Archive for 2 de julho de 2014

A democracia para além do Estado de direito?

A democracia para além do Estado de direito?

O desafio de pensar a democracia em tudo aquilo que se encontra à margem do Estado de direito

Vladimir Safatle

Mas o Estado democrático excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito. Experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente.” Quem diz essas frases não é um adepto da esquerda revolucionária que estaria à procura do melhor momento para solapar as bases do Estado de direito. Essas são frases de Claude Lefort em A invenção democrática: um livro largamente dedicado, ao contrário, à crítica das sociedades burocráticas no antigo Leste Europeu. Nessas frases, estão sintetizadas algumas reflexões maiores sobre a relação intrincada entre justiça e direito. Relação que ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo aquilo que acontecesse à margem do Estado de direito fosse necessariamente ilegal e profundamente animado de premissas antidemocráticas. Pois talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar qual o sentido desta democracia que “excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito”. Um ponto de excesso que se mostrou, ao longo da história contemporânea, um motor fundamental das dinâmicas do político.

Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como ponto de excesso em relação ao Estado de direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora do Estado de direito só poderia ter parte com o mais claro totalitarismo. Quem está fora do Estado de direito parece se colocar em uma posição soberana, posição destes que poderiam não se submeter à lei, modificar continuamente a lei ao bel-prazer dos casuísmos e circunstâncias. Vemos apenas dois candidatos ocupando essa posição: o criminoso que viola abertamente a lei que garante a segurança do Estado de direito ou (e aí as coisas começam a se complicar) o legislador que afirma que, em situações de exceção, como em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada vez mais complicado distinguir estado de guerra e estado de paz) ou de crise (mas sabemos hoje como há sempre uma crise grave à espreita), certos dispositivos legais podem ser suspensos.

No entanto, é possível que exista um terceiro caso de excesso em relação ao Estado de direito, um excesso muito bem posto por Jacques Derrida por meio da seguinte afirmação, que encontramos em Força de lei: “Quero logo reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo”. Pode, pois, a justiça não apenas exceder o direito, mas manter com ele uma relação tão estranha que pareça se colocar em uma indiferença soberana? Gostaria de insistir que essa possibilidade, longe de solapar e fragilizar a democracia, é o que a funda e a fortalece. Pois essa possibilidade é um outro nome para aquilo que normalmente chamamos de “política”.

Estados ilegais

Conhecemos situações nas quais a justiça se dissocia do direito. Trata-se de situações nas quais nos deparamos com um “Estado ilegal”. Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.

Vale a pena insistir nessa questão. Podemos dizer que um dos princípios maiores que constituem a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Não creio ser necessário aqui fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito à violência contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Ocidente, é bem provável que sua consciência nasça da Reforma Protestante com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica. Ela está presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma: “que todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres”. Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo 4 da Constituição alemã como “direito à resistência” (Recht zum Widerstreit). Encontramos um direito similar enunciado em várias Constituições de estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse, Carolina do Norte, entre outros). De maneira sintomática, isso demonstra como aqueles que procuram transformar os que participaram da luta armada contra o regime militar brasileiro em “terroristas” colocam-se aquém de um conceito substancial de democracia.

Lembremos ainda que não devemos compreender a ideia fundamental desse direito à resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo etc.). Na verdade, em seu interior encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio da soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por “soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força. Que a democracia deva, por meio desse problema, confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben chama de “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica”, ou, ainda, com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito”, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas nem por isso ilegal, eis algo claro. Pois devemos insistir aqui que, mesmo em situações em que não estamos diante de um “Estado ilegal”, o problema da dissociação entre justiça e direito se coloca.

Uma sociedade que tem medo da política

Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, em que leis de várias matizes convivem formando um conjunto profundamente instável e inseguro? Por exemplo, nossa Constituição de 1988 não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir? Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o direito objeto possível de uma desconstrução que visa expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças na determinação do direito termina necessariamente da maneira mais justa?

Por essas razões, a democracia admite o caráter “desconstrutível” do direito, e ela o admite por meio do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos o Estado de direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça.

No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, certamente nossa situação de exclusão social seria significativamente pior.  Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao direito. Uma sociedade que tem medo desses momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que atualmente temos e aos modos que atualmente temos para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível – levando em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação).

No fundo, esta é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituí-la pela polícia. Pois a violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da população ou em golpes de Estado. Antes, ela é a força da urgência de exigências de justiça.É claro que devemos compreender melhor o que devemos chamar aqui de “justiça”. Não se trata de alguma forma de princípio regulador posto. Certamente, ela está mais ligada à experiência material do bloqueio de reconhecimento e do sofrimento social em relação às imposições produzidas pelas condições socioeconômicas e disciplinares de nossas formas de vida.

