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Canal que mudou Panamá faz 100 anos

Canal que mudou Panamá faz 100 anos

Uma das obras mais ousadas do século 20 completa seu centenário em expansão e sob interesse crescente de americanos e chineses

Murillo Ferrari

enviado especial

CIDADE DO PANAMÁ – Considerado fundamental no início do século passado, quando, sob o comando de Theodore Roosevelt, os EUA iniciaram a expansão de sua capacidade militar e de sua política externa, o Canal do Panamá – cuja inauguração completou cem anos na sexta-feira – divide a opinião de especialistas em relação ao seu papel estratégico na região hoje em dia.

Enquanto alguns acreditam que apenas o aspecto econômico – em uma disputa entre EUA e, principalmente, China – continua em jogo, incluindo nessa análise a expansão do canal prevista para ser inaugurada entre o fim do próximo ano e o começo de 2016, outros ressaltam que a rivalidade crescente entre os dois países no campo financeiro também se aplica aos interesses políticos.

“Os EUA nunca diriam diretamente que estão em competição com a China pelo Canal do Panamá porque esse é um tema de grande impacto na infraestrutura do país”, afirmou ao Estado Johanna Mendelson Forman, analista da consultoria Stimson Center.

Para a especialista, o fato de projeções indicarem que, em 15 anos, Pequim pode se tornar a principal parceira comercial da América Latina cria implicações profundas entre os interesses dos dois países para a região. “Claro que os EUA estão observando os movimentos dos chineses, caso eles decidam investir em pontos estratégicos – o que os EUA não teriam como evitar. O Brasil também está observando os chineses, afinal, ambos fazem parte do Brics (grupo composto ainda por Rússia, Índia e África do Sul).”

A ideia de utilizar uma ligação entre oceanos como exemplo de sua capacidade de liderança e influência é contestada por quem vê o canal como uma necessidade majoritariamente econômica. “O canal era muito mais importante estrategicamente no século passado, quando o poderio marítimo de uma nação era mais importante do que hoje”, explicou Michael Hogan, do Centro para Deliberações Democráticas da Universidade da Pensilvânia e autor do livro The Panama Canal in American Politics (“O Canal do Panamá na Política Americana”, em tradução livre).

Para o analista, o canal hoje – ou mesmo após a sua expansão – continuará mais interessante para países com ampla atividade comercial. “Como a China compete com os EUA em muitos aspectos econômicos, Pequim se interessa em oportunidades em que possa ganhar terreno.”

A opção mais provável para os chineses concorrerem com os americanos na região é a construção de um canal similar na Nicarágua – obra de valor estimado em US$ 40 bilhões e cuja concessão de 50 anos, renováveis pelo mesmo período, foi emitida recentemente para o magnata chinês das telecomunicações Wang Jing.

Alejandro Bolivar/EFE

Hub. Com a ampliação do Canal do Panamá, o presidente panamenho, Juan Carlos Varela, que assumiu o cargo em julho, pretende transformar o país em um centro logístico mundial e já pensa em um projeto para a construção de um quarto conjunto de eclusas para enfrentar a disputa representada pela possível construção do canal nicaraguense.

“O Panamá está se preparando para aumentar sua relevância como centro internacional de comércio”, afirmou o presidente à agência Associated Press durante as festividades do centenário. “Nosso país estudará outros componentes – como portos, estradas e aeroportos – que precisam ser construídos para tirar proveito de nossa posição geográfica.”

Doenças mataram mais de 30 mil pessoas durante obra

Documentário narra como um dos maiores projetos de engenharia da história formou identidade panamenha

CIDADE DO PANAMÁ – No dia 15 de agosto de 1914, quando o capitão John Constatine completou a primeira travessia do Canal do Panamá com a embarcação Ancon, um sonho centenário – encurtar a distância entre os Oceanos Atlântico e Pacífico – tomou forma.

A obra, considerada uma das mais importantes do século 20, porém, foi cercada de dificuldades, imprevistos e mortes – estima-se que mais de 30 mil pessoas morreram, em razão da febre amarela e da malária.

Arquivo/AP

Iniciada em 1881 pela França, sob comando do conde Ferdinand de Lesseps, que anos antes havia construído o Canal de Suez, no Egito, a obra foi abandonada anos mais tarde, principalmente em razão da corrupção e de problemas de planejamento. Em 1904, os EUA retomaram o projeto, inaugurando-o dez anos depois.

“O canal praticamente define o Panamá. Existimos como nação, como país, em razão do canal”, afirmou escritor Ovidio Díaz Espino no documentário Panamá: o País que Uniu o Mundo, que estreou no History Channel na sexta-feira.

A produção, que mescla depoimentos e reconstituição histórica, relata os bastidores da construção do canal, explicou o argentino Carlos Cusco, responsável pela produção do documentário. “Não falamos sobre a tecnologia, mas sobre as pessoas que tornaram possível a construção do canal.” O programa será reprisado no dia 30, às 20 horas, e no dia 31, às 7h30 e às 14 horas.

O repórter viajou a convite do History Channel

Ajudar os yazidis é difícil, mas não impossível (Oriente Médio – Isil)

Ajudar os yazidis é difícil, mas não impossível

ROBERT FARLEY, THE WASHINGTON POST – O Estado de S.Paulo

09 Agosto 2014 | 02h 01

Os mesmos fatores que dificultam ataque ao Isil nas montanhas prejudicam envio de comida aos refugiados

A difícil situação dos refugiados yazidis nas montanhas de Sinjar, cercados pelas forças do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (Isil, na sigla em inglês) e a cada dia com menos alimentos e água, voltou a chamar a atenção internacional para a guerra no Iraque. Algumas pessoas sugeriram que EUA ou a ONU acelerem o envio de provisões por paraquedas para os refugiados famintos e desidratados. Mas a situação é mais complicada do que parece.

O primeiro e maior problema é obter autorização do governo iraquiano e do governo da região semiautônoma curda. O que não seria um problema, salvo que os governos não querem admitir que não estão realizando o trabalho humanitário básico. O governo iraquiano precisa criar uma estrutura básica para contar com uma cooperação, como permitir o acesso a bases aéreas, adotar medidas de prevenção para o pessoal estrangeiro e dar autorização para esmagar as defesas aéreas do Isil.

Mas os problemas não terminam aí. Os refugiados não controlam nenhum campo de aviação adequado à aterrissagem de um avião de transporte pesado. E transportar o material sem contar uma pista de aterrissagem é difícil. Os mesmos fatores que dificultam um ataque às guerrilhas nas montanhas impedem o envio de suprimentos aos refugiados. Nesse terreno montanhoso, as altitudes variam radicalmente a cada cem metros, o que se torna uma luta para os refugiados encontrarem as provisões a eles destinadas, a menos que o lançamento seja muito preciso. O que requer uma boa tecnologia e uma grande habilidade dos pilotos.

O lançamento de provisões de alimentos deve ser feito com muito cuidado pois, do contrário, os militantes podem acabar se apoderando da comida e da água. O que não é um desastre, a não ser que os grupos em busca dos pacotes de provisões acabem se deparando com militantes armados em busca da mesma coisa.

O Pentágono trabalhou arduamente na década passada para desenvolver um sistema que permita o lançamento preciso por helicóptero de grandes volumes de material, mas o sistema continua direcionado ao envio de suprimentos para soldados experientes, não para civis não treinados para isso.

Além disso, a entrega de alimentos, especialmente água – por paraquedas, exige tempo e recursos. Uma análise feita de improviso indicou que seriam necessários 24 aviões de transporte C-130 fazendo viagens de ida e volta diariamente para o envio de água para os refugiados. A capacidade iraquiana é limitada pela falta de aviões disponíveis e a necessidade de consagrar os recursos para área onde ocorram combates diretos. O Iraque tem um grupo de aviões C-130 e de aeronaves menores Antonov An-32, mas não bastam para atender às necessidades de uma população tão grande, mesmo sob as melhores circunstâncias. Assim, qualquer operação exigiria o envio de aviões de transporte americanos, turcos ou da Otan.

