precedentes: durante a Guerra Fria, três rodovias e três ferrovias atravessavam a Alemanha Oriental para ligar Berlim Ocidental à Alemanha Ocidental. E no Golfo da Guiné, o enclave angolano de Cabinda é separado do resto de Angola, o que permite à República Democrática do Congo (RDC) ter acesso ao mar.

A essa reivindicação de soberania, o Chile respondeu que a Bolívia tem, na prática, acesso ao Pacífico: “Mais de 20% dos países do mundo não têm litoral”, argumenta o Ministério das Relações Exteriores chileno, em Mito y realidad, documento publicado em junho de 2014 em resposta a El libro del mar. “A Bolívia está entre os que gozam de grandes direitos de acesso ao mar. O Tratado de Paz e Amizade de 1904 reconheceu-lhes perpetuamente ‘o mais amplo e livre direito de trânsito comercial através de seu território e portos do Pacífico’. Ela goza de autonomia alfandegária, taxas preferenciais e facilidades de armazenamento. Por meio dessas vantagens, privilégios e direitos em território chileno, dispõe de amplo acesso ao Oceano Pacífico.”17 No porto de Iquique, por exemplo, onde, segundo as autoridades portuárias, “um a cada cinco contêineres é boliviano”, “os custos de armazenamento são 70% mais baixos para produtos bolivianos do que para os outros”, enfatiza um funcionário da Empresa Portuaria Iquique (EPI, paraestatal). O homem mostra-se pouco falante, mas declara-se “irritado com a ingratidão” da Bolívia. Em Antofagasta e Arica, o armazenamento das importações bolivianas é gratuito por um ano, e o das exportações, por dois meses. As mercadorias são controladas por funcionários aduaneiros bolivianos, em seguida descarregadas por trabalhadores portuários com tarifas preferenciais: US$ 0,85 por tonelada, contra US$ 1,98 para as mercadorias de outros países. O armazenamento de carga perigosa também conta com tarifas preferenciais: US$ 1,04 por tonelada, durante cinco dias, contra US$ 111,15 para as mercadorias provenientes de outros países.

Diretor da Administração de Serviços Portuários – Bolívia (ASP-B) entre 2010 e 2012, Daniel Agramont Lechín dá um pulo quando falamos nesses benefícios: “Desde 2004, os portos chilenos de Arica e Antofagasta são privados. Assim, o Chile privatizou, de maneira unilateral, suas obrigações para com um país terceiro! Isso é inédito nas relações internacionais. É a prova de que o Chile age como bem entende, portanto, de que a questão só pode ser resolvida com a soberania boliviana. E essas empresas privadas aumentam suas taxas todo ano: no final de 2010, em Arica, elas dobraram os preços. É um insulto; elas se aproveitam de nosso isolamento”. Contatamos as empresas portuárias de Antofagasta, que nos deixaram visitar sua infraestrutura, mas nunca responderam às nossas perguntas.

MEDO DO NARCOTRÁFICO

Sob a condição de se manter anônima, uma autoridade portuária chilena dá outra explicação para a recusa do corredor boliviano: o temor de que ele se transforme em uma “rota da cocaína”. A Bolívia virou as costas à estratégia de erradicação dos Estados Unidos,18 país com o qual as relações diplomáticas foram interrompidas em 2008. Uma política muito malvista no Chile: “A perda de soberania resultaria em perda de controle”, avalia nossa fonte. “O Chile ficaria vulnerável ao narcotráfico. Além disso, perderia os recursos potencialmente situados não apenas nesse corredor, mas também em sua saída marítima, até 200 milhas náuticas.”19

A Bolívia agora espera que o Tribunal Internacional de Justiça resolva a disputa: “Desde a assinatura do tratado de 1904, temos feito todos os esforços para encontrar uma solução amigável, sem nenhum resultado até o momento”, resume Álvaro García Linera, vice-presidente boliviano. “Respeitamos o direito internacional e confiamos no Tribunal de Haia para nos dar justiça.” Ele tem motivos para estar otimista: em janeiro de 2014, após seis anos de processo, o tribunal devolveu ao Peru uma área marítima anexada pelo Chile após a Guerra do Pacífico. Mas o Chile mostra-se inflexível; Bachelet contesta até a jurisdição de Haia para julgar o assunto. A Bolívia gostaria de convencer o país rival de que esse acesso ao mar beneficiaria a todos: “A resolução de nossa disputa é necessária para a integração regional”, diz García Linera. “E essa integração também beneficiaria o Chile, somando nossas forças, nossos recursos e nossa infraestrutura com o Peru e o Brasil.”

O Brasil tem mesmo muito a ver com isso: tendo a China como seu maior parceiro comercial, o gigante da América do Sul sofre por não ter acesso ao Pacífico. Uma prova é o fluxo interminável de caminhões bolivianos que liga os portos do Chile ao Brasil: para os estados brasileiros ocidentais, é mais fácil comercializar com a Ásia via Chile, Peru e Bolívia do que por meio dos portos brasileiros e do longínquo Canal do Panamá. Embora o Brasil tenha o cuidado de não apoiar publicamente a reivindicação marítima boliviana, ele veria com bons olhos o desenclave de seu vizinho.

Obstáculo à integração continental, a perpetuação do litígio irrita. Em novembro de 2014, o secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Ernesto Samper, ex-presidente colombiano, recomendou uma “solução para a disputa marítima entre a Bolívia e o Chile, o que beneficiaria tanto as partes como a região”. A essa declaração, o embaixador do Chile no Equador (onde fica a sede da Unasul), Gabriel Ascencio Manilla, respondeu secamente: “O Chile não reconhece a jurisdição da Unasul ou de qualquer outro fórum multilateral para intervir nessa questão”.20 Essa inadmissibilidade confirma que é em Haia que será disputado o próximo – mas provavelmente não o último! – capítulo desse litígio que já dura um século e meio. As audiências públicas foram realizadas em maio de 2015, e o Tribunal Internacional de Justiça deve fazer suas deliberações ainda este ano.

Cédric Gouverneur é jornalista.

Ilustração: Celeste Marina/ cc

1             O entrevistado preferiu manter o anonimato.

2             Figura de estilo que aproxima dois termos contraditórios.

3             Edward Luce, “American socialism’s day in the sun” [Dia do socialismo americano ao sol], Financial Times, Londres, 1º jun. 2015.

4             Direção Estratégica da Reivindicação Marítima (Diremar), El libro del mar [O livro do mar], La Paz, 2014. Disponível em: .

5             Os bolivianos conhecem bem Jeffrey Sachs, que prestou consultoria ao país (junto com o francês Daniel Cohen) durante a “terapia de choque” neoliberal em 1985. A operação, que visava reduzir a hiperinflação, teve como saldo a demissão de 23 mil mineiros, o aumento das desigualdades e o desenvolvimento do cultivo de coca.

6             “Nature, nurture and growth” [Natureza, criação e crescimento], The Economist, Londres, 12 jun. 1997.

7             A cessão da Eritreia foi feita após um acordo com Adis Abeba em 1993.

8             Ler Renaud Lambert, “Le Brésil s’empare du rêve de Bolívar” [Brasil se apropria do sonho de Bolívar], Le Monde diplomatique, jun. 2013.

9             Em 2014, o PIB per capita do Chile foi de US$ 15.840 (o segundo da América do Sul), contra US$ 3.095 na Bolívia (o último), de acordo com o Banco Mundial.

10           Economistas neoliberais formados na Universidade de Chicago, entre os quais se destaca Milton Friedman.

11           O Brasil é o maior parceiro comercial da Bolívia. O comércio entre os dois países aumentou seis vezes na última década (Rede Brasil Atual, 22 jan. 2015).

12           “Doing Business 2012” [Fazendo negócios 2012], Banco Mundial, Washington.

13           El Deber, Santa Cruz de la Sierra, 6 ago. 2015.

14           A Bolívia considerava-se no direito de taxar empresários estrangeiros, especialmente para financiar a reconstrução após um terremoto e um tsunami que devastaram a costa em 1877.

15           Daniel Parodi Revoredo, “Lo que dicen de nosotros” [O que dizem de nós], Universidad Peruana de Ciencias Aplicadas (UPC), Lima, 2015.

16           El libro del mar, op. cit.

17           “Chile y la aspiracion maritima boliviana: mito y realidad” [O Chile e a aspiração marítima boliviana: mito e realidade], Ministério das Relações Exteriores do Chile, jun. 2014. Disponível em: .

18           Ler François Polet, “Vers la fin de la ‘guerre contre la drogue’” [Rumo ao fim da “guerra às drogas”], Le Monde diplomatique, fev. 2014.

