Um elemento polêmico

Um elemento polêmico

O emprego do mercúrio ao longo da história humana é o foco da coluna de setembro de Jean Remy Guimarães. Embora menos usado hoje, sua extração, uso e descarte durante milênios deixaram marcas profundas em nosso planeta.

Por: Jean Remy Davée Guimarães

Publicado em 19/09/2014 | Atualizado em 19/09/2014

Um elemento polêmico

Mercúrio encerrado em recipiente de vidro. Entre suas muitas propriedades, o mercúrio metálico pode dissolver outros metais à temperatura ambiente, formando amálgamas. (foto: Wikimedia Commons/ Dnn87 – CC BY 3.0)

O que é, o que é: é metálico, líquido, volátil e tóxico, está em todo lugar e é impossível livrar-se dele, já que ele só muda de forma e de lugar. Pensou mercado financeiro? Acertou. Mas estou falando do mercúrio – o elemento –, único metal líquido à temperatura ambiente. Por isso mesmo, os romanos o chamavam de hydrargirum, a prata líquida.

O primeiro uso do mercúrio pelos humanos foi talvez o mais nobre: pequenas porções de sulfeto de mercúrio, um mineral insolúvel e de bela cor vermelha, misturadas a um pouco de água, produziram um dos pigmentos usados nas muitas pinturas rupestres que nos legaram os primeiros hominídeos.

Bem mais tarde, os humanos descobriram que o mercúrio era volátil e podia ser extraído dos minérios em que se encontrava. Para isso, bastava aquecer o minério e condensar os vapores resultantes, produzindo mercúrio metálico.

Uma mineração exaustiva e perigosa já era levada a cabo bem antes da era cristã para ajudar no beneficiamento dos produtos de outras minerações exaustivas e perigosas, como a de ouro e prata

Na mesma época, descobriram que o vapor de mercúrio era tóxico. Por isso, os romanos usavam apenas mão de obra escrava para extrair mercúrio na mina de Almadén, na atual Espanha. Devido aos vapores tóxicos, a expectativa de vida dos trabalhadores dessas minas era menor que a dos remadores acorrentados às galeras romanas.

Mas por que dedicar-se a uma mineração tão exaustiva e perigosa? Porque o mercúrio metálico (outra descoberta precoce) tem entre suas muitas e surpreendentes propriedades a de dissolver outros metais à temperatura ambiente, formando amálgamas.

Portanto, uma mineração exaustiva e perigosa já era levada a cabo bem antes da era cristã para ajudar no beneficiamento dos produtos de outras minerações exaustivas e perigosas, como a de ouro e prata, com os quais o mercúrio forma amálgamas.

Pensou nos garimpos de ouro da Amazônia? Eu também. Eles usam o mesmo princípio, conhecido há alguns milhares de anos. Simples, barato e rápido, é um sucesso global. Nos anos 1980, os garimpos de ouro da Amazônia brasileira chegaram a produzir 100 toneladas anuais de ouro.

Garimpo de ouro em Serra Pelada
Garimpo de ouro em Serra Pelada, no Pará, na década de 1980. Bem antes da era cristã, já se usava mercúrio para beneficiar produtos de outras minerações, como as de ouro e prata. (foto: Rudi Böhm/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

Hoje a maior parte da produção nacional é oriunda de minas industriais e não mais artesanais. Os garimpos chineses produzem cerca de 20 vezes mais ouro que os do Brasil, todas as fontes somadas.

No reino das futilidades

Os impactos ambientais da mineração de mercúrio, ouro e prata são inúmeros. Entre eles, desmatamento, consumo abundante de água e produção de montanhas de rejeitos, assoreamento e contaminação de corpos d’agua, bioacumulação e biomagnificacão de mercúrio em cadeias alimentares.

Tudo isso para obter ouro e prata, que não se comem e só têm valor monetário devido a seu baixo teor na crosta terrestre – e simbólico, pela associação com o Sol e a Lua, respectivamente.

Isso me remete às circum-navegações do século 16, em que expedições arriscadas eram enviadas a mares nunca antes navegados para trazer corantes como o pau-brasil, temperos, sedas… Enfim, coisas que também não são essenciais. Isso se admitirmos que o luxo não é essencial, certo? Parece haver controvérsias…

Nenhuma aplicação industrial do mercúrio teve efeitos ambientais tão devastadores e duráveis quanto seu uso na indústria do papel

Mas como alguns leitores desta coluna sabem, a mesma é avessa a controvérsias. Falemos, pois, de usos mais práticos e menos questionáveis do mercúrio. Sim, sim, em termômetros e barômetros, em lâmpadas e baterias, como fungicida em tintas e como catalisador em várias reações químicas, entre tantos outros.

Mas nenhuma aplicação industrial do mercúrio teve efeitos ambientais tão devastadores e duráveis quanto seu uso na indústria do papel. Para produzir papel branco, usa-se soda na fabricação da polpa de celulose e cloro no seu branqueamento.