Notemos como a suspensão da lei em nome do sofrimento social e do bloqueio de reconhecimento é qualitativamente distinta da suspensão da lei feita por práticas totalitárias. Pois a suspensão política é a maneira de dizer que o direito se enfraquece quando não é mais capaz de reconhecer suas próprias limitações. E isso é feito a partir de uma outra espécie de “direito” (as aspas são de rigor) cujo fundamento, como dizia Lefort, “não tem figura”, é marcado por um “excesso face a toda formulação efetivada”, o que significa que sua formulação contém a exigência de sua reformulação. É só assumindo esse excesso que a democracia pode existir.

Poupador chinês resiste a se tornar consumidor

Poupador chinês resiste a se tornar consumidor

Wendy Wu; Denise Chrispim Marin – especial para o ‘Estado’

31 Maio 2014 | 17h 03

Sem Previdência nem serviços públicos de saúde e educação de qualidade, chineses estão condicionados a poupar em vez de gastar

PEQUIM – Poupar é mais do que uma palavra-chave para o chinês regular. É questão de sobrevivência. Sem o cofrinho, não há acesso a saúde e educação de qualidade nem a aposentadoria ou pensão. O país onde o nível de poupança manteve-se acima de 46% do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos dez anos não foi capaz de prover sua população de 1,367 bilhão de habitantes com serviços públicos razoáveis nem com um sistema de Previdência Social, que somente agora começa a ser delineado.

Em protestos cada vez mais frequentes, os chineses cobram do governo esses direitos, que figuram nas reformas em curso. Nas últimas décadas, a carência desses serviços foi oportuna para encher os cofres dos bancos, que repassam os recursos dos poupadores às estatais e aos governos locais como crédito subsidiado. O governo terá de lidar com a queda desses recursos se quiser ver os chineses garantirem o crescimento da economia via consumo. Essa transformação, porém, não será fácil.

A corretora de seguros Li Xiaolin é considerada milionária, por seu patrimônio. Ela e o marido, o administrador de empresas Liu Xiangyu, são proprietários de dois apartamentos em Pequim e têm renda de 30 mil yuans (R$ 10,6 mil). Li tem acesso ao que quiser – dos produtos da Apple às bolsas de marcas famosas com o seu nome gravado, o mais novo objeto do desejo da classe média. Mas o casal economiza pensando no futuro de Yueyue, a filha de 18 meses. “Educação custa dinheiro. Boa educação custa ainda mais.”

China quer mudar economia
“A vida era dura, mas está cada vez melhor. Agora a gente pode comprar o que quer para comer”, Zhu Xinjun, agricultor
Denise Chrispim Marin/Estadão

O governo aboliu no começo deste ano a política do filho único, quando um dos pais não tem irmãos. Na prática, já era flexibilizada pelas famílias da zona rural e pelas mais pobres das cidades, ao custo de uma multa. Agricultora de Heibei, a viúva Shimei perdeu seu primogênito há mais de 20 anos. Se não tivesse outros três filhos, estaria abandonada. Analfabeta, 83 anos, ela mora com um deles no subúrbio de Pequim. Os três aportam à mãe 300 yuans (R$ 106) por mês, igual ao valor doado pelo governo. “É o suficiente.”

Shumei, como milhões de chineses que migraram do campo para as cidades, não pode usufruir os serviços médicos de Pequim. Teria de voltar a Heibei, onde foi emitido o seu hukou, para ser tratada. O hukou é uma espécie de passaporte com o qual o governo limita os movimentos dos cidadãos pelo país. O migrante sem permissão oficial não tem acesso aos serviços públicos no local. “Se eu realmente não me sinto bem, compro um remédio”, disse.

China quer mudar economia
Li Xiaolin: “Educação custa dinheiro. Boa educação custa ainda mais.”
Denise Chrispim Marin/Estadão

A migração desautorizada inflou novas e antigas cidades da China nos últimos 40 anos. Abrandar as regras do hukou está nos planos do governo, mas 47% da população vive na zona rural e anseia a melhor qualidade de vida dos centros urbanos. O Partido Comunista, porém, não incluiu nas reforma a criação de cidades médias entre o campo e as metrópoles.

Na entressafra, parte dos agricultores migra para as cidades em busca de trabalho. Zhu Xinjun comprou uma marmita de alumínio ao desembarcar em meados de maio em Pequim, onde trabalharia na construção civil em troca de 5 mil yuans (R$ 1.775) por mês, descontados alojamento e refeições. Ele viera de Pingquan, a 317 km da capital chinesa. “É um bom negócio”, explicou Zhu, que poupa metade da renda para a chegada do primeiro neto.

“Eu levo todo o meu dinheiro para casa. Tenho de guardar para os imprevistos e até para cumprir nosso costume de dar dinheiro aos que se casam”, comentou o agricultor.