19           O direito marítimo concede aos Estados, ao longo de sua costa e até uma distância de 200 milhas náuticas (370 quilômetros), uma zona econômica exclusiva (ZEE): direitos soberanos de exploração (hidrocarbonetos) e utilização de recursos (pesca).

20           Editorial do embaixador Gabriel Ascencio Manilla, El Telegrafo, Guayaquil, 18 dez. 2014.

(BOX)

GUERRA DO PAC’IFICO E DO SALITRE

Quando 10 mil soldados chilenos desembarcaram no porto boliviano de Antofagasta, em 14 de fevereiro de 1879, quase não encontraram resistência. E por uma boa razão: a cidade tinha cerca de 6,5 mil chilenos e 2 mil bolivianos. A dureza do Deserto do Atacama explica essa peculiaridade: é menos perigoso chegar a Antofagasta navegando pela costa do que cruzar os Andes e depois atravessar o deserto. O Atacama tem a menor densidade orgânica do mundo; embora praticamente sem vida, desde meados do século XIX seu potencial econômico já podia ser vislumbrado. Ali se descobriu salitre (um componente da dinamite), guano (acúmulo de dejetos de aves utilizado como fertilizante) e principalmente prata: diariamente, mil carrinhos do minério circulavam então entre a mina de Caracoles e Antofagasta. Colonos chilenos, além de aventureiros britânicos, migraram para a área.

Nessa época, em La Paz, os golpes de Estado se sucediam. Instável e distante, o Estado boliviano era visto pelos pioneiros como injusto e imprevisível, cada novo ditador ignorando os compromissos do anterior. Em 1879, a recusa da anglo-chilena Compañía de Salitres y Ferrocarril de Antofagasta (CSFA) em pagar uma taxa de 10 centavos por quintal exportado, bem como a descoberta pelo Chile de uma aliança militar secreta entre a Bolívia e o Peru serviram de pretexto para o início das hostilidades.

Numericamente, o Exército chileno era menor que o do adversário, porém mais bem equipado. Ele contava com oficiais prussianos, veteranos das guerras de Bismarck. Excessivamente vasto, distante e árido, o litoral se revelou indefensável. A Bolívia nem sequer tinha frota, então delegou as operações navais a seu aliado peruano. Por falta de telégrafo, as comunicações eram deploráveis: a notícia da tomada das minas de prata de Caracoles pelos chilenos levou dez dias para chegar a La Paz. Apesar de tudo, a Bolívia e o Peru resistiram o que puderam. Em Calama, no dia 23 de março, os defensores bolivianos, liderados pelo coronel Eduardo Abaroa, lutaram até a última bala. Em 21 de maio, a corveta chilena Esmeralda foi afundada diante do porto peruano de Iquique. Mas o avanço das tropas de Santiago foi inexorável, e no dia 7 de junho de 1880 a bandeira chilena tremulou sobre o porto peruano de Arica. As tropas chilenas chegaram até a ocupar brevemente Lima, em janeiro de 1881. Em pouco mais de um ano de combate, Santiago conseguiu a façanha de ampliar sua fronteira setentrional em 600 quilômetros.

O Chile assinou um acordo de paz em 1883, e a Bolívia, uma trégua no ano seguinte. Esta perdeu seus 400 quilômetros de litoral, o equivalente a 120 mil quilômetros quadrados, um décimo de sua área. Amontoado atrás da cordilheira, o país andino ficou ainda mais inconsolável porque o Chile passou a explorar, não muito longe da “heroica” Calama, o que continua sendo a maior mina de cobre a céu aberto do mundo: a inestimável jazida de Chuquicamata.

Em 1904, Chile e Bolívia assinaram um “tratado de paz, amizade e comércio”, no qual Santiago concordou em conceder aos vencidos “livre trânsito” até o mar. (C.G.)

Deportações na República Dominicana

diplomatique.org.br

 Rodrigo Charafeddine Bulamah:


Fronteira entre Haiti e República Dominicana

Na República Dominicana, tudo é negócio.” Debaixo do forte sol de verão que toma conta da ilha que o país divide com o Haiti, Mariano, um senhor de meia-idade, descreve o labirinto burocrático que enfrenta todos os anos para conseguir os documentos necessários para matricular sua filha na escola.

São papéis, assinaturas e carimbos às dezenas, escritórios que mudam de lugar da noite para o dia e funcionários que se disponibilizam a agilizar o processo por alguns milhares de pesos dominicanos (R$ 1 = 13 pesos dominicanos).

Fosse essa a história de um haitiano, teríamos um exemplo claro da atual política de imigração empregada pelo governo da República Dominicana. Porém, Mariano é dominicano. Ele já testemunhou cenas de abuso de autoridade nas ruas da “primeira cidade das Américas”, como é conhecida Santo Domingo. E já viu policiais extorquirem imigrantes e os expulsarem das ruas, fazendo uso da força.

São cenas, no entanto, que dificilmente se repetirão tão cedo. Ao menos não na região central. “Eles estão sendo deportados”, disse uma comerciante que ouvia a conversa com Mariano. Ao que ele replicou: “Não, ninguém está sendo deportado. Por enquanto, eles estão indo por conta própria”.

A situação atual é o desfecho de uma série de alterações nas políticas de reconhecimento da cidadania na República Dominicana. Operando por um princípio de jus solis, a Constituição dominicana garantia a cidadania a todas as pessoas nascidas em território nacional. Esse princípio foi alterado em 2010, quando a Justiça estabeleceu que a nacionalidade seria atribuída por descendência.

Em 2013, depois da sentença 168/13, a nova lei passou a agir retroativamente, contando a partir de 1929, e atingiu particularmente haitianos e dominicanos de origem haitiana, considerados pessoas “em trânsito” – mesmo as famílias que estão há gerações na República Dominicana. O argumento é de que a nacionalidade lhes foi conferida por engano, tal como consta em um site oficial do governo (http://leonelfernandez.com/articulos/the-dominican-republichaiti-immigration-process/). Calcula-se que ao redor de 300 mil pessoas foram atiradas num limbo jurídico, perdendo o direito à cidadania.

O ano de 1929 foi escolhido numa tentativa de desatrelar o novo princípio jurídico da figura do ditador Rafael Trujillo, que governou o país de 1930 a 1961, fazendo da República Dominicana sua própria plantation. Desde o início, Trujillo executou um plano de “dominicanização da fronteira”, destruindo um rico universo social marcado por trocas, trânsitos e liberdades, no qual as diferenças econômicas e sociais com o Haiti eram pouco significativas.

Seu projeto político ganhou um viés ideológico centrado, sobretudo, na consolidação do anti-haitianismo, política identitária e pseudocientífica baseada na reprodução de preconceitos étnico-raciais com relação à população vizinha. Diferenças como a língua e a origem colonial ganharam um peso identitário, apagando traços históricos culturais compartilhados entre os dois lados da ilha. Uma das consequências dessa política foi o Massacre de 1937, conhecido como “El Corte”, um ritual de sangue e silenciamento que instituiu simbolicamente a fronteira entre os dois países ao custo de dezenas de milhares de vidas.

Cinquenta e quatro anos após seu assassinato, o ditador parece ser o fantasma por trás dessa nova crise humanitária.

A presença de haitianos na República Dominicana não difere de outros contextos fronteiriços em que as diferenças econômicas entre países próximos ocasionam fluxos de imigrantes em busca de trabalho e acesso a serviços. O que muitas vezes se ignora é a contribuição desses imigrantes à produção de riquezas nacionais. Segundo as Nações Unidas, imigrantes haitianos, que trabalham principalmente no corte da cana e nas plantações de arroz, no setor turístico e na construção civil, contribuem com 5,4% dos US$ 64 milhões do PIB dominicano.

Contudo, não é somente a questão econômica que está em jogo. O que está no centro do debate é uma nova política de cidadania. No dia 17 de julho, chegou ao fim o Plano Nacional para a Regularização de Estrangeiros em Situação Irregular, um dos principais feitos do governo de Danilo Medina, eleito em 2012, que tenta reeleição no ano que vem.

O plano foi uma resposta às críticas de Estados e órgãos internacionais à sentença 168/13 e um esforço para resolver o que é localmente conhecido como “o problema haitiano”. No entanto, o plano teve efeitos controversos, ao exigir de migrantes pobres que trabalham no setor informal o pagamento de elevadas taxas e a apresentação de comprovantes de emprego e de residência para conseguirem documentos.

Helène, haitiana que vive na periferia de Santo Domingo desde 2010, conseguiu com muito custo solicitar sua documentação, mas ainda não sabe se será naturalizada, se lhe darão um visto de trabalho ou de residência. Ela contou com a ajuda do Centro Bonó, ONG dominicana que trabalha auxiliando imigrantes e pessoas em situação de risco. Outros haitianos, contudo, foram vítima de falsários e advogados oportunistas.