Há também o problema dos aviões americanos e iraquianos operarem com segurança. O Isil já demonstrou que tem capacidade para derrubar um avião.

O envio de suprimentos para os yazidis não é impossível, mas exige muito trabalho e coordenação, o que não se tem observado na resposta da região ao Isil. A melhor maneira de resolver a crise será provavelmente uma ofensiva terrestre curda que consiga abrir um corredor para encaminhar as provisões. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Ações ilusórias (Oriente Médio – Isil)

Ações ilusórias

SOMINI, SENGUPTA, THE NEW YORK TIMES – O Estado de S.Paulo

09 Agosto 2014 | 02h 02

Não há consenso internacional para conter o Isil

Seus combatentes se apoderaram de campos de petróleo, controlaram recursos hídricos e confiscaram artilharia pesada que os EUA forneceram a um governo amigo no Iraque. No fim de julho, eles decapitaram soldados sírios, expuseram suas cabeças e publicaram fotos delas online. Nos últimos cinco dias, eles arrastaram o Exército libanês para a luta pelo controle de uma cidade fronteiriça, sua primeira incursão territorial no Líbano.

O grupo, Estado Islâmico no Iraque e no Levante (Isil, na sigla em inglês), atraiu combatentes de todo o globo. A cooperação internacional para conter a ascensão dessa organização até agora se mostrou ilusória, apesar de sua influência ter ferido os interesses de potências mundiais e complicado as rivalidades regionais entre Arábia Saudita, Turquia e Irã. Entre suas últimas vítimas estão membros de um grupo minoritário iraquiano, os yazidis, que vinham se escondendo nas montanhas.

Michael Stephens, um vice-diretor do grupo de análise de defesa do Royal United Services Institute, organização de pesquisa com sede em Londres, acredita que o fato de EUA e Europa apoiarem entusiasticamente o governo iraquiano dominado por xiitas é problemático porque envia a mensagem errada a seus aliados do Golfo Pérsico dominados por sunitas.

Apoiar o governo do presidente sírio, Bashar Assad, no combate que faz a seus adversários do Isil é impossível, em razão dos esforços para depô-lo nos três últimos anos. Em junho, a Casa Branca anunciou US$ 500 milhões de ajuda adicional aos rebeldes moderados na Síria, enquanto advertia para os perigos de armas caírem em mãos erradas. No fim do ano passado, ela enviou armas ao Iraque.

Analistas da região dizem que até recentemente o governo Assad não havia dedicado muita energia ou poder de fogo para combater o Isil, sobretudo porque os dois desejam afastar outros grupos rebeldes. Agora, depois de terem se poupado, as forças do Isil e de Assad estão se confrontando cada vez mais.

“Com Irã e Arábia Saudita envolvidos numa guerra por procuração na Síria, a Arábia Saudita competindo com Catar e Turquia por influência em toda a região, e os curdos – eles próprios não muito unidos – se inclinando cada vez mais para a independência, não é realista esperar o surgimento de uma estratégia coerente para enfrentar o Isil”, disse Noah Bonsey, especialista em Síria no International Crisis Group.

“Os EUA têm a influência e a capacidade para construir parcerias capazes de reverter os ganhos do Isil, mas parece não ter a visão e a vontade necessárias.” O Isil não ameaça somente o Iraque e a Síria. Ele atraiu combatentes de países tão distantes como Índia e China, Bélgica e Grã-Bretanha.

Especialistas da ONU disseram que combatentes de grupos jihadistas rivais, mesmo da Frente Al-Nusra, uma afiliada da Al-Qaeda, desertaram para se unir ao Isil porque ele possui mais dinheiro e armas. Analistas militares dizem que é extremamente difícil neutralizar um grupo que agora se autofinancia – ele controla vários campos de petróleo no Iraque e na Síria – e está pesadamente armado com armas capturadas de bases militares iraquianas e sírias. Autoridades americanas disseram que o Iraque não tem uma força militar capaz de recuperar o território perdido para o Isil.

Os EUA têm muita razão de se preocupar, disse Julia McQuaid, uma analista no Centro de Análises Navais em Arlington, Virgínia, e não só porque recrutas ocidentais do grupo podem voltar para casa e causar distúrbios.

O Isil propõe a ideia de um “califado” sunita que, por definição, põe em risco as fronteiras de Estados-nação. “Embora deva haver poucos temores de algum movimento jihadista conseguir estabelecer um califado global sob a sua bandeira, o modelo do Isil pode ter implicações profundas no ambiente de segurança de outros países”, disse McQuaid. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

É JORNALISTA

Ver para não crer (Ebola)

Ver para não crer

Clair MacDougall – ZANGO TOWN / LIBÉRIA

02 Agosto 2014 | 16h 00

O maior obstáculo no combate ao Ebola é muitas pessoas não acreditarem que o vírus exista, preferindo atribuir mortes a água envenenada por vingança, maldição ou injeções assassinas

JONATHAN PAYE-LAYLEH/AP
Quadro assustador. No pior surto da história, mais de 700 mortes na África Ocidental

Neste pequeno povoado agrícola, mulheres e homens idosos e calejados sentam-se do lado de fora de suas casas de adobe e telhado de sapé em meio a crianças espalhadas em volta. O lugar é calmo e desolado. Mas num dia de meados de julho, na maior casa do povoado, duas mulheres choravam com a informação da morte de um jovem num povoado vizinho pelo vírus Ebola.

O vírus letal também já havia chegado aqui. Segundo o vice-ministro da Saúde da Libéria, Tolbert Nyenswah, 19 moradores de Zango Town morreram. Outros acusaram a presença do vírus em testes e foram tratados em “centros de administração de casos” tocados pela Samaritan’s Purse, uma ONG cristã internacional. Mas muitos moradores de Zango Town duvidam do que lhes disseram. Alguns nem sequer acreditam que o Ebola atingiu sua comunidade. Eles imaginam que as mortes foram causadas por outra coisa, ou que sanitaristas estejam matando pacientes.

Algumas semanas atrás, pessoas do povoado atacaram uma equipe de saúde que veio pulverizar a área com cloro, uma maneira barata e eficaz de matar o Ebola, e tentaram incendiar seu carro. Restou no meio do povoado um solitário balde de plástico cor de rosa contendo água clorada para as pessoas lavarem as mãos. Ninguém chega perto.

Henry Jallah, um agricultor de 23 anos, perdeu recentemente cinco membros da família para a doença: a mãe, um tio, uma tia e dois filhos. Ele fala da perda sem emoção e diz que Deus está lhe dizendo para continuar tocando a vida. “Não há esperança”, conforma-se. “Tanta gente está morrendo.”

Jallah diz que acatou a recomendação do Ministério da Saúde da Libéria para ficar longe dos mortos e doentes do povoado, mas hesita em acreditar que tenha sido realmente o Ebola o dizimador de sua família. Ele tem outras explicações: água envenenada por vingança num conflito de terra, algum tipo de maldição. A família não levou a tia a um centro de tratamento porque “dizem que quando você vai lá e tem a doença eles injetam você e matam”.

A Libéria e suas vizinhas, Guiné e Serra Leoa, já foram devastadas pela guerra. Hoje enfrentam uma nova e mortal crise: o Ebola, um vírus que ataca órgãos e causa febre, diarreia, sangramento e, na maioria dos casos, morte, alastrou-se pelos países e ameaça ampliar seu alcance. O vírus, que não pode ser curado, mas pode ser tratado, ainda pode matar até 90% dos que o contraem. A taxa geral de mortalidade nos três países da África Ocidental é de aproximadamente 60%. Cerca de 1.200 casos foram identificados, a maioria num surto; perto de 670 pessoas já morreram.