A produção de cloro e soda envolve um processo eletrolítico em que um dos eletrodos é constituído por toneladas de mercúrio metálico. Não é de surpreender que as fábricas de papel e as de cloro-soda andassem juntas e que ambas se estabelecessem em áreas com farto suprimento de madeira.

Assim, nos anos 1950 e 1960, os países escandinavos e a América do Norte, com suas vastas planícies pouco habitadas e repletas de pinheiros indefesos, tornaram-se os campeões na produção de papel. Resultado?

Alguns empregos, saldo na balança comercial por algum tempo e hoje, centenas de milhares de lagos tão contaminados por mercúrio que você pode pescar à vontade, mas deve, de preferência, soltar o peixe após fazer uma selfie com ele. A não ser que queira arriscar perder uns pontos de Q.I., devido aos efeitos neurotóxicos não reversíveis do metilmercúrio.

Oficina de beneficiamento de papel
Oficina de beneficiamento e clareamento de papel em ilustração do século 19. Nenhuma aplicação industrial do mercúrio teve efeitos ambientais tão devastadores quanto seu uso na indústria do papel. (imagem: Biblioteca de la Facultad de Derecho y Ciencias del Trabajo/ Universidad de Sevilla/ Flickr – CC BY 2.0)

Esses efeitos se tornaram conhecidos já na década de 1950, em razão do conhecido acidente de Minamata, no Japão, em que centenas de pessoas faleceram e outras centenas padeceram de graves malformações congênitas devido à contaminação de uma baía pesqueira com metilmercúrio oriundo de uma fábrica de plásticos.

A fábrica usava mercúrio como catalisador, e este sofria reações químicas no processo que geravam metilmercúrio, muito mais tóxico que o mercúrio inorgânico. Mais tarde descobriu-se que o mesmo metilmercúrio se forma naturalmente no ambiente aquático por bactérias. A propósito, o estudo desse processo tem sido a principal atividade de pesquisa deste colunista nos últimos 20 anos.

Mas ora, direis, tudo isso para produzir papel branco? Por que diabos o papel tem que ser branco? No tempo em que não havia correção visual nem luz elétrica, um papel mais branco de fato ajudava quem escrevia à luz de vela. Mas hoje perdeu a maior parte do sentido.

Um papel não branqueado é, portanto, ecologicamente mais correto, pois usa menos produtos tóxicos e passa por menos etapas na sua fabricação. Pelo mesmo motivo, devia também ser mais barato. Ganha uma jujuba orgânica, sem corantes e produzida de forma socioambientalmente correta, quem explicar por que o papel não branqueado é mais caro que o branco.

Pensando bem, fabricar papel pode ser uma necessidade, mas fabricar papel branco é só mais um luxo. Caramba, não saímos do lugar, continuamos no reino das futilidades.

Primavera silenciosa continua

Ok, então vamos falar de agricultura. Ninguém vai argumentar que produzir comida é futilidade, certo? Arrá! Pois saiba que o mercúrio teve muitas aplicações na agricultura. A principal foi como fungicida organomercurial, usado no tratamento de sementes, o que as tingia de vermelho. As embalagens informavam claramente que o produto só se destinava ao plantio, não devendo ser consumido. Ai, ai ai!

Quem tem fome tem pressa e quem é analfabeto tem mais fome que os outros. Portanto, você pode imaginar o resultado: centenas de mortes no Iraque e na Guatemala, entre outros países, devido ao ‘uso indevido’ das sementes tratadas na fabricação de pães, papinhas e outros alimentos.

Como resultado de tanta extração, uso e descarte de mercúrio, estima-se que a camada biologicamente produtiva do mar contenha hoje quase o triplo de mercúrio que havia alguns séculos atrás

Mas o efeito não parou por aí. Humanos analfabetos e pássaros têm algo em comum: não leem rótulos em inglês. O uso das sementes tratadas com organomercuriais provocou a mesma primavera silenciosa que o DDT, já que os pássaros, como sempre, consumiam as sementes que podiam, vermelhas ou não, e morriam. Como analfabetos e letrados sabem, pássaros mortos não cantam.

Ok, já não usamos mais mercúrio em cosméticos, sementes e brinquedos. Reduzimos também nosso uso de cloro. Que legal! Banimos o DDT. Show! Mas a primavera continua silenciosa, graças aos demais pesticidas que ainda não banimos.

Como resultado de tanta extração, uso e descarte de mercúrio, estima-se que a camada biologicamente produtiva do mar contenha hoje quase o triplo de mercúrio que havia alguns séculos atrás. Nada mal para uma espécie que começou usando mercúrio para pintar cavernas com o dedo.

O fato é que, vestindo pele de urso ou algodão egípcio de 700 fios, continuamos sendo uma sociedade de risco, que coloca novos compostos em uso a cada dia, sem testar seus efeitos sanitários e ambientais de forma decente, embora tenhamos atualmente fartura de tecnologia para isso. Mas sabe como é… Dá trabalho e custa caro. Então, deixemos como está para ver como é que fica.

Além de gostar de luxo e futilidade, não resistimos a um joguinho de azar!

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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