Ana Geraldo, advogada da ONG, diz que as informações prestadas pelo governo dominicano sobre o plano nunca foram claras, prejudicando os haitianos e dominicanos interessados em se regularizar. Ana María Belique, dominicana de pais haitianos e representante do Movimento Reconocido, acrescenta que a existência de planos coincidentes e o excesso de categorias atrapalham o processo. Ela foi uma das 55 mil pessoas que, mesmo nascidas na República Dominicana, perderam a cidadania.

Na corrida pela reeleição em 2016, veem-se cartazes com a imagem de Medina por todo o país. A partir do fim do Plano de Regularização, o presidente e diversos embaixadores apresentaram-se a órgãos internacionais para tentar justificar as recentes políticas de seu governo.

Dividido entre conseguir o apoio interno de ultraconservadores e não perder os auxílios políticos e econômicos da Europa e dos Estados Unidos, o governo fala em conspiração internacional e defende-se com argumentos sobre a importância da soberania nacional. Em 8 de julho, em sessão da Organização dos Estados Americanos (OEA), o governo haitiano mostrou-se crítico em relação à nova política e preocupado com o fluxo de pessoas que começa a chegar ao país. Em resposta, o governo dominicano aprovou a visita de uma missão internacional que acompanhou o processo atual de regularização entre os dias 10 e 14 de julho, emitindo um relatório crítico da situação.

A partir de agosto, após a entrega dos vistos aos imigrantes e da resolução da situação dos nascidos na República Dominicana, começam as ações da polícia de imigração para deportar do território nacional pessoas de ascendência haitiana que não conseguiram correr contra o tempo e enfrentar a desorganização e a crueldade burocráticas descritas por Mariano.

Por ora, entre haitianos e dominicanos de origem haitiana, uma categoria que o governo insiste em dizer que não existe, o medo e os rumores de um endurecimento das deportações e de violências oportunistas que adquiriram o respaldo do Estado têm sido políticas efetivas de expulsão.

Por outro lado, manifestações estão tomando conta da capital, chamando atenção para o fato de que não se trata somente de uma questão interna. Por meio de cartazes e frases em coro, mensagens são veiculadas conectando os eventos recentes do país às formas diversas de discriminação e violência contra populações negras em todo o globo, como nos dizeres “black lives matter” (vidas negras importam), em referência à chamada que se popularizou após as manifestações de Ferguson, nos Estados Unidos. No fundo, a luta que se trava na República Dominicana não parece tão distinta do que a que se vive em outros contextos globais.

Dados do governo dominicano falam em 40 mil pessoas que já cruzaram a fronteira, número provavelmente subestimado. Do lado haitiano, campos provisórios estão sendo montados para receber os imigrantes, ecoando uma imagem que se tornou habitual no Haiti após o terremoto de 12 de janeiro de 2010.

Rodrigo Charafeddine Bulamah

Rodrigo Charafeddine Bulamah é antropólogo, faz doutorado na Unicamp e trabalha com história e ecologia no Haiti e na República Dominicana

Ilustração: Alex Polmos
(de Santo Domingo, República Dominicana)

Petrobras: o maior patrimônio do povo brasileiro está em perigo

diplomatique.org.br

Nazareno Godeiro


A entrega da Vale do Rio Doce ao capital internacional e a quebra do monopólio estatal do petróleo, por Fernando Henrique Cardoso, revelaram a rendição da burguesia brasileira diante do imperialismo. Privatização, terceirização, desnacionalização. Três palavras que resumem duas “decadências” do Brasil: a quebra de uma potente indústria nacional e o retorno do país como exportador de produtos primários. Assim, o Brasil ingressou pela porta dos fundos na nova ordem mundial neoliberal.

O MAIOR ATAQUE DESDE A QUEBRA DO MONOPÓLIO ESTATAL DO PETRÓLEO

A Petrobras é o maior patrimônio do povo brasileiro. Representa 13% do PIB do país. Sozinha, é responsável por boa parte do desenvolvimento do Brasil. Por isso, é incompreensível a orientação do governo, ao cortar 37% dos investimentos da Petrobras e vender metade do seu patrimônio.

O PNG (Plano de Negócios e Gestão da Petrobras) 2015/2019 determinou: “Rio de Janeiro, 29 de junho de 2015 – Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras comunica que seu Conselho de Administração aprovou, no dia 26 de junho de 2015, o Plano de Negócios e Gestão 2015-2019. O Plano tem como objetivos fundamentais a desalavancagem da Companhia e a geração de valor para os acionistas. […] O montante de desinvestimentos em 2015/2016 foi revisado para US$ 15,1 bilhões… O Plano também prevê esforços em reestruturação de negócios, desmobilização de ativos e desinvestimentos adicionais, totalizando US$ 42,6 bilhões em 2017/2018”.

Essa decisão desmonta a Petrobras e joga a economia na maior recessão desde a década de 1990.

VENDA DE ATIVOS É PRIVATIZAÇÃO

O patrimônio líquido da Petrobras está avaliado em torno de R$ 300 bilhões. O governo do PT pretende vender, em apenas quatro anos, cerca de R$ 180 bilhões, ou seja, 60% do Sistema Petrobras.

Quem mais sofre com esse ataque são os trabalhadores: em meados de 2015, já temos 85 mil demissões, entre trabalhadores diretos e terceirizados.

O governo Dilma, por meio de Aldemir Bendini, pretende desmontar a Petrobras para, em seguida, privatizá-la, vendendo ativos petrolíferos de grande rentabilidade a preço baixo.

A direção da empresa escolheu o Bank of America para precificar os ativos do pré-sal que serão vendidos. Contratou o Itaú-Unibanco para operar a venda da Gaspetro e o Bradesco para orientar a venda de parte da BR Distribuidora.

Assim, o governo do PT repete a fórmula fraudulenta da venda da Vale: o Bradesco foi o banco responsável por precificar a Vale. Determinou a cifra de US$ 3 bilhões para um patrimônio que valia US$ 100 bilhões. Assim, o banco foi avaliador e comprador ao mesmo tempo, motivo suficiente para suspender o processo. Hoje o Bradesco é grande acionista da Vale.

CAMPANHA PARA DESACREDITAR A PETROBRAS E PRIVATIZÁ-LA

A grande imprensa burguesa, junto com as empresas multinacionais e grandes bancos internacionais – especuladores –, capitaneados pelo PSDB de José Serra, realiza uma intensa campanha para desmoralizar a Petrobras, rebaixar o preço dos seus ativos e arrematá-la a preços baixos.

Com essa campanha, buscam o aumento do preço dos combustíveis, a fabricação dos componentes da indústria petrolífera fora do Brasil, a redução drástica de investimentos para pagar a dívida com grandes bancos internacionais, o desmonte da Petrobras como empresa integrada de energia para transformá-la em exportadora de óleo cru e importadora de derivados, a privatização da BR Distribuidora e, por tabela, ainda querem que os trabalhadores paguem, com seu emprego, o rombo deixado pelos corruptos.

O Plano de Negócios 2015/2019 é a capitulação do governo Dilma às multinacionais e ao PSDB. A demonstração dessa capitulação é o anúncio por parte do governo Dilma de mais um leilão de áreas de petróleo e gás, em outubro de 2015. Também está previsto para 2016 um novo leilão na área do pré-sal.

COMO SE FABRICA UM “PREJUÍZO”

Parte importante da campanha é a demonstração de que a Petrobras é uma empresa que dá “prejuízo”. Veja no Gráfico 1 como ela de repente se torna uma empresa “deficitária”: repentinamente, apareceu um “prejuízo” líquido de R$ 21,5 bilhões em 2014. Como? A empresa contabilizou como prejuízo as propinas de 3% sobre todos os contratos das 27 empresas do cartel da Lava Jato entre 2004 e 2012.

Outra forma de derrubar a empresa é por meio do “valor de mercado”, determinado por especuladores internacionais. Veja no Gráfico 2: o “valor de mercado” caiu de R$ 380 bilhões em 2010 para R$ 128 bilhões em 2014, enquanto o valor patrimonial da empresa se manteve o mesmo entre 2010 e 2014.

A VERDADEIRA SITUAÇÃO DA PETROBRAS

A Petrobras é uma das empresas mais valorizadas do mundo. Tem reservas no subsolo brasileiro ambicionadas por todas as grandes petrolíferas. Domina a tecnologia em águas profundas e produz petróleo com custo mais baixo que as multinacionais.