No dia 25 de julho um caso foi confirmado na Nigéria, país mais populoso da África. Um liberiano desmaiou no aeroporto de Lagos e posteriormente morreu. A Libéria, onde 7 dos 15 condados identificaram casos do vírus, anunciou que está restringindo reuniões públicas, fechando muitos postos de fronteira e abrindo centros de testes em outros (uma razão porque especialistas em saúde pública acreditam que este surto tenha atingido simultaneamente três países e seus centros urbanos, pela primeira vez na história, são as fronteiras porosas. Com frequência, membros da mesma família que vivem em lados diferentes da fronteira cruzam-na para se visitar, enquanto outras pessoas o fazem para transações comerciais).

O diretor de operações da organização Médicos sem Fronteiras (MSF), Bart Janssens, pediu uma mobilização maciça de recursos por governos regionais e agências humanitárias para combater o surto. Mas não está claro de onde efetivamente virão esses recursos. A Libéria, que identificou 290 casos e registrou 137 mortes, criou uma força-tarefa para lidar com a situação; um plano nacional de operações será divulgado nos próximos dias. O plano requererá de US$ 10 milhões a US$ 15 milhões para ser implementado e o governo ainda precisa obter os recursos, segundo o vice-ministro Nyenswah.

Mas o principal obstáculo na luta contra a disseminação do Ebola na Libéria parece ser a negação generalizada de sua existência e o medo em comunidades que desconfiam profundamente do sistema de assistência sanitária do governo e de instituições internacionais. Isso inclui áreas remotas relativamente intocadas pela administração, ou às quais ela só chega sob a forma de força e opressão. Mas Monróvia, a capital, não está imune à descrença: no efervescente Mercado Duala, 92% das pessoas disseram não acreditar que o Ebola exista, segundo pesquisa recente com mil entrevistados conduzida pela Samaritan’s Purse. Aliás, muitos na capital viram inicialmente o vírus como um golpe criado pelo governo para “comer dinheiro” de doadores humanitários. Além disso, os moradores com frequência enxergam os fatos da vida, incluindo as tragédias, pelo prisma da religião e superstição. Há um ditado liberiano que diz “nada é por nada” – significando que tudo acontece por alguma razão. Mesmo o Ebola.

No fim de semana passado, na comunidade Popalahun, distrito de Kolahun, Libéria, moradores bloquearam uma estrada e atacaram sanitaristas que viajavam num jipe, quebrando o para-brisa do veículo e furando os pneus com facão. Quatro liberianos que faziam parte da equipe, empregados pela Samaritan’s Purse e com a tarefa de recolher o corpo de uma pessoa que havia morrido de Ebola, fugiram para o mato para se proteger. Um foi agredido a martelo, mas conseguiu escapar. Kendell Kauffeldt, diretor da Samaritan1s Purse no país, diz que a organização foi obrigada a interromper a missão – isto é, recolher pacientes e cadáveres de cidades e povoados. “Simplesmente não podemos correr o risco”, argumenta.

Ataques semelhantes ocorreram na Guiné e em Serra Leoa. Em Freetown, capital de Serra Leoa, milhares marcharam para um centro de tratamento de Ebola no último fim de semana depois de acusações de uma antiga enfermeira de que o vírus mortal foi inventado para esconder “rituais canibalísticos” na instalação, disse um chefe de polícia regional à Reuters. Um médico local também contou à agência noticiosa que alguns trabalhadores da saúde não estavam comparecendo ao serviço por “suspeitas equivocadas de membros da comunidade”. A MSF também teve de abandonar uma clínica na Guiné rural após ataques em abril.

Na Libéria, famílias em Monróvia brigaram com funcionários de hospitais para recuperar corpos de membros da família que haviam morrido (tocar nos mortos é extremamente perigoso em razão do contágio do vírus). Num dos incidentes, pessoas apedrejaram o Hospital Redemption em New Kru Town, comunidade favelada densamente povoada, depois de testes no cadáver de uma mulher que sangrou até morrer após o parto acusarem a presença do vírus Ebola. Também em New Kru Town, moradores pararam a construção de um pavilhão de isolamento que limitaria os riscos de exposição dos sanitaristas ao Ebola.

A Samaritan’s Purse interrompeu a expansão de seu centro de administração de casos em Monróvia em razão de protestos da comunidade local. Essa unidade, a principal da Libéria, conta hoje com 20 leitos que estão totalmente ocupados com casos suspeitos e confirmados. A ONG pretende acrescentar mais 60 leitos, mas precisa que o governo negocie com a comunidade antes de fazê-lo. “Não temos mais espaço”, diz Kauffeldt. “Quando o próximo paciente chegar não haverá onde colocá-lo, e o pior será se esse paciente voltar para a comunidade.” E acrescenta: “Se continuamos tendo 90% de negação da existência do Ebola na zona mais perigosa de Monróvia é porque a comunicação não está funcionando”.

Embora não tenha havido violência, Kauffeldft está preocupado com a segurança. Os portões que cercam o centro de administração de casos são operados por policiais desarmados. A Polícia Nacional liberiana está desenvolvendo uma estratégia para lidar com incidentes violentos em hospitais e para acompanhar o transporte de corpos de vítimas do Ebola para sepultamento – o que deve ser feito por especialistas, com o uso de sacos mortuários e spray químico. A inovação, porém, contraria o costume arraigado em que membros da família são os responsáveis por lavar e preparar o cadáver para ser enterrado.

Para agravar os problemas, mesmo entre os que aceitam que o Ebola existe muitos temem os hospitais, por acreditarem que as instituições dão um atendimento precário – preocupação que já havia bem antes da crise atual. Na verdade, o sistema de saúde da Libéria melhorou desde que a guerra civil dilacerou a nação. Por exemplo, houve uma redução na taxa de mortalidade de crianças com menos de 5 anos. Entretanto, o maior hospital de Monróvia, o John Fitzgerald Kennedy Memorial Medical Center, ou JFK, é apelidado de “Just for Killing” ( só para matar) pelos moradores locais, porque as pessoas vão lá com doenças tratáveis, como a malária, e mesmo assim morrem. Houve relatos de que, recentemente, sanitaristas do JFK se recusaram a tratar suspeitos de terem contraído o Ebola, chegando a abandonar a sala de emergência da unidade. (O pavilhão para Ebola do hospital foi fechado depois disso. O JFK era “perigoso”, segundo Kauffeldt, porque os procedimentos adequados para lidar com a doença não eram seguidos.)

As infecções por Ebola em médicos e profissionais da saúde, na Libéria e em outros países, também suscitaram temores de contato com os sistemas de saúde. Um respeitado médico liberiano, Samuel Brisbane, que estava trabalhando como consultor da unidade de medicina interna no JKF, morreu e foi enterrado no fim de semana passado. Outro médico liberiano foi infectado e está sob tratamento. Dois americanos que trabalhavam na contenção do surto, um deles, médico, foram diagnosticados como portadores do vírus.

Sanitaristas liberianos se queixaram da falta de proteção e equipamentos, dizendo que limita sua capacidade de fazer o trabalho e permanecer saudáveis. Mas Nestor Ndayimirije, da Organização Mundial de Saúde (OMS), diz que parte do problema é o uso impróprio do equipamento. Ele exemplifica dizendo que os sanitaristas gastaram muito rapidamente um suprimento de 8 mil trajes protetores, usados para lidar com indivíduos infectados ou potencialmente infectados, porque os vestiam quando não era necessário.

“Alguns não têm o equipamento de proteção pessoal, mas isso não pode explicar o número de infecções de sanitaristas”, diz Ndayimirije, que trabalhou em graves surtos de Ebola na África no fim dos anos 1990 e início dos 2000. Há atualmente 37 casos suspeitos entre sanitaristas na Libéria, e já se registraram 16 mortes de profissionais.

O Ministério da Saúde diz que está fazendo um esforço para treinar melhor centenas de sanitaristas, incluindo de condados onde ainda não foram registrados casos do vírus. Mas isso será difícil porque o plano operacional do país contra o surto ainda não foi concluído e financiado.

A despeito de violência, ceticismo e outros obstáculos, no distrito de Foya, onde Zango Town está localizada, o governo e a Samaritan’s Purse obtiveram relativo sucesso no trabalho de aumentar a consciência e prover tratamento. No dia 17, o ministro da Saúde da Libéria, Walter Gwenigale, e a principal autoridade médica do país, Bernice Dahn, promoveram uma reunião de emergência em Zango Town para alertar os moradores sobre o vírus. Algumas pessoas foram ouvi-los, ainda que hesitantemente.

