Archive for 12 de janeiro de 2016

Da ciência à política

A 21ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 21), que será realizada em Paris de 30 de novembro a 11 de dezembro, não tem o direito de fracassar. O tempo urge, e o conjunto dos países industrializados precisa se comprometer a reduzir drasticamente suas emissões de gases do efeito estufa.

por Philippe Descamps

Durante a noite polar, a temperatura dificilmente ultrapassa os 60 °C negativos nos morros da Antártida. As novidades, além de poucas, não eram boas. O presidente norte-americano Ronald Reagan acabara de divulgar sua iniciativa de defesa estratégica para desafiar uma gerontocracia soviética incapaz de sair da estagnação econômica e do atoleiro afegão. Dentro das frágeis barracas da base de Vostok, cantavam-se músicas de Georges Brassens e Vladimir Vissotsky para manter o moral. Abastecidos por aviões norte-americanos, cientistas franceses e soviéticos enfrentavam os elementos da natureza a fim de descobrir juntos os segredos do clima. Objetivo: remontar no tempo, descendo cada vez mais nas entranhas da geleira de 3.700 metros de espessura que jazia sob seus pés. Em fevereiro de 1985, a equipe conseguiu extrair fragmentos de gelo que conservavam informações cruciais sobre o ar e as temperaturas dos últimos 160 mil anos. Após dois anos de exames, esses fragmentos trouxeram enfim a prova procurada: o globo foi às vezes mais quente que hoje, às vezes mais frio, mas essas variações acompanharam fielmente as da concentração de gás carbônico (CO2). Ora, sabe-se que desde a Revolução Industrial, sobretudo desde meados do século XIX, o teor de CO2 na atmosfera não para de aumentar e atualmente ultrapassa todas as referências históricas. Essas descobertas, corroboradas pela perfuração de sedimentos marinhos e pelo estudo de outros gases do efeito estufa, como o metano, convenceram as Nações Unidas a criar, em 1988, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Devotando-se ao estudo da literatura científica, o IPCC tem por missão colocar o mundo a par do estado atual dos conhecimentos. Entre seu primeiro relatório, publicado em 1990, e o quinto, concluído em 2013,1 ele apresenta suas conclusões com um grau de probabilidade cada vez mais elevado: “O aquecimento do sistema climático é incontestável. Inúmeras mudanças observadas desde os anos 1950 não têm precedentes há décadas, talvez milênios”, diz o último relatório. “A atmosfera e os oceanos se aqueceram, a cobertura de neve e gelo diminuiu, o nível dos mares subiu e as concentrações dos gases do efeito estufa aumentaram.” Os especialistas já não têm dúvidas quanto às causas desse fenômeno: “A influência do homem sobre o sistema climático foi claramente estabelecida […]. Para conter a mudança do clima, será necessário reduzir drástica e duradouramente as emissões de gases do efeito estufa (GEEs)”.

Com base em modelos, o IPCC apresenta um resumo das evoluções recentes e, sobretudo, projeções para as décadas futuras em função de quatro cenários de emissões de gases do efeito estufa. A hipótese mais pessimista (RCP 8,5) – pouco esforço de redução – prediz, até o ano de 2100, temperaturas mais elevadas em cerca de 4 °C na escala global e em cerca de 6 °C nas terras emersas, ou seja, o caos. Nem os cenários médios (RCP 6,0 e RCP 4,5) podem garantir uma estabilização a médio prazo. Só a hipótese otimista (RCP 2,6) permitiria manter a alta da temperatura global abaixo dos 2 °C, um patamar que não pode ser ultrapassado e, de preferência, nunca ser alcançado (ver artigo de Eric Martin na p. 30). Além disso, deve-se contar com aquecimento fora de controle, degelo rápido na Groenlândia, modificação da circulação oceânica profunda e derretimento do permafrost2 nas terras boreais, o que acarretaria a liberação maciça de CO2.

Contudo, a hipótese otimista supõe a contenção imediata das emissões, que devem baixar para zero em duas ou três gerações. Oficialmente, todos os Estados reconhecem esse imperativo desde a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, e da adoção da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima. Depois dessa ode mundial à salvaguarda do planeta, entretanto, a situação ficou ainda mais grave. Em 2013, o total de emissões de CO2 ultrapassou 34,3 bilhões de toneladas, contra 23 bilhões em 1990.3 De 1980 a 2011, a “pressão antrópica” (a parte do aquecimento resultante das atividades humanas) dobrou por causa da emergência de novos países industrializados e do aumento da população.