O pré-sal tem um potencial de reserva da ordem de 300 bilhões de barris, dos quais 60 bilhões já foram descobertos pela Petrobras. Uma riqueza estimada em US$ 6 trilhões.

Uma simples operação matemática demonstra quão rentável é a Petrobras: o preço do barril de petróleo no segundo trimestre de 2015 estava em US$ 61,92, e o de produção do barril pela Petrobras, em US$ 12,99. Somados a US$ 21 de taxas e impostos, temos um custo de US$ 33,99 por barril.

Portanto, o lucro por barril é de US$ 27,93. Multiplicado por 2,13 milhões de barris por dia (que é a produção diária da Petrobras), o resultado dá US$ 21,7 bilhões de lucro em um ano, resultado espetacular mesmo com o preço baixo do barril, como está hoje.

O Gráfico 3 também demonstra a excelente situação da Petrobras: uma empresa que tem um faturamento por volta de R$ 300 bilhões, lucro bruto ascendente, lucro operacional (EBITDA) também crescente, revelando que a vida produtiva da empresa é saudável. Além disso, há aumento da produção de óleo e de derivados e aumento do consumo de combustíveis no Brasil. Como se vê, o “prejuízo” se dá nas esferas financeiras e especulativas.

A Petrobras hoje rivaliza com as cinco maiores multinacionais do petróleo, produzindo mais óleo e tendo mais reservas que elas (Exxon, Chevron, Shell, BP e Total).

AS QUATRO CARAS DA PRIVATIZAÇÃO DA PETROBRAS

Infelizmente o PT, chegando ao poder central, continuou com a política privatizadora da Petrobras realizada por Fernando Henrique Cardoso. O PT optou por governar o Brasil mantendo a dominação estrangeira e aplicou a velha política de lotear as empresas públicas para garantir a “governabilidade”.

Para a Petrobras, essa política significou a continuidade da privatização que se expressou em quatro aspectos:

1. Leilão é privatização

Em doze anos de leilão (1997 a 2009), o governo FHC concedeu 484 blocos nos cinco primeiros leilões, enquanto Lula concedeu 706 blocos, reduzindo a parte da Petrobras e aumentando a das empresas privadas.

O leilão de Libra, em 2014, entregou para as multinacionais 60% do campo, pagando apenas U$ 3 bilhões por um patrimônio que vale US$ 300 bilhões. Por isso, o presidente da multinacional francesa Total, Denis Palluat de Besset, classificou a vitória do consórcio no leilão de Libra como um sucesso formidável: “Para nós o Brasil é importante e estratégico. Estamos aqui para ficar 100 anos pelo menos”.1

Não satisfeito, o senador José Serra, do PSDB, por meio do PL 131/2015, quer entregar 100% do subsolo brasileiro às multinacionais, piorando o regime de partilha, que já é ruim, pois coloca 70% do nosso petróleo à disposição das multinacionais, com alta lucratividade e risco zero. Ainda assim, a atual Lei de Partilha mantém a Petrobras como operadora única e detentora de 30% de toda a produção, dois aspectos que Serra quer mudar para pior.

Tanto os leilões quanto a quebra do monopólio estão em contradição com a dinâmica da indústria do petróleo mundial: hoje, 90% das reservas de petróleo estão nas mãos de estatais, assim como três quartos da produção mundial de óleo.

2. Terceirização é privatização

A Petrobras é a empresa que mais utiliza terceirização de serviços no Brasil. No governo de Fernando Henrique, eram 120 mil funcionários terceirizados. Nos dois governos Lula, esse número subiu para 300 mil e chegou a 360 mil na gestão Dilma.

Esses trabalhadores são superexplorados, ganham cerca de 20% dos rendimentos do trabalhador direto da Petrobras e são vítimas da maioria dos acidentes fatais. Boa parte deles está atuando em atividades-fim da empresa. Em dezembro de 2014, 291 mil trabalhadores eram terceirizados (78% da mão de obra) e apenas 80 mil eram funcionários diretos (22%). Ademais, a terceirização é a porta de entrada da corrupção, como está comprovado na Operação Lava Jato.

3. A desnacionalização da Petrobras

De acordo com o Relatório da Administração da Petrobras 2014, a propriedade do capital total social da Petrobras se dividia em abril de 2015, com 54% sob posse privada, a maior parte de origem estrangeira (36% do total): Bank of New York Mellon, BNP, Gap, Credit Suisse, Citibank, HSBC, J.P. Morgan, Santander, BlackRock. Ao governo cabiam os demais 46%.

Uma pesquisa para averiguar os donos desses bancos leva às duas famílias mais ricas do capitalismo mundial: Rockefeller e Rothschild. Isso significa que a maior parte dos lucros da Petrobras serve ao enriquecimento de bancos internacionais, e não para reinvestir na própria empresa, obrigando a companhia a se endividar.

4. O alto endividamento da Petrobras com os bancos internacionais

A Petrobras tem uma dívida de R$ 319 bilhões, representando o valor da produção de cinco anos da empresa. Esse alto endividamento gera uma bola de neve, obrigando a companhia a exportar óleo cru barato para arrecadar dólares e pagar a dívida – um círculo vicioso e destrutivo.

Esse crédito deveria ser garantido pelo BNDES. Porém, mais uma vez inexplicavelmente, o Banco Central, dirigido pelo PT, proibiu o BNDES de emprestar dinheiro à Petrobras. Caso o governo Dilma quisesse de fato defender a companhia, pararia de emprestar somas bilionárias aos grandes empresários nacionais e internacionais para bancar o crescimento da estatal.

A ESTRATÉGIA NEOLIBERAL PARA O BRASIL: GRANDE EXPORTADOR DE ÓLEO CRU

Desde o governo Fernando Henrique o refino no Brasil foi secundarizado. Essa foi a forma que o neoliberalismo encontrou para quebrar a indústria nacional e importar refinados caros dos países ricos. Ficamos 35 anos sem construir uma refinaria. Isso mudou em 2004, no governo Lula, que projetou a construção de quatro, mas agora retrocedeu, como se pode ver pela declaração da própria Petrobras no Relatório da Administração de 2014: “Recentes circunstâncias levaram nossa Administração a revisar nosso planejamento e implementar ações para preservar o caixa e reduzir o volume de investimentos. Por meio desse processo, optamos por postergar os seguintes projetos: Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e segundo trem de refino da Refinaria Abreu e Lima (Rnest). Refinarias Premium: em janeiro de 2015, decidimos encerrar os projetos de investimento para a construção das refinarias Premium I e Premium II”.

Essa estratégia jogará o Brasil numa encruzilhada: em 2023 poderemos produzir cerca de 5 milhões de barris de petróleo por dia e teremos uma capacidade de refino de apenas 2,6 milhões. Isso significa que o país se tornará grande exportador de óleo cru, barato, e grande importador de derivados, caros.

É um tiro no pé.

O Brasil toma o caminho oposto ao dos Estados Unidos, que proíbem a exportação de petróleo e obrigam a refiná-lo no próprio país. O déficit da balança comercial de combustíveis em 2014 foi de US$ 15 bilhões. Exportamos óleo cru barato e importamos derivados 35% mais caros. Essa perda de US$ 15 bilhões corresponde ao preço de uma refinaria por ano. Esse é o resultado da estratégia iniciada por FHC, na década de 1990, e continuada pelos governos petistas.

A DOMINAÇÃO DAS MULTINACIONAIS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA

Esse ataque à Petrobras é parte da neocolonização do Brasil, na qual as multinacionais dominam os principais ramos da indústria brasileira, como o automobilístico (100%), eletroeletrônico (92%), autopeças (75%), telecomunicações (74%), farmacêutico (68%), indústria digital (60%), bens de capital (57%) etc., segundo a revista Exame, Maiores e Melhores de 2012.

Também se operou uma transformação da economia brasileira: de uma forte indústria até a década de 1980 e grande exportador de produtos industrializados, nos transformamos em grande exportador de produtos primários. Exportamos muito minério de ferro e importamos trilhos de trem a preços sete vezes maiores que a matéria-prima enviada ao exterior. Somos os maiores produtores de carne bovina do mundo e não temos mais como comprar carne no supermercado. É a volta da antiga economia colonial.

CONCLUSÃO

Só a mobilização do povo brasileiro, especialmente dos trabalhadores, pode barrar a venda de ativos da Petrobras realizada por Dilma/Bendini e derrotar o PL do senador José Serra. É hora de unir todos na luta em defesa da Petrobras como empresa integrada de energia, 100% estatal, pela volta do monopólio estatal, pelo fim dos leilões, impedir a venda de subsidiárias da Petrobras, parar com as demissões de trabalhadores e pela eleição direta do Conselho de Administração e da Diretoria Executiva da Petrobras.