Há ainda um longo caminho a percorrer. Luana Korvah, médica de saúde mental que trabalha para o governo, estima que a vasta maioria dos moradores de Zango Town e da área circundante não acredita na existência da doença. E no caso do centro de administração de casos de Ebola em Foya, onde tendas brancas são separadas por malhas laranja, traumatizados sobreviventes do vírus admitem que temem voltar para suas comunidades por não saberem como serão recebidos.

Harrison Sakela é um. Ele foi o primeiro sobrevivente conhecido do Ebola no país, contraído quando sua mãe adoeceu após ir ao enterro de um parente em Serra Leoa. Sua mãe, pai e irmão morreram, e também sua sobrinha de 19 anos e a filha dessa, que morreram no centro de tratamento enquanto ele estava lá.

“As pessoas acreditam que se você vem aqui eles lhe darão uma injeção e o colocarão num saco mortuário”, diz Sakela, reproduzindo as palavras de Henry Jallah em Zango Town. “É isso que causa o medo, e as pessoas estão morrendo no mato.”

Saah Tamba também está preocupado. Um jovem plantador de arroz que contraiu o Ebola após cuidar do tio em Serra Leoa, Tamba voltará para sua comunidade após dois meses no centro. Seu corpo está fragilizado, a testa vincada, o rosto tenso. Em sua língua nativa kissi, ele diz que não tem certeza se a comunidade, a apenas dez quilômetros do centro, o aceitará.

Randy Schoepp, que trabalha no Instituto de Pesquisas Médicas de Doenças Contagiosas do Exército americano e está ajudando a monitorar um centro de testes nos arredores de Monróvia, diz que “a primeira linha de defesa” no surto é a comunicação. “Há relatos de pessoas escondendo parentes e amigos doentes; esses morrem e as pessoas que os estão escondendo ficam infectadas e morrem, e assim por diante”, explica. É um ciclo que precisa ser interrompido.

Ndayimirije, da OMS, diz que conquistar a confiança em comunidades, incluindo de idosos e líderes tradicionais, é a chave para combater o Ebola. Sem confiança, o medo e a suspeita não conseguirão ser separados de suas raízes profundas – e o trabalho de ajudar uma região a vencer uma doença devastadora pode se arrastar indefinidamente. Fazer as populações compreenderem a doença em termos científicos é urgente, diz Ndayimirije. “Precisamos ir de porta em porta.” / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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Clair MacDougall cobre a África Ocidental de Monróvia, Libéria. Colabora com Newsweek, The Daily Beast, The Washington Times e outros. Escreveu este artigo para Foreign Policy

Entre o contágio e a pedrada (Ebola)

Entre o contágio e a pedrada

Mônica Manir – O Estado de S. Paulo

02 Agosto 2014 | 16h 00

Trabalhando em condições precárias, médicos são dos mais expostos à contaminação – quando não viram alvo do desespero dos infectados

SAMARITAN
Baixa. Infectado com o vírus, dr. Brantly pediu para ser isolado

“Eu temo pela minha vida porque gosto muito dela.” Foi o que disse, fora do protocolo, o médico Sheik Umar Khan, um mês antes de perder o que tanto apreciava. Na terça-feira ele se somava a outros médicos e profissionais de saúde que sucumbiram ao pior surto do vírus Ebola. Em uma semana de internação, Sheik apresentou o que já sabia de cor: febre alta, vômito e diarreia com sangue, insuficiência hepática, hemorragia interna. Até então havia salvo mais de cem pacientes da doença. Sua terra natal, Mama Leoa, o reverenciou como herói nacional.

Um herói, no entanto, não faz verão nessa crise. Em Kenema, terceira maior cidade de Serra Leoa, enfermeiros entraram em greve depois que três colegas morreram da infecção. Na Libéria, também alcançada pelo surto, um veterano médico do país, Samuel Brisbane, morreu em três semanas. E a preocupação agora se volta para o americano Kent Brantly, que buscou a área de isolamento na organização de caridade que dirigia, a Samaritan’s Purse, depois que se percebeu infectado. O boletim de sexta-feira falava em estado grave com piora durante a noite, mas tentava atenuar o drama com uma bolsa de sangue doada por um menino de 14 anos que Brantly ajudara a curar. No final, pedia que rezassem por ele e por uma voluntária, também americana. E garantia que a segurança do staff é prioridade da instituição. Por esse motivo, a Samaritan’s Purse providenciava o retorno dos profissionais de saúde aos respectivos países de origem, tudo com extrema discrição, respeitando sua privacidade.

“Nós ficamos muito sujeitos à doença porque somos os primeiros a ser procurados quando surgem os sintomas”, explicou Sheik Umar Khan no mesmo dia em que valorizava seu bem maior. “Mesmo com todo o aparato de proteção, estamos sempre em risco.” Sheik parecia jogar muito bem na defesa. A doença é transmitida por secreções do paciente – saliva, suor, sangue, sêmen, lágrimas -, e ele não costumava atender sem a parafernália completa – macacão, máscara, luvas e botas.

Mesmo para o único especialista em febres hemorrágicas virais de Serra Leoa, talvez algo tenha escapado. Benjamin Neuman, virologista da Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Reading, no Reino Unido, lembra que seus estudos de laboratório contam com o luxo do planejamento e da relativa tranquilidade. “É diferente no campo”, diz ele ao Aliás. “A velocidade é essencial para conter o vírus de uma epidemia, e as precauções que tomo na minha bancada poderiam ser contraproducentes nos postos de atendimento.”

Outra ponto vulnerável nessa história: os médicos podem estar lidando com uma mutação. O vírus leva o nome de um rio da República Democrática do Congo (antigo Zaire), país onde foi descoberto em 1976 por um grupo de estudiosos belgas. Daí seu tipo mais tradicional levar o nome de EBO-Z (Ebola-Zaire). Mas todas as vezes em que o Ebola reapareceu sua sequência genômica tinha algo de diferente, e não se descarta que esta possa ser uma versão mais grave.

Seja qual tipo for, ainda não existe vacina para a doença. Em parceria, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos e a agência de alimentos e medicamentos (FDA) conseguiram resultados positivos numa proposta testada em macacos (chimpanzés e gorilas também podem carregar a doença, assim como morcegos frutívoros, antílopes e porcos-espinhos). Mas a aplicação em seres humanos leva seu tempo, e enquanto isso os médicos lidam com paliativos e com a ira da população local. “Há rumores, que se espalham inclusive via internet, de que retiramos e nos apoderamos dos órgãos das pessoas mortas nos centros de isolamento”, diz Mariano Lugli, da Médicos sem Fronteiras. Não raro os doutores são agredidos, algo que o infectologista brasileiro Ciro de Quadros, recém-falecido, sentiu na pele. Falando de sua campanha contra a varíola na Etiópia, Ciro destacou a falta de acolhimento: “Eles atiravam pedras, soltavam os cachorros em cima de você”. Literalmente. Sua solução para erradicar a doença no país e diminuir essa zona de atrito foi contratar enfermeiras e outros profissionais de saúde da região.

O psicanalista e escritor Sérgio Telles tem sua teoria para tamanha explosão de agressividade: “A população cria um responsável palpável por aquela situação, um bode expiatório a ser eliminado, e nele canaliza toda a insuportável vivência de fragilidade, desamparo e medo da morte”. Mais tarde, tomada pela culpa, acaba idealizando aqueles que atacara ou destruíra. “O medo da doença e da morte apenas está mais exacerbado no surto”, continua Telles. De forma menos gritante, ele é o responsável pelo pavor que muitos têm de médicos e hospitais, ainda e sempre confundidos com aquilo que combatem.