China quer mudar economia
Liu Shumei: “Ocupação japonesa, guerra civil, Revolução Cultural e grande fome: eu passei por isso tudo. Antes, esperávamos o Ano Novo Chinês para comer tortas. Agora, todo dia é como o Ano Novo”
Denise Chrispim Marin/Estadão

A poupança é igualmente fonte de recursos para pequenos negócios, raramente subsidiados pelos bancos. Han Yuchuan nasceu cego em Gaoyi (Hebei) há 30 anos, numa família de agricultores. Aprendeu as técnicas de massagem tradicional e, aos 18 anos, embarcou para Pequim com 4 yuans (R$ 1,43) no bolso. Trabalhou como massagista por 500 yuans (R$ 177,55) mensais, acomodação e refeições até 2008, quando abriu sua empresa.

Graças a suas economias, hoje ele tem dois negócios de massagem em Pequim, com dez empregados, está casado e tem um apartamento em Shijiazhuang, a 320 km de Pequim. Mas prefere manter a mulher e seu bebê recém-nascido em Shijiazhuang e dormir em uma maca de massagem para evitar os gastos com aluguel. “Um terço do meu dinheiro vai para a poupança”, afirmou Han. “Quero muito morar em outro país um dia, para abrir os meus olhos para o mundo.”

Poluição ameaça o futuro. Shimei, Li, Han e Zhu e mais 20,7 milhões de habitantes de Pequim respiram o ar altamente contaminado. A poluição atmosférica e das águas na China traz um risco inegável para os planos do regime comunista de dar um novo salto econômico. O “argedon” – combinação das palavras ar e armagedon – está na lista de possíveis empecilhos ao salto qualitativo da economia chinesa.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a poluição do ar causou 471 mil mortes na China em 2008. A população tenta reduzir sua exposição ao ar contaminado usando máscaras nas ruas. Como crítica, alguns bem-humorados vendem garrafinhas de ar puro.

China quer mudar economia
Han Yuchuan dorme na maca de seu negócio de massagem para economizar o aluguel
Denise Chrispim Marin/Estadão

Relatório do Banco de Desenvolvimento da Ásia concluiu que menos de 1% das cidades se adequa aos padrões de qualidade do ar da OMS. Sete delas estão entre as dez mais poluídas do mundo. Cerca de 90% das cidades têm suas fontes de água poluídas. Em dois terços delas, o nível é de severa contaminação.

O outro risco às pretensões da China está nas regras sanitárias precárias para o setor alimentício. Entre granjas e galinheiros, a China tem 13 bilhões de aves – mais de nove vezes seu total de habitantes. Há ainda 723 milhões de porcos no país. As criações domésticas e de pequenos produtores, sem a fiscalização necessária, podem ser fonte de novas enfermidades, como foram as gripes aviária e suína, surgidas em outros países. Em 2008, a China sofreu um dos piores casos de contaminação, o da fórmula de leite em 2008, que matou quatro crianças e adoentou outras 53 mil.

Inovação e alto consumo são desafios da China em reforma

Inovação e alto consumo são desafios da China em reforma

Denise Chrispim Marin – O Estado de S. Paulo

31 Maio 2014 | 16h 53

Atual modelo, focado em investimento produtivo e exportação, se esgotou e dará lugar ao consumo interno

PEQUIM – Passados 30 anos de robusto crescimento econômico, a China desacelera para pôr a casa em ordem. O modelo assentado em taxas elevadas de investimento produtivo e de exportação se esgotou e dará lugar a um sistema sustentado pela expansão do consumo doméstico. O país não crescerá mais a taxas acima de 10% ao ano. No máximo a 7,5%, como previsto para este ano. Mas, se as reformas anunciadas em novembro derem certo, o “Império do Centro” deixará de ser conhecido pelo selo “fabricado na China” e passará a ter como referência o “inovado na China” a partir de 2020.

A transformação não será fácil. O governo terá de regular o sistema que corre em paralelo no mercado financeiro – os “shadow banks”, bancos da sombra – e desinflar a bolha imobiliária. Terá de despoluir as megalópoles e acomodar o grosso da população rural em novas cidades. Terá de construir uma previdência social e melhorar os serviços públicos de educação e saúde. Terá de desmontar o sistema de crédito que transfere a renda das famílias para as estatais. A adoção do pacote de reforma com 60 tópicos será, ao final, a pedra angular para a preservação no poder do Partido Comunista Chinês sobre todo o país continente.