Nazareno Godeiro

Nazareno Godeiro é pesquisador do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese)

Ilustração: Daniel Kondo
1    Isto É Dinheiro, 9 abr. 2014. Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/negocios/20140409/shell-total-elogiam-inicio-exploracao-libra/124958.shtml.

A armadilha das imagens ocidentais que representam as mulheres árabes

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 Sahar Khalifeh:

É comum: na cultura árabe, assim como em outras, a mulher encarna o sexo frágil, o outro sexo, o sexo desigual, que não herda nada, nem sequer o nome de família, o sexo que pode trazer decência ou desonra. Minha família acolheu meu nascimento com uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um menino. Para a infelicidade de todos, nasci menina, a quinta da família, ou seja, a quinta inconveniente e, para minha mãe, a quinta derrota. Comparada à esposa de meu tio, que triunfou dando à luz dez inestimáveis garotos, minha mãe era a mulher maldita. Apesar de mais bonita, mais inteligente e mais digna que minha tia (e que outras mulheres da família), todos a consideravam a menos fecunda, a que não podia trazer bons frutos ao mundo.

Herdei esses preconceitos e essas teorias. Desde a infância, escuto que as mulheres – da família, do bairro, do mundo inteiro – são impotentes, indefesas, condenadas pela natureza a permanecerem fracas.

Há alguns meses, contudo, minha irmã menor descobriu que eu era a única pessoa da família Khalifeh a figurar na enciclopédia palestina. Com um suspiro de alívio, ela sublinhou: “A enciclopédia não menciona meu pai, minha mãe, nem meu irmão ou meu tio e seus dez filhos milagrosos, nem outro homem da família; apenas você!”.

Como mulher árabe, já passei por diferentes fases. Fui transformada por certas influências e contribuí em parte para evoluções da nossa sociedade. Mesmo as famílias árabes mais conservadoras agora enviam suas filhas à escola. Quando formadas, tornam-se professoras, médicas, engenheiras, farmacêuticas, escritoras, jornalistas, músicas ou artistas. Hoje, muitas parecem indispensáveis, mais fortes, mais criativas e mais importantes que os homens.

Contudo, os meios de comunicação ocidentais nos representam como criaturas horríveis, envelopadas em xadores, escondidas sob máscaras de couro, como cativas de um harém dissimulado atrás dos véus. Pergunto-me por que eles nos veem dessa forma, fixadas em uma realidade unívoca e imutável. Eles realmente acreditam que somos criaturas diferentes do resto do gênero feminino, incapazes de mudar?

Na escola, eu tinha um professor que falava sempre em “mudança”, usando diferentes tons e sentidos da palavra de acordo com os aspectos da realidade árabe que abordava: a redistribuição da riqueza, a condição das mulheres ou os regimes políticos obsoletos. Todos ao meu redor o respeitavam e o admiravam; os mais jovens queriam ser como ele, e os menos jovens se mostraram dispostos a escondê-lo quando foi perseguido pela polícia.

Esse professor maravilhoso não era o único a falar de mudança e justiça. A maioria das pessoas instruídas acreditava nessas ideias e as defendia. Assim como ele, milhares de homens esclarecidos foram perseguidos pela polícia ou padeceram em prisões dos regimes apoiados e subvencionados pelas potências inglesa, francesa e depois norte-americana.

O nacionalismo árabe conheceu seu auge durante os anos 1950 e 1960. Nossas ruas ferviam e transbordavam esperanças de transformação. Adotamos uma atitude rebelde e crítica em relação aos nossos sistemas sociopolíticos tradicionais. Os ideais de libertação e justiça social estão em nossa literatura, nosso teatro, nossos cantos, nossa música e até nas expressões que usamos na vida cotidiana. A literatura do mundo inteiro irrigou nossa cultura. Nossas bibliotecas e nossas ruas regurgitam livros que apelam à libertação, revolução e mudança: literatura existencialista, socialista, negra.

Esse entusiasmo chegava a todos, até aos camponeses iletrados e às mulheres, que começaram a sair sem véu. Dezenas de milhares delas foram estudar na universidade; algumas se engajaram em partidos políticos. Não apenas não usavam mais o véu, como também passaram a se vestir com outras roupas, minissaia. Por mais inacreditável que pareça, dançamos rock’n’roll e twist, apesar de nosso ódio pelos ocidentais. Queríamos viver como eles, sem que para isso precisássemos ser dominados.

Essa atmosfera idílica se dissipou quando Israel, apoiado pelo Ocidente, conseguiu derrotar o dirigente egípcio Gamal Abdel Nasser, em 1967. Essa derrota – momento em que os norte-americanos e todos os seus aliados regionais aproveitaram para enfraquecer o movimento rebelde – significou também a de nosso movimento nacional e nossas convicções socialistas. Eles apoiaram maciçamente o islamismo – com milhões de dólares – como estratégia para abafar o nacionalismo progressista. A Irmandade Muçulmana, até então vista com certa indiferença pela população, subiu ao poder. A situação de nossa região nos anos 1970 e 1980 era similar à do Afeganistão quando os norte-americanos apoiaram militarmente os islâmicos, em particular Osama bin Laden, para conter os comunistas.

As instituições e os meios de comunicação ocidentais, seja a imprensa escrita ou a televisão, o cinema ou as universidades, apresentam a mulher árabe como uma criatura com véu dos pés à cabeça, cujos olhos nem sequer ficam à mostra. Supõe-se que elas não são capazes de respirar ou pensar sob o xador, condenando-as a ser sombras ambulantes que erram pela vida como feiticeiras ou fantasmas aterradores.

As vestes da criatura que mulheres como eu encarnam aos olhos ocidentais são chamadas de “traje islâmico”. Contudo, estou convencida de que esse traje não é islâmico ou árabe: trata-se de uma criação do Ocidente, uma manifestação vergonhosa de seu imperialismo.

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Minha mãe usava um véu transparente negro que cobria mais ou menos seu rosto e seus cabelos, mas a deixava ver e respirar. O resto de sua roupa consistia em uma saia ou vestido simples que chegava até os joelhos, com um colete justo que desenhava seus seios e sua cintura. Nada a ver com o que hoje é considerado “traje islâmico” – que transforma o corpo feminino em saco informe, massa sombria, coluna de fumaça.

No início dos anos 1950, minha mãe engajou-se no movimento sufur (pelo desuso do véu), ao lado de muitas outras mulheres de sua geração. Algumas eram como ela, oriundas de classes médias de grandes cidades árabes; outras, menos privilegiadas e de vilarejos. Basta assistir às gravações de shows da cantora egípcia Umm Kulthum ou de outros artistas da mesma época para constatar que nenhuma mulher da plateia veste esse “traje”.

A desastrosa ocupação da Palestina por Israel em 1948 provocou uma degradação da situação econômica, e isso teve um grande e direto impacto sobre as mulheres. Milhares de famílias que perderam suas terras, suas casas e cujos maridos morreram em combates precisaram afastar as mulheres da esfera doméstica para que pudessem trabalhar ou estudar.

Nessa época, milhares de jovens palestinas instruídas começaram a ser vistas viajando sem lenço, morando sozinhas sem ser casadas, e ainda assim conservando a honra diante de seus próximos e da sociedade: elas ajudavam a suprir as necessidades de famílias de baixa renda. Descrevi a condição dessas mulheres em meu romance A herança (sem tradução, 1997). Com o tempo, não somente se passou a admitir, como também a ser bem-visto, que elas financiassem os estudos universitários de suas protegidas no Egito, Síria ou Líbano, o que por sua vez permitia que essas mulheres obtivessem diplomas em medicina, farmácia, engenharia, direito ou outras disciplinas.

Essas jovens mulheres qualificadas, corajosas e abertas para o mundo lançaram uma onda de emancipação feminina e social, ainda que nosso conhecimento do pensamento feminista se limitasse aos artigos publicados nos jornais egípcios por algumas pioneiras como Al-Said, Suhair al Qalamawi e Durriya Shafik – cujos escritos não iam muito além de temas como planejamento familiar, casamento precoce e poligamia.

No entanto, logo depois de nossa derrota para Israel em 1967, regimes árabes ditatoriais hostis ao socialismo, apoiados pelos Estados Unidos, aliaram-se a grupos islâmicos fundamentalistas, generosamente financiados. Todos aqueles que vestissem o famoso “traje islâmico”, por exemplo, receberiam um auxílio mensal de 15 dinares jordanianos para o homem (R$ 70) e 10 para a mulher. Os homens deveriam vestir dishdasha ou jellabiya, sandálias de couro e manter a barba comprida; as mulheres, por sua vez, precisavam vestir lenço sobre a cabeça e uma longa túnica que chegasse aos dedos dos pés. Os beneficiários desse auxílio também ganhavam um rosário e uma linda edição do Corão, além de um lindo tapete de reza.