Mas, mesmo na aparente assepsia do laboratório, os infectologistas não estão imunes à contaminação letal, tampouco às maledicências. Em 2009, o americano Malcolm Casadaban morreu depois de entrar em contato com uma versão muito fraca – e até então inofensiva aos humanos – da bactéria da peste bubônica, que dizimou um terço da população europeia no século 14. Casadaban estudava a bactéria como parte de um projeto de pesquisa sobre bioterrorismo encomendado pelo governo dos EUA. A necropsia do seu corpo revelou a presença de hemocromatose, doença genética que leva ao acúmulo de ferro no organismo. Casadaban não sabia que era portador do distúrbio. O ferro abriu o apetite da Yersinia pestis, a mensageira da peste, que voltou a ser letal naquele indivíduo tão mineralizado. A lição para os cientistas: redobrar os cuidados quando lidam com material potencialmente infeccioso, agindo como se estivessem vivendo o pior cenário do mundo.

Já no campo das picuinhas, circula uma história envolvendo o brasileiro Henrique da Rocha Lima, primeiro a isolar a bactéria causadora do tifo, em 1916. Para homenagear os pesquisadores que fizeram o primeiro corpo a corpo com a doença (os zoólogos Howard Ricketts e Stanislaus von Prowazek, que aliás foram vítimas desse estupor), ele deu ao micro-organismo o nome de Rickettsia prowazekii. Em contrapartida, Rocha Lima não recebeu o devido crédito, pelo menos quando deveria, ao mapear alterações no volume de fígado e baço em portadores de febre amarela. “Era um sul-americano jovem (tinha 32 anos), presumivelmente ainda pouco experiente, que procurava derrubar um dogma ao criar uma síndrome anatomopatológica característica de uma doença tão bem estudada”, registrou o imunologista Otto Bier. Apenas em 1929 a academia admite a “lesão Rocha Lima”, reconhecida até hoje. Rocha Lima comentaria anos mais tarde como não se contaminou com o desprezo e a falta de reconhecimento: “Acertei, porém, em subir calmamente a uma altura de tranquilidade e indiferença que me permite hoje ver a humanidade mover-se e entrechocar-se com a mesma equanimidade e o mesmo alheamento com que observo a movimentação e o entrechoque de micro-organismos no campo do microscópio. Tenho apenas cuidado de evitar que me contaminem os dedos. Porque assim quase perdi a vida levando a uma mucosa riquétsias do tifo exantemático que havia alegremente contemplado ao microscópio em preparado a fresco”.

Gaza: uma distopia moderna.

Gaza: uma distopia moderna

RANIA, AL-ABDULLAH, GLOBAL VIEWPOINT – O Estado de S.Paulo

26 Julho 2014 | 02h 01

Ficar em silêncio diante da injustiça faz a comunidade global não ser melhor que a multidão na arena de ‘Jogos Vorazes’

Distopia: substantivo, um lugar imaginário onde pessoas são infelizes e geralmente têm medo, porque não são tratadas com justiça; um futuro desagradável em que pessoas são desumanizadas; um mundo de pesadelo caracterizado por miséria humana, sordidez, opressão, doença e superpopulação.

Tipicamente, as sociedades distópicas são retratadas em romances como Jogos Vorazes e Divergente. Eles nos dão vislumbres de sociedades distorcidas onde justiça e liberdade são suprimidas, a privação é um modo de vida e vidas são dispensáveis. Eles nos pedem para imaginar uma sociedade onde as pessoas são levadas ao limite do que podem suportar – e, com frequência, mortas se não puderem. Mas é apenas ficção, certo? Depois da última página, termina. Errado.

A narrativa distópica mais perturbadora de nosso tempo não é uma ficção. É um lugar real com pessoas reais. É Gaza. O lugar mais trágico da Terra, onde as pessoas lutam contra a pobreza, a violência, o preconceito, a intimidação, a fome, a falta de assistência médica, uma vigilância constante, insegurança, privação de artigos de primeira necessidade, desesperança, educação precária, isolamento forçado, desrespeito aos direitos humanos e a dor de perder entes queridos.

Os mais de 1,8 milhão de habitantes de Gaza lutam contra tudo isso, todos os dias. Diante de uma comunidade global, em geral, indiferente. Mulheres, crianças, bebês, idosos. Os que vivem com deficiências. O inocente. Eles lutam contra todas essas injustiças todos os dias porque, nos últimos oito anos, existiram – não “viveram” – sob um cerco imposto pelos israelenses.

Um palestino de 17 anos detido numa prisão israelense descreveu a miséria cotidiana dos moradores de Gaza: “É como ser uma sombra de seu próprio corpo, presa ao chão, incapaz de se desprender dele. Você se vê ali deitado, mas não pode insuflar vida na sombra.” Simples assim: uma morte lenta.

A menos que se tenha vivido dia após dia em meio ao cerco sufocante e os massacres, é impossível compreender o desespero vivido pelos moradores de Gaza. Não se esqueça: 70% da população de Gaza são refugiados. Não posso querer, apenas com palavras, fazer jus a seus sofrimentos. Tudo que posso oferecer são instantâneos de sua existência.

Imagine ser aprisionado numa lasca de terra árida, com meros 40 quilômetros de comprimento e entre 5 e 11 quilômetros de largura. Imagine que seu filho precise de assistência médica urgente, que as clínicas de Gaza não têm como oferecer. Dia após dia, você espera no posto de fronteira sem saber se esse é o dia em que você e seu filho terão permissão de cruzar para buscar a assistência de que precisam.

Imagine criar filhos sem acesso a água, com um sistema de esgoto que vaza e eletricidade apenas durante a metade do dia. Ou depender dos pacotes de comida da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês) para manter viva sua família.

Agora, imagine, o povo de Gaza convive também com bombardeios diários. Mais de um quarto dos mortos nas duas últimas semanas eram crianças: 161. Outras centenas ficaram mutiladas e órfãs. Dezenas de milhares de famílias abaladas e desabrigadas. Imagine estar sentado à mesa de jantar com sua família e ter minutos para deixar o lugar antes de sua casa ser bombardeada. Mísseis a arrasam.

Fotos insubstituíveis de seus avós, perdidas. Fotos de seus filhos tiradas quando eles eram jovens, destruídas. Documentos de identificação, perdidos. Sua história pessoal, apagada. Ou imagine tentar salvar vidas num hospital quase sem suprimentos médicos usando apenas instrumentos enferrujados. Seus sapatos grudam no sangue espalhado pelo chão. E, depois, o hospital é bombardeado.

Gaza está traumatizada. Tudo o que os moradores de lá querem é o que cada um de nós quer. A oportunidade de uma vida normal, com dignidade e segurança, e construir um futuro em que seus filhos possam se desenvolver, sonhar e realizar seu potencial. Eles deveriam ter esse direito.

Primeiro, é preciso haver um cessar-fogo. Mas essa não é a única solução. Não podemos permitir uma volta ao status quo infernal: a batalha diária pela sobrevivência. E preciso haver, em seguida, um esforço global dedicado a devolver vida às sombras de Gaza. Infraestrutura, consertada. Laços comerciais, restaurados. Escolas, equipadas. Hospitais, renovados. As cicatrizes precisam sarar. A esperança precisa florescer. Mas isso não ocorrerá sem o esforço coletivo da comunidade global.

Ela precisa insistir numa vida digna para o povo de Gaza. Cada um de nós pode fazer um pouco. Defender. Despertar consciências. Rejeitar a violência. Doar à UNRWA.

Ficar em silêncio diante dessa injustiça interminável faz a comunidade global não ser melhor que a multidão mastigando amendoim na arena de Jogos Vorazes, se espantando, suspirando, balançando as cabeças a cada novo julgamento e a cada nova morte.