O clima surge como um multiplicador de desequilíbrios, desigualdades e ameaças a que estão sujeitos os mais pobres. Aridez, furacões, monções desreguladas: o Sul já padece dos efeitos das mudanças sem ter conhecido os benefícios do desenvolvimento. Na África, o deserto avança pelo Sahel e 620 milhões de pessoas ainda não têm acesso à eletricidade. Uma responsabilidade colossal cabe aos países desenvolvidos, em particular aos Estados Unidos (ver mapa na p. 24). Desde sua criação, a empresa petrolífera Chevron teria, sozinha, mandado para a atmosfera mais de dez vezes o que todos os países da África subsaariana (fora a África do Sul) emitiram desde 1850; a Gazprom, tanto quanto a África; e a Saudi Aramco, mais que a América do Sul inteira.4

A maior parte do transtorno se deve à utilização do carbono, do petróleo e do gás. Todavia, em 2013, as subvenções públicas aos combustíveis fósseis chegaram a 480 bilhões de euros, isto é, mais de quatro vezes a soma das que foram concedidas às energias renováveis.5

Diante de tal desafio, a lógica da relação de forças entre nações se torna inoperante e o caminho da cooperação continua acidentado. Após o Senado norte-americano se recusar a ratificar o Protocolo de Kyoto, em 1997,6 e depois do fiasco de Copenhague, em 2009, a Conferência de Paris foi minuciosamente preparada apostando em declarações voluntárias: as “contribuições previstas determinadas em nível nacional”. Em meados de outubro, 148 países, representando 87% das emissões, haviam apresentado seus roteiros. Entre os grandes poluidores, faltaram apenas as contribuições do Irã e da Arábia Saudita. Cada qual alardeia grandes ambições: a China pretende alcançar seu pico de emissões e iniciar a redução em 2030; a União Europeia promete eliminar 40% das suas em 2030 (em relação a 1990); e os Estados Unidos anunciam uma queda de 26% em 2025 (em relação a 2005).

No entanto, a embaixadora francesa encarregada das negociações sobre a mudança climática, Laurence Tubiana, reconhece: “Ainda que positivas, essas contribuições não serão suficientes para nos colocar, depois da Conferência de Paris, num rumo compatível com o limite de 2 °C. Por isso, o acordo de Paris deverá conter dispositivos que permitam fomentar regularmente o entusiasmo comum no curso do tempo, para que cada período de contribuições seja mais ambicioso e possamos cumprir nossos objetivos de longo prazo”.7 Para obter um acordo universal, que entraria em vigor a partir de 2020, a estratégia da Presidência francesa se resume em evitar questões incômodas. Há fortes dúvidas quanto ao objetivo global de redução, à definição de um máximo mundial de emissões, aos mecanismos de controle… A taxação dos transportes marítimos e aéreos continua sendo um tabu. E o questionamento de um modo de produção que está levando a humanidade para o abismo ainda vai demorar.

Alguns países, como os Estados Unidos, a Alemanha e os emirados do Golfo, não conseguirão jamais apagar os traços que deixaram na atmosfera; sua “dívida climática” é irremissível. As nações do Sul receberiam deles uma compensação financeira para poder alcançar um desenvolvimento sem carbono, saltando a etapa mortífera das energias fósseis. Mas o objetivo de US$ 100 bilhões por ano, consagrados a esse fim, ainda não encontrou quem o financiasse.

A preparação dessa 21ª conferência se caracteriza pelo papel crescente que lá desempenham as multinacionais com este credo: o direito do comércio terá de prevalecer sempre sobre a ambição social e ambiental. E os dirigentes que, com a mão no peito, virão propor um acordo sobre o clima negociam na sombra a criação do Grande Mercado Transatlântico (GMT), que visa “garantir um ambiente econômico aberto, transparente e previsível na questão da energia, e um acesso ilimitado e sustentável às matérias-primas”.8

O caos climático só será evitado caso a maior parte das reservas de energia fóssil permaneça no solo. O desafio coletivo consiste em tornar esse esforço aceitável para todos, pondo-se fim ao aumento das desigualdades que desencoraja a solidariedade. Não convém esquecer a proclamação de George H. Bush ao chegar à Cúpula da Terra, no Rio: “O modo de vida americano não é negociável”. Um modo de vida impossível de generalizar e cuja perpetuação nos custou vinte anos, tornando decisões futuras ainda mais difíceis de tomar.