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As organizações islâmicas priorizaram como alvo as jovens já ilustradas, pois exerceriam influência sobre as outras. Também quiseram atingir as donas de casa. Depois, a atenção se voltou para as mesquitas, escolas e universidades. Tudo isso não poderia ter funcionado sem a ajuda (notoriamente financeira) dos regimes árabes que manifestaram sua lealdade – ou submissão – aos Estados Unidos ao se alinharem com sua estratégia, na esperança de que o islamismo triunfasse sobre os socialistas e progressistas no seio de nossas sociedades.

Contudo, os fundamentalistas não se contentaram em impor suas vestimentas, auxílios mensais e lugares de encontro (mesquitas). Com o objetivo de conquistar os espíritos em escolas primárias e secundárias, nomearam para os cargos-chave dessas instituições – em vez de professores – islâmicos fundamentalistas, homens ou mulheres, cuja missão seria imprimir a ideologia da religião na psique e no intelecto dos estudantes. Para completar essa educação, os adolescentes seguiram um treinamento que lhes inculcava a disciplina militar e as artes marciais em campos instalados nos desertos árabes, assim como no Afeganistão e no Paquistão.

Ironicamente, os Estados Unidos e seus aliados caíram na própria armadilha: o mal já estava feito, e as organizações fundamentalistas começaram a projetar um regime islâmico hostil ao Ocidente.

Atualmente, passamos por uma terrível crise intelectual, social e política. Somos ameaçados por todos os lados sem saber qual das ameaças é mais brutal. De um lado, o Ocidente, com suas megalomanias, exploração e colonização; de outro, o islamismo, cujas supostas inovações nos levaram ao tempo dos haréns e da opressão. Em outros termos, podemos escolher entre um Ocidente sinônimo de liberdade, laicidade e ciência, mas também de colonialismo, e um islã impiedoso, que apela para seus seguidores resistirem ao Ocidente, mas se opõe à ciência, à modernidade, assim como à emancipação feminina e social.

E esse caos geral não se limita à nossa região; também toca o próprio Ocidente. Assim, o véu e o xador tornaram-se símbolos de temor e aversão, a ponto de certos países proibirem vestimentas islâmicas e o uso do véu em escolas e locais públicos. Atualmente, somos alvo de preconceitos racistas.

De minha parte, declaro àqueles que compartilham dessa visão estreita e egoísta que somos mais próximas deles do que imaginam. Não costumamos repetir que o planeta se transformou em uma aldeia? Como ondas humanas, desaguamos em suas praias. Façam o que quiserem para limitar a imigração e intensificar os controles, sempre encontraremos um meio de chegar a vocês, superar os obstáculos e afirmar nossa presença. Na realidade, já estamos aí. Vocês podem negar nossa presença, mas estamos ao seu redor, somos parte do seu mundo.

Não tenho nenhuma intenção de provocar raiva. Simplesmente quero defender minha causa de maneira crua e concreta. Desejo que um leitor ocidental possa sentir o que eu sinto, temer o que eu temo; quero que tenha consciência da dor que seus governantes colonialistas infligem a nossos povos, da dor que infligem a mim. Seus meios de comunicação me transformam em estereótipo, condenam-me, falsificam-me. Quando apresentam uma mulher de burca como a encarnação da mulher árabe, eles subentendem que a escritora que sou, assim como milhares de outras mulheres instruídas e milhões de mulheres árabes modernas – muçulmanas e cristãs – que vivem em países árabes são apenas aquilo: uma sombra cabisbaixa, um corpo sem forma, incapaz de pensar e se expressar. Mas eles se enganam. A imagem de uma mulher de burca não me enche de medo e terror. Tenho medo, sim, de que um dia essa imagem represente minha filha, minhas netas ou a mim mesma em um regime árabe sinistro, mantido na ignorância e por manobras cujo objetivo é nos conservar como somos há muito tempo: uma jazida de petróleo a serviço do mercado ocidental.

Sahar Khalifeh

*Sahar Khalifeh é escritora palestina e autora, entre outros livros, de Un printemps très chaud [Uma primavera muito quente] (Seuil, 2008). Este texto foi adaptado de uma conferência pronunciada no Centro de Estudos Palestinos da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), na Universidade de Londres, em 5 de março de 2015.

Ilustração: Mariana Zanetti

As origens climáticas dos conflitos

diplomatique.org.br

 Agnès Sinaï

Entre 2006 e 2011, a Síria conheceu a mais longa seca e a maior perda de colheitas registrada desde as primeiras civilizações do Crescente Fértil, região que compreende, além de um trecho do país de Bashar al-Assad, Israel, Jordânia, Líbano e partes do Egito, do Irã, do Iraque, da Turquia. No total, dos 22 milhões de habitantes que contava então o país, quase 1,5 milhão foram atingidos pela desertificação,1 o que provocou migrações maciças de agricultores, pastores e famílias rurais para as cidades.2 Esse êxodo intensificou as tensões provocadas pelo afluxo de refugiados iraquianos que se seguiu à invasão norte-americana de 2003. Durante décadas, o regime de Al-Assad negligenciou os recursos do país, subvencionou culturas de trigo e de algodão que necessitam de muita água e encorajou técnicas de irrigação ineficientes. O esgotamento da terra pelo gado e o crescimento demográfico reforçaram o processo. Os recursos hídricos caíram pela metade entre 2002 e 2008.

A degradação do sistema agrícola sírio resulta de um complexo jogo de fatores que incluem mudanças climáticas, má gestão dos recursos naturais e dinâmica demográfica. Essa “combinação de transformações econômicas, sociais, climáticas e ambientais erodiu o contrato social entre os cidadãos e o governo, catalisou os movimentos de oposição e degradou irreversivelmente a legitimidade do poder de Al-Assad”, avaliam Francesco Femia e Caitlin Werrel, do Centro para o Clima e a Segurança. Segundo eles, a emergência da organização Estado Islâmico e sua expansão na Síria e no Iraque resultam em parte da seca.3 E esta não é consequência apenas da variação natural do clima. Trata-se de uma anomalia: “A mudança do regime das precipitações na Síria está relacionada à elevação do nível médio do mar no leste do Mediterrâneo, unida à queda de umidade do solo. Nenhuma causa natural aparece nessas tendências, enquanto a seca e o aquecimento reforçam os modelos resultantes da elevação dos gases do efeito estufa”, estima a revista da Academia das Ciências Americanas.4

No leste da China, durante o inverno de 2010-2011, a ausência de precipitações e as tempestades de areia, que levaram o governo de Wen Jiabao a lançar mísseis na esperança de provocar chuvas, tiveram repercussões em cascata, bem além das fronteiras do país. A perda de colheitas, de fato, obrigou Pequim a comprar trigo no mercado internacional. A alta repentina mundial que se seguiu alimentou o descontentamento popular no Egito, principal importador mundial de trigo, cujas famílias dedicam normalmente um terço de sua renda à alimentação. O aumento do preço do trigo, que dobrou, passando de US$ 157 em junho de 2010 para US$ 326 em fevereiro de 2011, foi fortemente sentido no país. O preço do pão triplicou, o que alimentou o descontentamento popular contra o regime autoritário do então presidente Hosni Mubarak.5

Enxofre para refrescar o planeta

No mesmo período, as colheitas de trigo, soja e milho do Hemisfério Sul foram atingidas pelo La Niña, um evento climático severo que provocou uma seca na Argentina e chuvas torrenciais na Austrália. Em um artigo da revista Nature, Solomon Hsiang, Kyle Meng e Mark Cane estabeleceram uma correlação entre as guerras civis e o fenômeno El Niño, que, com um ciclo que varia de três a sete anos, provoca uma acumulação de águas quentes ao longo das costas do Equador e do Peru, e o enfraquecimento dos ventos alísios do Pacífico, associados a importantes mudanças meteorológicas em escala mundial.6 Para Hsiang e seus colegas, a probabilidade de conflitos civis dobra durante o El Niño. É a primeira demonstração de que a estabilidade das sociedades modernas depende muito do clima global.