“A China cresceu a quase 10% ao ano em 40 anos. A política econômica cumpriu seu papel, mas estava baseada no crescimento e no consumismo desenfreado dos Estados Unidos e gerou, na China, concentração de renda e queda do consumo como parcela do Produto Interno Bruto (PIB)”, afirmou o ex-emPara derrubar as resistências de governos locais e de segmentos da cúpula de Pequim, o presidente Xi Jinping criou uma comissão de monitoramento da reforma e lançou uma agressiva – e popular – campanha contra a corrupção. Os anúncios no 3.º Plenário do 18.º Congresso do PCC, em novembro, indicam não haver saída senão a maior adaptação da economia às regras de mercado, o atendimento às demandas da nova classe média e a correção de distorções acumuladas em quatro décadas. A demanda mundial não retomará os níveis anteriores à crise de 2008. Os custos trabalhistas da produção na China já não estão entre os mais baixos do mundo. A média de salários em 2012, de US$ 625 mensais, passou a do México, de US$ 459.

baixador do Brasil em Pequim Clodoaldo Hugueney. “A prioridade agora será agregar bem-estar social, qualidade e inovação aos produtos, competitividade no setor de alta tecnologia e melhoria do meio ambiente.”

As reformas vieram com metas ousadas: transformar o país no maior centro de inovação em 2020. Trinta anos mais tarde, a China deverá superar os EUA como líder global em inovação. O potencial existe. A China investe massivamente em inovação nas áreas de energia limpa, aeroespacial, infraestrutura e informática, além da melhoria de seu sistema de proteção à propriedade intelectual. Também é o segundo no mundo em publicações científicas e, dentre os estudantes estrangeiros nos EUA, 29% (287,3 mil) são chineses.

Para liderar o ranking de inovação, as suas estatais, seu sistema financeiro e sua política macroeconômica terão de mudar. Nessa tarefa, não haverá espaço nem para os shadow banks nem para as estripulias fiscais dos governos locais, altamente endividados. Subsídios aos serviços públicos terão de desaparecer, da mesma forma que os desequilíbrios nos balanços das estatais. Tampouco sobreviverão na China o controle de capitais, a cotação artificialmente desvalorizada do yuan – em 40% desde 2005 – e as estatísticas econômicas pouco confiáveis.

Parte dessa mudança, porém, dificilmente chegará a tópicos altamente questionáveis. Roberto Dumas Damas, especialista em China e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), não vê possibilidade nenhuma de os bancos (estatais) deixarem de atuar como braço fiscal do governo. As mesmas instituições, segundo o economista Miguel Daoud, mantêm seus balanços em segredo. “Pode haver uma montanha de crédito podre lá dentro, especialmente das estatais.”

Armadilha. O sucesso do partido único nessa transformação é posto em xeque por economistas. “Ouço essa groselha de reforma há dez anos”, diz Dumas, que duvida da vontade política do governo de acabar com o controle de capitais e permitir a flutuação do câmbio. Para outros, a China dificilmente vai escapar da armadilha da renda média, que a prende ao grupo emergente.

“O problema é que essas reformas vão tomar tempo. Até mudar o comportamento de consumo das famílias, o processo será gradual e lento”, diz Otaviano Canuto, conselheiro da presidência do Banco Mundial. Segundo ele, se a mudança não ocorrer, a China poderá até ter um PIB impressionante. Mas continuará presa à armadilha da renda média. Não deixará de ser, como agora, uma economia emergente.

Ritmo acelerado. O modelo em curso na China até o final de 2013 foi adotado nos anos 80, sob o comando de Deng Xiaoping. A economia crescera 6,7% ao ano entre 1958 e 1978, em termos reais, quando começou a distanciar-se do modelo soviético e a apostar no aumento do investimento produtivo – nacional e estrangeiro – e das exportações. Desde 1979, passou a crescer ao ritmo anual de 10%.

A cada oito anos, a economia chinesa dobrou de tamanho, segundo relatório do Congressional Research Service, dos Estados Unidos, de dezembro. Em 2006, a China superou o Japão como segundo maior produtor de manufaturas e, quatro anos depois, os EUA.

Essa mudança foi possível graças à elevação do investimento produtivo, de 25% do PIB, em 1990. Em 2012, atingiu o pico de 48,7%. Parte desses recursos provêm da poupança altíssima do país, de 53%, em 2008, Outra parte vem dos investimentos estrangeiros diretos (IED), que passaram de US$ 2 bilhões, em 1958, para US$ 108 bilhões há dois anos – US$ 1,3 trilhão, em cifras acumuladas.

As empresas estrangeiras na China, dedicadas sobretudo a setores de alta tecnologia, totalizavam 445,2 mil em 2010. As estatais somavam 158 mil em 2008.

A máquina produtiva, motivada pelo custo baixo da mão de obra, foi programada para a exportação agressiva. A política de controle e desvalorização cambial facilitou a competitividade dos produtos “fabricados na China”. Os embarques chineses cresceram de US$ 14 bilhões, em 1979, para US$ 2,1 trilhões em 2012. As reservas internacionais continuam a ser as maiores do mundo, de US$ 3,7 trilhões em 2013.