Será que vamos nos retrair e ficar como espectadores enquanto os alicerces perversos de uma distopia moderna são assentados diante de nossos olhos? Ou nossa humanidade comum nos unirá e compelirá a agir para ajudar a salvar o povo de Gaza? Ao salvá-los, salvamos a nós mesmos. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

É RAINHA DA JORDÂNIA

Novo banco para uma nova ordem. (BRICS)

Novo banco para uma nova ordem

PARAG, KHANNA, GLOBAL VIEWPOINT – O Estado de S.Paulo

27 Julho 2014 | 02h 02

Recém-criado banco dos Brics reflete as diferenças filosóficas com relação às prioridades do Banco Mundial nas últimas décadas

Os últimos anos têm sido difíceis para as economias dos Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O Brasil reduziu drasticamente suas previsões de crescimento em razão da redução do ritmo do “superciclo” das commodities, os problemas políticos da Rússia fizeram despencar suas reservas, a moeda da Índia sofreu um grave revés quando o patamar de suas dívidas subiu acima do apetite do mercado e a África do Sul sofre com a corrupção e a agitação da classe trabalhadora. Somente a China desafiou as expectativas de uma explosão iminente da bolha e segue apresentando um crescimento consistente.

Não surpreende que Jim O’Neill, ex-executivo do Goldman Sachs, que cunhou o termo Brics, tenha afirmado no ano passado que, se tivesse de fazer tudo de novo, não criaria o acrônimo, mas se referiria apenas a “C”, de China.

As cúpulas dos Brics, que se realizam anualmente desde 2009, exibiram mais estilo do que substância – até agora. Principalmente porque o Brasil surpreendeu o mundo quando nenhum dos seus estádios desmoronou durante a Copa do Mundo e porque conseguiu fazer com que sua primeira cúpula abandonasse a retórica e passasse para a ação.

O Novo Banco de Desenvolvimento, anunciado em Fortaleza há duas semanas, marca o lançamento de uma plataforma de empréstimos coletiva administrada exclusivamente pelos países dos Brics. Com um capital autorizado de US$ 100 bilhões, a instituição poderá conceder empréstimos por até US$ 34 bilhões ao ano. O foco na infraestrutura é lógico: dois terços das nações do mundo são construções pós-coloniais, fisicamente caindo aos pedaços – principalmente a Índia – e precisam desesperadamente de um impulso nos investimentos no longo prazo justamente em infraestrutura.

Os orçamentos nacionais cobrem, quando muito, US$ 1 trilhão dos estimados US$ 3 trilhões anuais imprescindíveis para os gastos com infraestrutura, apenas para manter os atuais níveis de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Não é um eufemismo afirmar que esse é um novo tipo de banco para uma nova ordem mundial. Pela primeira vez na história, os gastos com infraestrutura superam significativamente os da defesa. Cidades e edifícios, estradas e ferrovias, oleodutos e portos, pontes e túneis, torres de telecomunicações e cabos para a internet – e todos os outros tipos de ativos – exigem US$ 2 trilhões ao ano em gastos globais, um pouco acima do US$ 1,7 trilhão destinados à defesa – mas o fosso está se ampliando. O financiamento da infraestrutura é hoje um instrumento de geopolítica mais até do que as alianças militares.

Ressentimento. O Novo Banco de Desenvolvimento, portanto, não apenas nasceu do ressentimento com os principais doadores do Banco Mundial e do FMI obstinadamente apegados às suas participações com direito a voto, dotadas de um peso extraordinário. Mas também reflete uma diferença em termos de filosofia no que concerne à necessidade de priorizar a infraestrutura física em relação a outras prioridades (como educação, saúde, direitos da mulher, entre outros) para as quais o Banco Mundial se voltou nas últimas décadas. De um ponto de vista holístico, todos esses investimentos são cruciais para o bem-estar e a prosperidade das nações equitativamente distribuídos, mas nada cria mais empregos e, literalmente, permite a construção de um Estado, do que a infraestrutura.

O período que se sucedeu à crise financeira provou que os estímulos fiscais, particularmente os gastos com a formação bruta de capital fixo (um considerável componente da infraestrutura), produzem muito mais benefícios substanciais para o crescimento do PIB do que o estímulo monetário em si. Os Estados Unidos têm dedicado mais atenção a esse último aspecto, ao passo que a China cuidou de ambos.

Objetivos. A pressão dos Brics influenciou indubitavelmente a mudança do foco internacional nessa direção. Na cúpula do G-20 do ano passado, na Rússia, foi anunciada uma Global Infrastructure Facility (GIF) para estimular um aumento dos financiamentos destinados à criação de empregos e a investimentos para a promoção da produtividade, bem como um Project Preparation Fund (PPF) para ajudar os países a estruturarem projetos de maneira a se tornarem mais atraentes para os mercados de capital. Mas embora o G-20 seja adequado como mecanismo de revisão pelos pares (e de pressão dos pares), não se destina ao cumprimento de metas.

O Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics pode, portanto, cumprir os ambiciosos objetivos do G-20, mas também deverá servir de ponte para canalizar a liquidez global e o excesso de poupança por aproximadamente US$ 75 trilhões (nas mãos dos fundos de pensão, fundos soberanos, patrimônios familiares, entre outros) voltados para projetos essenciais de infraestrutura.

Para tanto, teria de associar-se à Multilateral Investment Guarantee Agency (Agência Multilateral de Garantia de Investimentos, Miga, na sigla em inglês) e a outras instituições financeiras e não financeiras que podem tornar investimentos de alto risco mais atraentes mediante acordos de seguro, compensação contra a inflação e outros instrumentos.

Na busca de rendimentos satisfatórios, a comunidade global de investimentos provavelmente vai aderir aos projetos do banco dos Brics, enquanto essas medidas forem tomadas com o objetivo de garantir bons retornos.

A meta da geração de investimentos imediatos, vultosos e de longo prazo em infraestrutura é inegavelmente muito válida – na realidade, tão importante que não deveria depender apenas dos Brics.

De fato, é preciso ter em mente que não existe um consenso total entre os próprios Brics, o que poderia comprometer a missão do Novo Banco de Desenvolvimento nos próximos anos. Não é segredo que a própria decisão a respeito de quem sediará o banco foi uma das várias questões que quase impediu o anúncio.

Na última hora, foi acertado que China e Índia ficariam com o banco no primeiro ano – provavelmente sediado em Xangai, com um diretor indiano – seguido por uma direção rotativa de Rússia, Brasil e África do Sul.

É importante notar que a China também criará um Banco Asiático de Infraestrutura que efetivamente concorrerá com o Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB, na sigla em inglês) sediado em Manila – e não convidará a Índia a participar. A China está claramente expandindo seus sistemas de empréstimos em plataformas múltiplas e sabe perfeitamente que o financiamento da infraestrutura não é apenas um instrumento para uso coletivo dos Brics, mas também interno. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

É AUTOR DE BEST-SELLERS E

PESQUISADOR PRINCIPAL DA NEW AMERICA FOUNDATION

Sistêmico e explosivo (Saúde – Brasil)

Ex-ministro diagnostica os problemas da Saúde no Brasil e diz que se algo não for feito depressa o setor ainda tem espaço para piorar

Sistêmico e explosivo

Mônica Manir

26 Julho 2014 | 16h 00

Felipe Rau/Estadão
Santa Casa. Fechamento do PS escancarou crise do maior hospital filantrópico da América Latina

Faltavam seringas, cateteres, luvas, esparadrapo. Faltavam leitos regulares. Faltavam R$ 50 milhões. Na terça-feira, ao fechar seu pronto-socorro, a Santa Casa de São Paulo escancarou suas mazelas. Deixou de atender as 1.500 pessoas que costuma atender por dia e provocou, como efeito colateral, um jogo de empurra entre os governos federal e do Estado. Um acusou o outro de falta de repasse, e ambos transferiram para o maior hospital filantrópico da América Latina a responsabilidade pela má gestão dos recursos.

No Rio de Janeiro, onde mora, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão lembrou que o problema é sistêmico e explosivo. Se algo não for feito com rapidez, diz ele, a saúde brasileira consegue piorar. Temporão enumera três questões estruturais graves, entre elas o clássico problema de financiamento. Mas também questiona quem foi para a rua pedir hospitais padrão Fifa (“O problema do Brasil não é hospital”), quem desmerece o SUS (“Existe um vetor pró-mercado”) e quem acha que o Mais Médicos é a única plataforma de discussão neste período pré-eleitoral (“Saúde pública é bem mais ampla que medicina”).