A mudança climática tornou-se um “multiplicador de ameaças” e modifica o curso das relações internacionais. À hard securityherdada da Guerra Fria sucede a natural security, conceito forjado pelos militares norte-americanos reunidos no seio do Center for a New American Security. Esse think tankfoi criado em 2007 para fazer frente ao ceticismo climático dos neoconservadores e identificar as ameaças globais emergentes.7

As origens da insegurança ambiental não podem mais se resumir a elementos meramente exógenos e naturais como erupções vulcânicas, tsunamis ou terremotos. As atividades humanas, a aceleração dos ciclos produtivos e sua globalização concorrem para desestabilizar o clima. O neologismo “Antropoceno” designa essa marca desmedida das sociedades industriais sobre o sistema terrestre.

No Ártico, onde os glaciais poderão derreter completamente até o final deste século e os efeitos do aquecimento global são duas vezes mais intensos que em outras regiões, a reivindicação de novas fronteiras terrestres e marítimas reaviva as tensões entre países circumpolares.8 A Rússia, que explora o Ártico há séculos, é a única nação que possui uma frota de quebra-gelos nucleares. Um modelo gigante, em fase de construção nos estaleiros de São Petersburgo, ficará pronto em 2017.9 Moscou renova também sua frota de submarinos ultrassilenciosos de quarta geração, lançadores de mísseis com ogivas nucleares. Do lado norte-americano, a abertura do Ártico significa ao mesmo tempo uma oportunidade comercial com a Ásia e uma possibilidade de garantir novos recursos energéticos.10

O degelo do Ártico impõe seus efeitos sistêmicos. A variação do vórtice polar, corrente de ar glacial do Polo Norte, explica o frio intenso que se abateu sobre a América do Norte no decorrer do inverno de 2013-2014. “A interação entre o Ártico e o aquecimento global é algo novo na história humana, porque ela transforma o encontro entre geografia e geofísica nessa região em um poder novo e estranho, de natureza geofísica, que chamamos de ‘poder ambiental do Ártico’. Este se exerce em escala planetária com graves consequências”, observa o especialista em estratégia militar Jean-Michel Valantin.11 Contudo, o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) observa que não há teoria consolidada que permita afirmar a ocorrência de conflitos armados no Polo Norte. O degelo permitirá validar ou não a robusteza das instituições de cooperação transfronteiriças circumpolares, como o Conselho do Ártico. As causalidades se revelam complexas, instáveis e evolutivas; os efeitos do aquecimento pesam mais ou menos sobre as sociedades em função da resiliência dos sistemas políticos, econômicos e sociais vigentes.12

Em seu livro Climate Wars, a jornalista Gwynne Dyer descreve um mundo onde o aquecimento se acelera e os refugiados, famintos em consequência da seca, expulsos pela elevação do nível dos oceanos, tentam alcançar o Hemisfério Norte, enquanto os últimos países autossuficientes em alimentos, aqueles das latitudes mais altas, devem se defender, inclusive recorrendo a armas nucleares, de vizinhos cada vez mais agressivos: os do sul da Europa e das margens do Mediterrâneo, transformados em deserto.13

Diante do que alguns cientistas chamam de uma “grande ruptura climática de origem humana” (anthropogenic climate disruption), a geoengenharia, isto é, a intervenção deliberada para reverter o aquecimento global, tenta controlar o clima.14 Ela consiste em um conjunto de técnicas que visam retirar uma parte dos excedentes de carbono da atmosfera (carbon dioxyde removal) e regular as radiações solares (solar radiation management), correndo o risco de uma grande desestabilização das sociedades e dos ecossistemas. Um exemplo é a pulverização de enxofre em uma camada suficientemente espessa da atmosfera para gerar um efeito óptico de obstáculo à radiação solar e, desse modo, resfriar o planeta. Mas a observação das erupções vulcânicas leva os climatologistas a constatar que, se as partículas de enxofre colaboram para resfriar a atmosfera, elas contribuem também para secas regionais e podem reduzir a produção de painéis solares, levar à degradação da camada de ozônio e enfraquecer o ciclo hidrogeológico global. “Além disso, sem acordos internacionais definindo como e em que proporções utilizar a geoengenharia, as técnicas de gestão da radiação solar representam um risco geopolítico. Como o custo dessa tecnologia é estimado em dezenas de bilhões de dólares por ano, ele poderia ser assumido por atores não estatais ou por pequenos Estados agindo por conta própria, contribuindo para conflitos globais ou regionais”, adverte o último relatório do IPCC.15

As mudanças climáticas não criam apenas motivos suplementares para conflitos violentos, mas também novas formas de guerras, observa o psicossociólogo Harald Welzer. A violência extrema desses conflitos excede o âmbito das teorias clássicas e “instaura espaços de ação para os quais nenhum quadro referencial é fornecido por experiências vividas no mundo bastante pacífico do Hemisfério Ocidental desde a Segunda Guerra Mundial”.16 Combates assimétricos entre populações e senhores da guerra a serviço de grandes grupos privados se misturam no seio dos mercados da violência, amplificados pelo aquecimento climático. O conflito de Darfur, no Sudão, que perdura desde 1987, é emblemático dessa dinâmica autodestrutiva agravada pela fragilidade dos Estados. No norte da Nigéria, a degradação das terras perturbou os modos de vida agrícolas e pastoris e interfere nas rotas migratórias. Centenas de vilarejos foram abandonados e as migrações resultantes contribuíram para desestabilizar a região, deixando o caminho livre para o movimento islâmico Boko Haram.

O último relatório do IPCC define a noção de “risco composto” (compound risk), que vê convergir impactos múltiplos em uma área geográfica específica: “Como a temperatura média do globo pode subir de 2 °C a 4 °C entre os anos 2000 e 2050, há um potencial para grandes modificações nos esquemas de violência interpessoal, conflitos de grupo e instabilidade social no futuro, todos em igual proporção”.17

Metade das guerras daqui até 2030

O pesquisador Marshall B. Burke, da Universidade de Berkeley na Califórnia, e seus coautores antecipam um crescimento dos conflitos armados em 54% entre hoje e 2030. Seu estudo propõe a primeira avaliação em conjunto de impactos da mudança climática sobre as guerras na África subsaariana. Ela revela a relação entre guerra civil, aumento das temperaturas e queda das precipitações extrapolando as projeções medianas de emissões de gases do efeito estufa do IPCC para essas regiões entre 2020 e 2039.18

O afluxo de refugiados às portas da ilha de prosperidade que é a Europa poderia perseverar e se acentuar no decorrer do século XXI. “Há, hoje, tantas pessoas deslocadas no mundo por causa de degradações ambientais quanto por causa de guerras e violência”, avalia François Gemenne, pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e das Relações Internacionais (Iddri), da França.19 Esses migrantes fogem das guerras que ocorrem longe do Ocidente. Este, a despeito de sua responsabilidade histórica no aquecimento global, reluta em lhes reconhecer um status: “Rejeitar o termo ‘refugiado climático’ equivale a rejeitar o fato de que as mudanças climáticas sejam uma forma de perseguição contra os mais vulneráveis”, completa Gemenne. Estas são as vítimas de um processo de transformação da Terra que é mais poderoso que elas.

Agnès Sinaï é jornalista e coordenador do Atlas do meio ambiente de Le Monde Diplomatique.

Ilustração: Mohamed Nureldin Abdallah/Reuters

1         “Syria: Drought driving farmers to the cities” [Síria: seca leva agricultores às cidades], IRIN News, 2 set. 2009. Disponível em: .

2  Gary Nabhan, “Drought drives Middle Eastern pepper farmers out of business, threatens prized heirloom chilies” [Seca leva cultivadores de pimenta do Oriente Médio à falência, ameaçam cultivo de pimentões premiados], Grist.org, 16 jan. 2010.

3  “The Arab Spring and climate change” [A Primavera Árabe e a mudança climática], The Center for Climate and Security, Washington, fev. 2013.

Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), v.112, n.11, Washington, 17 mar. 2015.

5  Cf. Troy Sternberg, “Chinese drought, bread and the Arab Spring” [Seca chinesa, pão e a Primavera Árabe], Applied Geography, v.34, Amsterdã, maio 2012; Krista Mahr, “Bread is life: food and protest in Egypt” [Pão é vida: comida e protesto no Egito], Time, Nova York, 31 jan. 2011.

6  Solomon M. Hsiang, Kyle C. Meng e Mark A. Cane, “Civil conflicts are associated with the global climate” [Conflitos civis são associados com o clima global], Nature, n.476 (7361), Londres, 25 ago. 2011.

7  Cf. Jean-Michel Valantin, Guerre et nature. L’Amérique se prépare à la guerre du climat[Guerra e natureza. A América se prepara para a guerra do clima], Éditions Prisma, Gennevilliers, 2013.

8  Ler Gilles Lapouge, “Fascination pour les pôles” [Fascínio pelos polos], Le Monde diplomatique, dez. 2010.

9  “Russia lays down world’s largest icebreaker” [Rússia constrói maior quebra-gelo do mundo], Russia Today, 5 nov. 2013. Disponível em: .