Desaceleração e reformas na China
Stringer China/Reuters

Vista de Pequim: China é o maior consumidor mundial de energia desde 2009

A lição da Copa

Para especialista em sociologia do esporte, Copa no Brasil é um sucesso por ser ápice de um evento que une povos em torno de causas comuns

A lição da Copa

Andrei Netto

 

Boa imagem. ‘Os protestos mostraram que o Brasil é uma democracia que chegou à maturidade’
Boa imagem. ‘Os protestos mostraram que o Brasil é uma democracia que chegou à maturidade’
Mario Tama/Getty Images

Em La Voie (O Caminho) o sociólogo Edgar Morin apontou um dos grandes paradoxos de nosso tempo. “A globalização”, diz ele, “é ao mesmo tempo o melhor e o pior.” Por melhor, entende-se a possibilidade de emergência de um novo mundo. Por pior, a possibilidade de autodestruição da humanidade. Em meio à incerteza do porvir, escreve o mestre francês, um fato é concreto: somos cada vez mais interdependentes e pertencemos a uma “comunidade de destino”. Morin não foi o primeiro a observar a formação dessas comunidades, mas um dos primeiros a diagnosticar sua reemergência no mundo de hoje. O termo designa uma espécie de cimento social que une indivíduos com vidas díspares em torno de um objetivo comum.

São essas “comunidades de destino”, segundo outro sociólogo, o alemão Albrecht Sonntag, que fazem o sucesso da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Para o especialista em sociologia do esporte, professor da Escola de Administração (Essca) de Angers e Paris e coordenador do projeto Football Research in an Enlarged Europe (Free), nós, torcedores, sofremos de certa esquizofrenia: somos pós-modernos, consumidores globalizados, hedonistas, mas também pré-modernos, arcaicos, sentimos a necessidade de estar juntos e compartilhar um mesmo objetivo.

Nesse sentido, a Copa tornou-se ao longo dos anos um símbolo de união capaz de superar as diferenças de classes sociais, de éticas ou religiões. “Grandes nações, para existirem, têm necessidade de se confortar sobre si mesmas de tempos em tempos por pulsões emocionais fortes”, diz Sonntag. “Temos a necessidade de dizer a nós mesmos que somos uma comunidade, que tem problemas, mas também vínculos. Chamo isso de metáfora da família.” Embora não considere a melhor de todos os tempos, Sonntag fala com paixão da Copa no Brasil. E, otimista, adverte: a grande imagem positiva que ficará para o mundo não é apenas a de um país que sabe apreciar o futebol, mas a de uma sociedade madura e democrática que, ao mesmo tempo, sabe se rebelar e pedir a seus governantes mais justiça social, mais igualdade e menos corrupção.

 

Por que o sr. diz que nós brasileiros podemos adorar a Copa sem receios?

Antes de mais nada porque é um espetáculo fascinante, bem organizado, que nos envia diretamente à infância – um formidável parêntese na vida cotidiana. A Copa tem sua dinâmica própria, seu poder emocional que domina o resto da atualidade – política, social – durante um mês. É claro que o Brasil é uma democracia imperfeita, como todas as outras, que a população brasileira e sua classe média têm boas razões para se revoltar contra certas práticas governamentais e econômicas, mas é necessário que nos concedamos uma pequena pausa para observar como o futebol consegue eclipsar o resto quando a competição começa. É notável.

 

Mas, depois de tanta efervescência social, essa entrega do Brasil à Copa não é ruim?

Essa é a razão pela qual eu pesquiso sobre o futebol há 15 anos. Esse jogo é especial – e, em alguns países, mais especial do que em outros. Vimos o mesmo na Alemanha em 2006, uma nação que vive em osmose em relação ao futebol e deve muito a ele no que diz respeito a sua coesão social. Trata-se de uma democracia que funciona melhor que a do Brasil – não é feio nem maldoso dizer isso – e também é um pouco menos corrompida. Mas a necessidade de coesão é exatamente a mesma.

 

Por quê?

Porque os símbolos que reúnem os alemães foram desnaturados, desvalorizados pelo nazismo. O hino nacional foi por 50 anos uma questão delicada. A bandeira, nós não usávamos. Não havia uma relação natural com a “comunidade de destino”. A Copa de 2006 criou esse símbolo nacional de substituição. O Brasil e a Alemanha são muito comparáveis em suas necessidades de se encontrar em torno do futebol. Se você observar a França, vai ver o mesmo. É uma democracia que funciona, um ótimo país para se viver. Mas há tendências de fragmentação do corpo social. Facilmente identificamos uma grande sede de “estar junto” por um lapso de tempo. A Copa do Mundo exerce esse papel.