Hoje filiado ao PSB e diretor executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), entidade intergovernamental criada em 2011 que busca fortalecer os sistemas de saúde do continente, ele diz sentir falta de clinicar. Mas a vida o levou para a administração, sobre a qual adverte, vacinado: “Não tem cargo mais espinhoso no Brasil que o de ministro da Saúde”.

Depois do fechamento do pronto-socorro da Santa Casa de São Paulo, falou-se que vivemos uma crise sem precedentes na saúde brasileira. É exceção ou regra?

Não vejo nada de conjuntural no fechamento do pronto-socorro da Santa Casa e creio que, se medidas não forem tomadas com rapidez, teremos uma situação ainda mais grave em todo o sistema. Há um consenso gigantesco de que temos um problema de financiamento na saúde brasileira. Apenas 47% do gasto em saúde no Brasil é público; 53% é privado, das famílias e das empresas. Em todos os sistemas de saúde de caráter universal que o Brasil persegue – canadense, inglês, francês, italiano, português, espanhol -, a participação do gasto público no total supera os 80%. Esse é o primeiro ponto: o governo brasileiro gasta pouco com a saúde. Todas as iniciativas, inclusive o Saúde + 10, que conseguiu mais de 2 milhões de assinaturas para que conquistássemos 10% das receitas brutas do orçamento da União, infelizmente pararam no Congresso. Aí acontece isto: serviço fechando, crise. Famílias são penalizadas, principalmente as mais pobres, por causa do preço dos medicamentos ou de despesas emergenciais, especialmente quando não se pode esperar por um tratamento. Tem uma questão de equidade por trás disso extremamente importante.

Se é consenso, por que não avança?

Porque é uma questão política e ideológica. Há um processo crônico de desgaste da imagem do SUS como valor da sociedade brasileira. Na abertura da Olimpíada de Londres, em 2012, um dos carros-chefe que os ingleses apresentaram ao mundo foi seu sistema de saúde. Surpreendente, né? Um país desenvolvido, rico, com tradição e história apresentar na cerimônia de abertura, com orgulho, o seu SUS. Nós não temos isso no Brasil. Aqui é meio enviesado. Alguns aspectos públicos são elogiados, mas com certo vetor pró-mercado, num processo lento e gradual de americanização. Se olharmos as grandes capitais brasileiras, 50% a 60% das pessoas têm cobertura de saúde oferecida por planos e seguros. Não à toa, quando as famílias melhoram seu padrão de renda, muitas colocam como conquistas a casa própria, o carro na garagem e um plano de saúde. Enquanto isso não for superado…

Quem foi à rua pedir mais saúde está com essa mudança de valor engatilhada ou, no fundo, quer um plano particular melhor?

Existe uma avaliação de que essa demanda das ruas cobrava do Estado uma política de mais qualidade, mas eu diria que ainda é uma coisa dúbia. O melhor exemplo de dubiedade é “queremos hospitais padrão Fifa”. O problema do Brasil não é hospital. Temos de radicalizar a estruturação em nível nacional de uma rede de atenção básica. Na Inglaterra, todo cidadão sabe quem é seu médico. Diante de qualquer problema de saúde, ele tem de se dirigir ao serviço no qual trabalha aquele médico responsável pela saúde dele.

Um médico generalista.

Exatamente. Ele não tem acesso a nenhum outro nível do sistema sem que esse médico generalista diga “ok, você precisa fazer esses exames” ou “você precisa ser visto por um cardiologista”. Não falo de emergências, de quadros agudos. Falo do dia a dia do sistema. Os médicos estão saindo da faculdade como especialistas, o que é um absurdo. E essa é uma decisão política. Para universalizar o programa da saúde da família com qualidade, por exemplo, é preciso dinheiro. Esse é o segundo ponto estrutural.

Qual seria o terceiro?

Gestão. De nada adianta um modelo organizado, estruturado e racional, voltado às necessidades fundamentais das famílias, nem um aporte de recursos se não tivermos como executar e gastar esses recursos com eficiência, transparência, qualidade. Quando eu era ministro, perdi essa batalha – perdi entre aspas, porque as coisas avançaram também – de modelos estatais mais ágeis, funcionais, com profissionalização da gestão, metas avaliadoras e funcionários contratados pela CLT. Estados e municípios avançaram nisso, mas a falta de uma lei federal levou a uma pulverização de modelos, precarização do trabalho, terceirização, falsas cooperativas.

Como estamos em termos de tecnologia? Consumimos mais do que deveríamos?

Estruturalmente o sistema de saúde brasileiro é uma aproximação lenta, mas perigosa do modelo da hiperespecialização, privatização, medicalização e consumo desordenado de tecnologias.

Esse consumo encarece a medicina?

Quando falo que precisamos de uma rede básica de qualidade, não falo de uma medicina barata. Organizar uma rede nacional com generalistas, com referência e contrarreferência, apoio e diagnóstico é caro. E existe um processo de incorporação tecnológica na saúde mundial que pressiona o custo. Claro que certas tecnologias trazem benefícios para pacientes, prolongam a vida, mas nem todas devem ser incorporadas. Por isso os países estabelecem sistemas de regulação na introdução delas. O Brasil criou no Ministério da Saúde, lei sancionada em 2011, a Comissão de Incorporação de Tecnologias do SUS. Nada é incorporado – medicamento, reagente para diagnóstico, equipamentos para diagnóstico por imagem – sem que essa comissão desenvolva, em parceria com universidades, estudo que comprove que aquela tecnologia vá ser positiva para o sistema.

O Hospital Santa Catarina anunciou o fechamento de sua maternidade. Entre as justificativas está o envelhecimento da população, que demanda mais leitos hospitalares. É uma mudança sábia? 

Estamos passando por um processo importante de transição demográfica. Nossa taxa de fecundidade está abaixo de 2. Em 2030, a projeção é que o Brasil terá mais pessoas acima de 60 anos do que entre 0 e 19 anos. Serão mais casos de hipertensão, diabetes, doença cardiovascular, doença cerebrovascular, câncer. No passado, a predominância era das doenças infectocontagiosas. Hoje é de doenças crônicas. Isso impacta o sistema de saúde. Chamo atenção para uma coisa bem brasileira, que piora o quadro: a violência. Temos 50 mil homicídios por ano e um volume absurdo de acidentes de trânsito, que criam um fator adicional a esse perfil crônico.

O senhor mencionou as doenças epidemiológicas. Na contramão do que vem acontecendo em outros países da América Latina, a aids aumentou no Brasil. O que está acontecendo?

Por causa dos coquetéis, a mortalidade diminuiu e tivemos um número grande de pacientes com uma qualidade de vida boa ou razoável, o que é uma conquista do SUS. O Brasil é dos poucos países a oferecer tratamento contra a aids para todos. Mas isso criou a sensação, especialmente para as novas gerações, de que a aids deixou de ser problema grave, quando sabemos que o uso continuado desses medicamentos traz uma série de efeitos colaterais e limitações na qualidade de vida. Então a prevenção é muito importante, mas houve uma perda de iniciativas mais contundentes do ponto de vista da educação nesse sentido. Um exemplo: lancei, quando ministro, o projeto de colocar máquinas nas escolas secundárias para que os jovens pudessem retirar os preservativos dali. Não foi pra frente, o que lamento muito. Essa é uma questão de saúde pública fundamental, que não pode ser contaminada por questões religiosas ou filosóficas.

Na semana passada, um vigia que agonizava em frente a um hospital em São Paulo não foi atendido pela equipe de saúde e ainda se apuram os responsáveis pela morte dele. Um dos enfermeiros disse não ter se aproximado porque temia uma farsa. Falta humanização na formação dos profissionais de saúde? 