10            “National strategy for the Arctic region” [Estratégia nacional para a região do Ártico], Casa Branca, Washington, 10 maio 2013. Disponível em: .

11            Jean-Michel Valantin, “The warming Arctic, a hyper strategic analysis” [O Ártico em aquecimento, uma análise hiperestratégica], The Red (Team) Analysis Society, 20 jan. 2014.

12            Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability [Mudança climática 2014: impactos, adaptação e vulnerabilidade], Cambridge University Press, Cambridge e Nova York, 2014.

13            Gwynne Dyer, Climate Wars: The Fight for Survival as the World Overheats [Guerras do clima: a luta pela sobrevivência enquanto o mundo se aquece], Oneworld Publications, Londres, 2010.

14            Cf. Clive Hamilton, Les Apprentis sorciers du climat. Raisons et déraisons de la géo-ingénierie [Os aprendizes de feiticeiro do clima. Razões e desatinos da geoengenharia], Seuil, Paris, 2013.

15            IPCC, op. cit.

16            Harald Welzer, Les Guerres du climat. Comment on tue au XXIe siècle[As guerras do clima. Como se mata no século XXI], Gallimard, Paris, 2009.

17            IPCC, op. cit.

18       Marshall B. Burke et al., “Warming increases the risk of civil war in Africa” [Aquecimento eleva risco de guerra civil na África], PNAS, 8 dez. 2009.
19       Cf. Naomi Klein, Susan George e Desmond Tutu, Stop crime climatique. L’appel de la société civile pour sortir de l’âge des fossiles[Parar o crime climático. O apelo da sociedade civil para sair da idade dos combustíveis fósseis], no prelo, Seuil, 27 ago. 2015.

Adauto Novaes: Um novo espírito utópico?

O filósofo Francis Wolff começa assim sua conferência no ciclo sobre O novo espírito utópico: “Precisamos de utopias. Elas são para a comunidade aquilo que os sonhos são para os indivíduos. Uma utopia é um refúgio em direção a um ideal irrealizável quando o real parece insuportável. É a aspiração do impossível. Sim, qualquer comunidade, qualquer época, qualquer geração precisa de utopias”. A utopia é isto: seres e imagens sem objetos, ou melhor, aquilo que não existe, mas sem o qual não conseguiríamos viver como humanos nem lutar contra as trevas da realidade social e política. O real hoje é insuportável, todos sabem. Por que, então, a utopia é relegada ao esquecimento e acusada de coisa ilusória e irracional? Tentemos breves respostas.

1. Durante meio milênio (Utopia, de Thomas Morus, foi publicado em 1516), essa bela palavra, que quer dizer “não lugar”, mas também se pode traduzir por eutopia – “lugar da felicidade” –, fez um longo percurso cheio de enigmas. Promessa, esperança, simulação antecipadora, horizonte de nossos desejos, a utopia tem um destino comum: a “severa e lúcida crítica da realidade”. Assim, entendemos por utopia não necessariamente uma ação imediata, uma vez que seu trabalho incessante não se aplica a produzir diretamente a coisa, “mas a produzir aquilo que produzirá a coisa”. É isso que a distingue da ordem e da desordem. Ou melhor, a utopia é ponto de permanente contradição tanto diante da ordem como da desordem do mundo. O fundamento da utopia é, pois, a permanente criação do novo. Mas vemos hoje a construção de certo silêncio não só sobre o desejo utópico como também em torno do seu pensamento. É como nos adverte Miguel Abensour no ensaio O novo espírito utópico: um dos lugares comuns da nova opinião consiste em dizer que quem pensa a democracia deve fazer o luto da utopia; inversamente, quem insiste em pensar a utopia afasta-se da democracia. Nada mais danoso para a política e para o pensamento: “Essa hipotética contradição entre o pensamento do político e o pensamento da utopia faz pouco caso de toda uma tradição da filosofia política moderna; é preciso utopizar a democracia e democratizar a utopia”, escreve Abensour. O ódio da utopia alimenta-se do ódio à emancipação. O pensamento conservador vai além e tenta justificar esse ódio de maneira sinuosa, desqualificando a utopia com mais um lugar comum: “a política é pensamento; a utopia é ilusão”. Pensando assim, utopia não pode, portanto, pertencer ao mundo do pensamento e muito menos ao mundo da política. Eis uma das razões que fazem a utopia se tornar uma das noções mais “esquecidas” hoje. Deliberadamente esquecida. Além da tendência a ligá-la à fé supersticiosa e ao fanatismo político, uma das causas essenciais da recusa da utopia está, certamente, tanto no modelo científico desenvolvido e difundido por certas ideologias – entre elas a de uma sociedade absolutamente pacificada, mito da sociedade reconciliada (o que não representa necessariamente o pensamento de Karl Marx como querem alguns) – como no domínio da visão científica e técnica do mundo hoje. A tecnociência dispensa o pensamento e a imaginação.

2. Em um dos mais impressionantes ensaios, Prefácio às Cartas persas de Montesquieu, o poeta Paul Valéry define assim a origem de nossa desordem: a barbárie é a era do fato e é necessário que a era da ordem seja o império das ficções uma vez que “não existe potência capaz de fundar a ordem apenas por meio da repressão dos corpos pelos corpos. São necessárias forças fictícias. A ordem exige, pois, a ação de presença de coisas ausentes. Um sistema fiduciário ou convencional se desenvolve, introduz entre os homens ligações e obstáculos imaginários cujos efeitos são muito reais. Eles são essenciais à sociedade”.

Depois de descrever as grandes transformações da modernidade, Valéry conclui que “dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem”. Não seria difícil demonstrar a desordem do mundo hoje: atuando de maneira metódica, a civilização ocidental nos legou no século XX mais de 200 milhões de mortes em guerras e massacres; pôs em baixa os valores e a sensibilidade ética. Tal barbárie continua em todos os continentes – basta lembrar a tragédia dos imigrantes na Europa – em nome do “realismo político”. Vale citar Robert Musil: a política em nossos dias é o contrário absoluto do idealismo, quase sua perversão, e “temos nela todas as desvantagens de uma democracia de fatos”. “O homem que especula por baixo sobre seu semelhante e que se intitula político realista só tem por reais as baixezas humanas, única coisa que considera confiável”. A ordem instituída e a desordem social andam juntas. O trabalho da utopia hoje consiste em desfazer esse nó.

3. O espírito utópico contemporâneo, contudo, enfrenta um desafio maior: se é próprio da utopia pensar o social em toda a sua amplitude, como imaginá-la em um mundo que tem como fundamento o individualismo exacerbado, mundo descrito por Musil como o “egoísmo organizado”, mundo do “espírito de butique universalmente expandido”, como diz ainda Friedrich Engels ao criticar a utopia de Charles Fourier no Anti-Dühring? Como pensar, enfim, a utopia quando vemos o predomínio de uma nova forma de determinismo expresso no controle e no autocontrole pelos novos meios eletrônicos que impedem o indivíduo de desenvolver sua singularidade?

4. Um ciclo de conferências que relaciona mutações e utopia nos remete, de imediato, a discutir também as perspectivas criadas pela revolução tecnocientífica e biotecnológica ou, mais precisamente, ao futuro pensado pelo que se convencionou chamar de advento do pós-humanismo: seria isso a utopia-pesadelo de que fala Norbert Elias? 2030 será a data da grande virada, triunfo da inteligência artificial superior à inteligência biológica. Para os humanistas, a primeira e a mais evidente das consequências de tais experiências consistiria no apagamento da memória: isso dá a entender que o espírito, diz o filósofo Francis Wolff, é uma caixa na qual se podem pôr e da qual se podem tirar representações à nossa vontade: “Ora, nossa memória não é uma memória de computador. Ela vive na primeira pessoa, ela é mobilizada hic e nunc, nas relações que teço com outrem. Ela não está em mim. É uma relação contextualizada com o mundo que construo em função do que vivo no presente”.

O novo espírito utópico pretende, pois, percorrer os dois mundos da utopia: o mundo do humanismo e o mundo dos pós-humanos.

Seja qual for o mundo, fiquemos com o humanista Alain: é preciso que as coisas tragam nelas mesmas sonhos, porque é no presente que imaginamos – “quero sonhar de novo de olhos abertos. Assim, desfaço e refaço… Aquele que fixou seu gesto não sonha mais… Enfim, despertar no sonho e não do sonho”.

Adauto Novaes

Adauto Novaes, ex-jornalista e professor, foi, durante vinte anos, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Artes. Atualmente é diretor da Artepensamento.