 

E como entender a febre da Copa que os EUA parecem ter contraído também?

Os EUA, outra democracia que funciona bem, têm o mesmo problema que a Alemanha, a França ou o Brasil: são um monstro de 300 milhões de habitantes, fragmentado, com antagonismos incríveis. Sempre necessitaram ao longo de sua história de uma forte dose de nacionalismo a fim de existir. Muitos intelectuais, a começar por Tocqueville, compreenderam isso. É preciso preservar essa ideia de Estado-Nação sob a qual repousam os países. Por isso, o soccer entra cada vez mais no imaginário americano. E, neste ano, eles têm uma equipe bem simpática, com um treinador carismático, simbólico por ser um imigrante que sente pertencer ao país. Mas não sei se isso terá impacto duradouro.

 

A Fifa é o mal ou só um bode expiatório?

A Fifa é um bode expiatório, sem dúvida. Pediu oito estádios, e o governo brasileiro quis 12, por exemplo. Não podemos culpá-la por isso. Logo, a Fifa é um bode expiatório, ainda que ela mereça. É a Copa do Mundo em si que reúne características que a transformam em um símbolo ideal e justificado para manifestações de ordem social. Em primeiro lugar, ela cria uma visibilidade extraordinária: todo mundo fez reportagens sobre as manifestações no Brasil, tremendamente justificadas, que ganharam uma amplitude mundial. Foi um palco de teatro extraordinário. Além disso, a Copa permite expressar melhor o que se quer dizer. É o país do futebol que está protestando contra a Copa, ora!

 

Qual é o impacto real de uma Copa?

A Copa do Mundo é um luxo. Mas se diz que não há outro evento que provoque um efeito econômico e de visibilidade tão positivo para um país. Isso é falso. Às vezes é possível limitar os prejuízos, como aconteceu na Alemanha, onde os estádios acabaram sendo bem aproveitados, por exemplo. Não será o caso da Arena de Manaus. Na Rússia, em 2018, serão gastos milhões e milhões e vai ser uma piada. Mas a Rússia não é uma democracia, logo não haverá protestos. No Catar, a mesma coisa. Em geral, a Copa do Mundo é um escândalo, algo desmesurado por natureza. Ela faz desaparecer dinheiro que pode ser utilizado de outra forma. Na Alemanha tudo bem, porque o país tem dinheiro. No Brasil, convenhamos, há outras coisas a fazer em Manaus do que construir um estádio. Logo, as manifestações no Brasil são justificadas, corretas, e tiveram bom efeito, porque hoje o mundo inteiro está por dentro. Fazer coisas impróprias em um país fechado é muito mais fácil do que em uma democracia aberta, como o Brasil.

 

Essa rebeldia fez do Brasil um ponto de não retorno na história das Copas?

A resposta é sim, sem dúvida. O Brasil é um ponto de não retorno em direção a mais responsabilidade, mais abertura, mais transparência. E não acabou, tenho certeza. No seio da própria Fifa, aposto que eles mordem os dedos por terem decidido muito cedo e muito rápido a realização da Copa na Rússia, em 2018, e no Catar, em 2022.

 

Seu colega David Ranc, pesquisador do esporte, escreveu um artigo dizendo que a Copa no Brasil é mais organizada que os Jogos Olímpicos em Londres. É isso mesmo?

Ranc é um colega que trabalha na sociologia do esporte, viveu em Londres e viajou muito ao Brasil. Ele defende que os europeus devem mudar de atitude em relação aos países emergentes e em vias de desenvolvimento. Nós continuamos a dizer que sabemos fazer e os outros estão aprendendo. Não é verdade, quando observarmos os enormes erros orçamentários, de organização e de segurança, erros banais, cometidos na Olimpíada de Londres. Meu colega tem razão quando diz que o velho conceito orientalista que dizia que o Ocidente faz uma ideia condescendente do que é o Oriente hoje tem uma nova tradução: o Norte faz uma ideia condescendente do que o Sul é hoje.

 

Qual será a imagem do País pós-Mundial?

O Brasil ganhará em imagem, pouco importa o resultado. E vai ganhar em imagem por causa das manifestações. Para o mundo, o Brasil é um país onde manifestantes, a maioria pacíficos, defendem ideias justas: justiça social, igualdade de oportunidades, fim da corrupção, etc. Ou seja: é uma democracia que chega a sua maturidade, alcançada por sua população, o que é formidável. Sabíamos que o Brasil era ótimo em fazer festa, e não precisávamos da Copa para saber disso. Hoje, constatamos que é também uma democracia que vive de um pluralismo de ideias essencial. O que falta à Rússia, por exemplo.

 

Quem deve ganhar a Copa?