É inquietante que uma pessoa pedindo ajuda em frente de uma unidade de saúde seja largada sofrendo sem que fosse acolhida na unidade, seja ela pública ou privada. A medicina tem um princípio básico que é o de cuidar, de minorar o sofrimento, de garantir a vida. Fico pensando que tipo de sociedade estamos construindo, esse temor em se aproximar e acolher essa pessoa… Do ponto de vista prático e objetivo, foi um crime de omissão de socorro que tem de ser apurado com rigor, os responsáveis precisam ser punidos. É inadmissível acontecer isso numa sociedade como a nossa e numa grande cidade, em frente de um hospital. Não estamos falando de um lugar ermo. É muito grave.

Depois do fechamento do pronto-socorro da Santa Casa, houve uma troca de acusações entre o governo federal e estadual com clara partidarização do debate, como tem acontecido com todos os debates importantes neste período pré-eleitoral. Ano de eleição faz mal à saúde do povo?

Quando você olha o sistema de saúde brasileiro, não há como omitir que a responsabilidade é compartilhada entre os governos federal, estadual e municipal. Claro que existem papéis específicos, mas no limite esses três entes são solidários, e deveriam ser solidários nos problemas também. O pior dos mundos é que se use esse tipo de evento, que no limite afeta a qualidade de vida da população, para picuinhas ou para ver quem fatura mais eleitoralmente. Se o ano eleitoral faz mal à saúde do povo? Deveria ser o contrário, um momento de profunda reflexão e de debates de propostas que aperfeiçoem o sistema.

Mas, quando se fala em programas, a pergunta clássica é o que o próximo presidente fará do Mais Médicos. 

Focar o debate do futuro da saúde brasileira no Mais Médicos é de uma pobreza atroz. Acho que o programa chamou atenção para a necessidade de fortalecer a atenção básica, para a necessidade de rever a padronização e a qualidade de formação dos médicos. Há uma polêmica se foi organizado da melhor maneira, se não foi, uma contaminação político-ideológica vasta em torno do programa. Agora, tentar limitar as grandes demandas da saúde brasileira ao Mais Médicos, faça-me o favor! O Mais Médicos é uma gota no oceano e não vai, por si só, reverter coisa nenhuma. É como se a grande questão da saúde pública brasileira fosse o médico. Isso expressa uma indigência cultural e uma visão pequena: confundir saúde pública com medicina. Saúde pública é muito mais ampla que medicina. Não se limita ao trabalho médico ou de oferta de assistência médica. Isso é uma visão pobre, limitadora e que não vai resolver nada.

*

José Gomes Temporão é médico sanitarista e ex-ministro da Saúde

Entre a Besta e o coiote (imigração)

Entre a Besta e o coiote

Lúcia Guimarães – O Estado de S. Paulo

26 Julho 2014 | 16h 00

Nos 50 anos dos direitos civis nos EUA, crianças estrangeiras nada têm a comemorar

JORGE DAN LOPEZ/REUTERS
Fora daqui. Na terça, 13 meninos foram deportados de Phoenix para a Guatemala

Este mês foi marcado, nos Estados Unidos, por comemorações do cinquentenário do Ato dos Direitos Civis, assinado no dia 2 de julho de 1964 pelo presidente Lyndon B. Johnson. O Ato, além de banir a segregação racial nas escolas, no trabalho e em locais públicos, atribuiu ao governo a tarefa de garantir o direito constitucional ao voto que era constantemente negado aos negros americanos. É uma das peças de legislação que melhor definiu a democracia americana no século 20.

Há quem olhe para o drama que se desenrola na fronteira americana com crianças e adolescentes imigrantes vindos em sua maioria de três países, Honduras, Guatemala e El Salvador, e para a explosão de rancor anti-imigrante e pergunte: este é o país que cruzou aquela fronteira moral há 50 anos?

O menino que dorme no chão de um abrigo provisório no Texas nem desconfia do número de palavras que os adultos usam para definir sua pessoa. Ilegal, invasor, refugiado ou sinal de crise humanitária. O último epíteto foi escolhido pelo presidente Barack Obama para qualificar a chegada dos 57 mil menores centro-americanos desde outubro. As palavras, como sabemos, além de ter peso simbólico têm seu preço eleitoral e ramificações jurídicas. Por isso, o termo “refugiado” tem sido cuidadosamente expurgado dos pronunciamentos.

Mas o menino é, por definição, um refugiado, dizem organizações de direitos humanos. Se o menino foge da violência de gangues e do crime organizado, de traficantes cujos clientes são os consumidores americanos, por que ele não merece o mesmo tratamento de uma criança que foge de um conflito distante? Em 2012, 13.625 menores sem documentos chegaram aos EUA. A previsão para este ano é de mais de 70 mil.

Na sexta-feira, Obama se reuniu com os presidentes de El Salvador, Guatemala e Honduras para discutir a crise. O recado foi: temos compaixão, mas as crianças sem documentos que não apresentarem uma reivindicação legítima de asilo serão mandadas de volta. Obama pediu aos três chefes de Estado para cooperar e estancar o fluxo de crianças desacompanhadas para os EUA. E, preocupado com as inevitáveis acusações da comunidade latina que voltou nele em peso em 2008 e 2012, disse: “Expliquei a meus colegas presidentes que admitimos um número de refugiados sob um critério restrito. Status de refugiado não é conferido apenas por necessidade econômica ou porque a família vive numa vizinhança ruim ou na pobreza”. Obama acenou com a possibilidade de asilo para famílias sob critérios humanitários, mas deixou claro que o número de refugiados seria limitado e é melhor as famílias fazerem o pedido em seus países de origem.

Os países centro-americanos do chamado “Triângulo Norte” preferem um gordo cheque para, como disse o presidente Otto Pérez Molina, da Guatemala, “atacar a raiz do problema”. Se os EUA gastam mais de US$ 20 bilhões na segurança da fronteira, ele argumenta, por que não investir uma quantia bem mais modesta nos países exportadores de imigrantes ilegais? A sugestão foi recebida com sarcasmo antes mesmo de Molina pisar na Casa Branca. A Câmara, controlada pelos republicanos, se recusa a abrir a torneira da ajuda externa.

O fato é que as crianças continuam a fugir, muitas entregues por suas famílias a coiotes – os contrabandistas de ilegais que cobram quantias como US$ 5 mil ou US$ 10 mil para transportá-las, sem o menor compromisso de plantá-las em segurança do outro lado da fronteira. Não se conhece o número de mortos na jornada, que inclui uma viagem aterradora de até 2.400 quilômetros no “La Bestia”, trem de carga que parte de Arriaga, no Estado mexicano de Chiapas, e faz paradas em cidades próximas à fronteira. Aventura que inclui morte por queda dos vagões em movimento, assalto por bandidos armados e sequestro por gangues de narcotraficantes para usar as crianças como mulas para levar drogas.

O paralelo entre o país pré-Ato de Direitos Civis de 1964 e aquele cujo primeiro presidente negro quer verba para deportar as crianças com maior rapidez foi feito com eloquência pelo professor William Jelani Cobb, diretor do African Studies Institute da Universidade de Connecticut. Em artigo na revista New Yorker, Cobb argumenta que a luta pelo Ato não era apenas por igualdade, mas pela cidadania plena de uma parcela da população tratada como americanos de segunda classe. E aponta para o fato de que mais de 16% da força de trabalho ativa nos EUA é composta de estrangeiros e esse número incluiu parte dos 11 milhões de imigrantes sem documentos.

Nos Hamptons, paraíso de verão dos ricos nova-iorquinos onde o aluguel de uma casa por três meses pode custar US$ 150 mil, a limpeza das piscinas, o corte da grama e o cultivo dos jardins é trabalho comum para centro-americanos sem documentos. Conheço um guatemalteco que não vê a família há oito anos e trabalha dez horas por dia de segunda a sábado, embelezando jardins de escritores, empresários e profissionais que se consideram politicamente progressistas. Ele mal sabe escrever o nome, e quando descobriu um furto numa casa não chamou a polícia, com medo de ser deportado. Sua filha de 15 anos não vai tentar cruzar a fronteira, mas já enfrentou assaltos e ele vive de olho no celular. O professor Jelani Cobb tem razão. Esse jardineiro não tem direitos civis para comemorar.