Vou dizer uma coisa que vai surpreendê-lo: a melhor coisa que pode acontecer ao Brasil será não vencer a Copa do Mundo.

 

Você diz isso porque é alemão!

Não, não é isso. O Brasil não precisa de uma sexta estrela na camisa para ser reconhecido para toda a eternidade como o país do futebol. Isso, todo mundo já entendeu. Disputamos o segundo lugar, porque o primeiro é de vocês, de verdade. O que seria interessante é que, se vocês perderem nos jogos eliminatórios, ainda sobrarão tantos outros jogos na Copa. E aí veremos se vocês amam a seleção brasileira ou se, mais ainda, vocês amam o futebol. Eu creio que vocês amam o futebol. Nesse caso, continuarão a fazer a festa, e essa mensagem jamais será esquecida.

 

E quem é o favorito para a conquista?

Hum… O Brasil pode ser conduzido por uma onda de euforia, mesmo que não esteja muito convincente dentro do campo até aqui. A Argentina – ou melhor, Messi e mais 10 – podem chegar. Se a Holanda continuar nessa batida, pode ir muito longe. E a Alemanha dá a impressão de que ainda tem muita potência escondida sob o capô. Considero essa Copa genial porque tudo pode acontecer.

 

Essa é mesmo a Copa das Copas?

A melhor Copa do Mundo é aquela que descobrimos quando crianças. Depende da idade de quem responde. A melhor para mim foi – e é – a do México, em 1970. Descobríamos a TV em cores, tivemos uma semifinal incrível entre Alemanha e Itália. Foi um torneio com modelo compacto de três semanas e 16 equipes, coroada por Pelé como o rei. Tudo foi reunido para que o México 1970 fosse a Copa do Mundo. Mas em termos de qualidade do jogo, a Copa de 2014 é seguramente melhor do que as últimas quatro.

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Albrecht Sonntag é sociólogo da Escola Superior de Ciências Comerciais de Angers (França)

Direito de se conformar

Direito de se conformar

Ricardo Antunes – O Estado de S. Paulo

14 Junho 2014 | 16h 00

Por que só os trabalhadores são ‘vândalos’ e proibidos de lutar por suas causas quando o mundo todo está olhando para o Brasil?

 

Repressão. Manifestante anti-Copa detido pela PM recebe spray de pimenta nos olhos
Repressão. Manifestante anti-Copa detido pela PM recebe spray de pimenta nos olhos
ROBSON FERNANDJES/ESTADÃO

A retomada das greves no Brasil não é algo recente. Na pesquisa qualificada que faz há muitas décadas, o Dieese nos mostra que desde 2003 elas vêm se ampliando sistematicamente. Começou com 340 naquele ano e chegou a 873 paralisações em 2012, um salto bastante expressivo.

Suas reivindicações foram: no setor industrial, 42,7% objetivavam maior participação nos lucros e resultados, essa pragmática empresarial que obriga os trabalhadores a aumentar seus salários somente quando produzem mais. Foram seguidas por melhor alimentação (37,6%) e reajuste salarial (29,7), entre outras. Nos serviços, a alimentação puxou 43,1% das greves; os reajustes salariais contabilizaram 40,7%, e o pagamento de atrasos salariais totalizou 34,1%.

E, se em 2013 tudo indica que esses números avançaram ainda mais, neste ano, a tomar pelo que estamos vivenciando, haverá um crescimento exponencial das paralisações. Para bem compreender essa explosão recente, temos que olhar com atenção para o Brasil desde junho de 2013.

De um modo breve, desde aqueles levantes de junho que o País mudou de qualidade. Ocorreu algo excepcional em nossa história, dado pela intersecção entre três movimentos que caminhavam em paralelo e se entrecruzaram, produzindo um choque social e político profundo. Primeiro, desde 2008 as lutas globais vêm se ampliando em todas as partes do mundo. No Oriente Médio, na Ásia, na Europa, até atingir o coração do Império, os EUA, para ficar nesses exemplos. E essa onda foi vista por todos os brasileiros. Sua lição basilar: para se conquistar algo é preciso tomar as praças públicas, pois os organismos de representação (com os Parlamentos à frente) estão completamente na berlinda.

Segundo, esse movimento mais global encontrou uma situação especial no Brasil: o governo do PT comemorava dez anos de um “novo ciclo” quando as rebeliões de junho de 2013 roubaram o bolo de Lula e esparramaram seus farelos pelas praças de todo o País. Ruiu o mito da “nova classe média”, em plena festa do seu primeiro decênio. Os assalariados que encontram empregos recebem, em sua grande maioria, até um salário mínimo e meio; trabalham para estudar e estudam para melhorar no trabalho. O canudo da faculdade privada lhes faz derrapar ainda mais nos empregos voláteis. Pagam essas faculdades e encontram empregos com altas taxas de rotatividade, ainda mais terceirizados, mais adoecidos, mais precarizados, sofrendo assédio moral, etc. Em suma: muito mais privação do que realização. E, para trabalhar, dependem do transporte público, quase todo privatizado e degradado; se adoecem, oscilam entre a tragédia dos hospitais públicos e os engodos dos convênios privados. Uma hora a situação iria fazer água, e isso ocorreu em junho do ano passado. (Aqui vale um parênteses: o mito tucano, esse não ruiu porque simplesmente nunca existiu, uma vez que seu projeto é majoritariamente sustentado pelo voto conservador que não se assusta com o aumento da segregação social no País.)

O terceiro foi um espetacular elemento contingente. A celebração tríplice das Copas (das Confederações, da Fifa e das Olimpíadas), imaginada por Lula e pelos grandes capitais como coroamento de um ciclo virtuoso, fez desabrochar seu exato inverso e o descontentamento explodiu.

Assim, junho de 2013 se adensou com os trabalhadores-estudantes urbanos lutando pelo passe livre e contra a degradação da vida nas cidades, elevando a um patamar superior o levante das periferias, fortalecido com o MTST e sua emblemática ocupação da Copa do Povo. E esse descontentamento se generalizou.

Já as greves e manifestações deste maio e junho de 2014 consolidam a rebeldia do trabalho, dos homens e mulheres que se desgastam na indústria, nos transportes, no funcionalismo público (hospitais, previdência, escolas e universidades públicas), em uma onda de paralisações que atinge muitos milhares de trabalhadores e trabalhadoras. (Os docentes e funcionários das universidades públicas paulistas, em exemplo que deve ser único neste período, receberam a acintosa proposta de reajuste zero, a pretexto de que a gestão anterior da USP, cujo ex-reitor foi escolhido pelo governador do PSDB desconsiderando a vontade da maioria de comunidade acadêmica, foi pautada pelo descalabro. A onde privatista exacerbou-se. Mas vale olhar para a explosão da crise universitária do Chile, depois de décadas de privatismo desde a ditadura de Pinochet, que gerou uma explosão social intensa nos últimos anos.)

Uma rápida fenomenologia das greves pode recordar a emblemática paralisação dos garis, durante o carnaval do Rio. Contra uma direção sindical atrelada e cupulista, os garis perceberam que na festa carioca a limpeza não rimava com a falta de presteza da prefeitura em relação a seu exaustivo labor diário. Seguiram-se outras tantas greves, como a dos motoristas e cobradores do Rio, São Paulo, em São Luís, entre incontáveis cidades onde houve paralisação no sistema de transportes, um dos motes centrais, vale lembrar, dos levantes do ano passado. Ora contra as direções sindicais, ora com o seu apoio, as greves encontram seu principal elemento causal na precariedade das condições de trabalho e salário.

Mas a coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foi geral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação, que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era pouco mais de R$ 1.300. Valor, como se sabe, insuficiente para viver em uma cidade com alto custo de vida e ainda com inflação em crescimento.

Depois de alguns dias de paralisação, foram duramente reprimidos pelo governo Alckmin, com ação policial, demissões e acusação de “vandalismo” (os mesmos trabalhadores que, com zelo e cuidado, conduzem os metrôs diariamente) e ameaçados com mais 300 demissões se a greve voltar. Paralela e curiosamente, as transnacionais Alston, Siemens, entre outras, bem como seus gendarmes que praticaram fraudes volumosos em obras de ampliação do Metrô, sob governos do PSDB, como a imprensa e Justiça têm divulgado intensamente, ainda não sofreram nenhuma punição exemplar. E vale também recordar que os metroviários se utilizam de um direito constitucional (o direito de greve) que foi obtido depois de décadas de luta contra a ditadura militar.

Por fim, um argumento recorrente contra as greves, é de que elas são “oportunistas” por ocorrerem às vésperas da Copa. Mas a Fifa, essa transnacional do (des)entretenimento global não está impondo sua marca e seus “parceiros” para lucrar ainda mais compulsivamente com sua Copa? Não obrigou o País a mudar sua legislação para poder vender bebidas alcoólicas nos estádios e assim ganhar ainda mais? Não é que até o acarajé ela tentou extirpar do estádio (ou arena?) em Salvador? E o empresariado do ramo de hotelaria não está cobrando o que quer, assim como os restaurantes?

Vem então a pergunta que não quer calar: por que somente os trabalhadores são “vândalos” e proibidos de lutar por seus direitos neste momento em que o mundo inteiro está olhando para o Brasil?

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Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor, entre outros, de ‘Os sentidos do trabalho’ e ‘Riqueza e miséria do trabalho no Brasil’, vols. I e II (ambos pela Boitempo)