O risco será deixar o tempo correr, enquanto se insiste em soluções quiméricas ou marginais, como a geoengenharia, que pretende fixar mais o carbono no solo ou reduzir a radiação solar. Os países do norte da Europa abriram um caminho novo propondo a partir do início dos anos 1990 uma “taxação do carbono”. Conseguiram uma redução significativa dos gases do efeito estufa sem renunciar à prosperidade: liberaram créditos para melhorar a eficácia energética dos transportes e construções, e para pesquisar energias renováveis. Mas estas não atenderão a uma demanda crescente, pois logo começarão a rarear os metais indispensáveis às instalações eólicas ou solares.9 A via do “reduzir, reutilizar, reciclar” leva a repensar o consumo, fundamentando a qualidade de vida em outros critérios que não a acumulação.

Os otimistas têm por si os últimos números da Agência Internacional da Energia: em 2014, a economia mundial progrediu 3%, enquanto as emissões de CO2 permaneceram constantes.10 Efeito conjuntural ou início da dissociação? Acharemos motivos mais sólidos para ter esperança na tomada de consciência dessas apostas, com o despertar de uma miríade de associações, e nas posturas adotadas por algumas autoridades morais, como o papa Francisco.

A multiplicação dos acidentes ecológicos vem forçando a China a questionar seu desenvolvimento; e a candidata à Presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton, também deverá rever sua posição, renunciando ao projeto do oleoduto Keystone XL, concebido para facilitar a importação, pelos norte-americanos, das areias betuminosas de Alberta – um símbolo de desperdício anacrônico. A Convenção sobre a Proteção da Camada de Ozônio se tornou, em 2009, o primeiro tratado da história a ser universalmente ratificado; a salvaguarda do clima requer uma mobilização coletiva não menos ambiciosa.

 

O PLANETA COM FEBRE

 

Para entender a importância das medidas recentes e das hipóteses do IPCC (à direita), é preciso olhar com cuidado a escala de tempo, bem diferente do gráfico à esquerda. A evolução das temperaturas e do CO2 nos últimos 800 mil anos na Antártida pôde ser estabelecida graças à extração de gelo realizada por cientistas europeus em 2007.

Philippe Descamps

Jornalista
1              Ao relatório do grupo 1, “Os elementos científicos”, juntaram-se em 2014 os do grupo 2, “Incidências, adaptação e vulnerabilidade”, e do grupo 3, “A atenuação da mudança climática”. Todos os relatórios estão em .

2             Solo profundo congelado.

3             “Trends in global CO2 emissions: 2014 Report” [Tendências nas emissões globais de CO2: Relatório de 2014], Netherlands Environmental Assessment Agency, Bilthoven-La Hague, 16 dez. 2014.

4             Richard Heede, “Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil fuel and cement producers, 1854-2010” [Rastreando as emissões antropogênicas de dióxido de carbono e metano por parte de produtores de combustível fóssil e cimento, 1854-2010], Climatic Change, v.122, n.1, Berlim, jan. 2014; e CAIT Climate Data Explorer 2015, World Resources Institute, Washington, DC. Disponível em: .

5             “World Energy Outlook” [Perspectiva da Energia Mundial], Agência Internacional de Energia (AIE), Paris, 2014.

6             Ratificado por 190 países, prevê compromissos de redução dos gases do efeito estufa para 38 nações industrializadas.

7             .

8             Item 37 da diretiva europeia de negociação, 13 jun. 2013, tornado público em 9 de outubro de 2014.

9             Cf. a contribuição de Philippe Bihouix em Économie de l’Après-Croissance [Economia do pós-crescimento], Les Presses de Sciences Po, Paris, 2015.

David Harvey: As capitais do capitalismo

O QUE ESTAMOS VENDO NA CHINA HOJE É O FUTURO”
David Harvey: As capitais do capitalismo

Em entrevista, o geógrafo David Harvey, professor emérito de Antropologia e Geografia da City University of New York (CUNY), analisa a urbanização do mundo e defende que é preciso combater o capitalismo por meio da radicalização nas cidades

por Daniel Santini

Daviid Harvey não gosta de São Paulo. “Estive na cidade nos anos 1970, e também em lugares como Recife e Salvador. Eles foram totalmente tomados por arranha-céus e shoppings centers. Todos no Brasil gostam de pensar que o país é especial – mas o que o Brasil tem de especial? É só capitalismo.” É assim, de maneira direta e clara, sem medir palavras, que ele respondeu a perguntas de um grupo reunido na capital paulista para uma entrevista coletiva organizada pela Fundação Rosa Luxemburgo. Além do badalado marxista britânico, o encontro reuniu os acadêmicos brasileiros Camila Moreno, Isabel Loureiro, Jorge Grespan, Marcos de Oliveira, Mariana Fix e Pedro Arantes. Da Fundação Rosa Luxemburgo, participaram Ana Rüsche, Daniel Santini, Elis Soldatelli, Florencia Puente, Gerhard Dilger e Verena Glass.

Harvey, que hoje vive nos Estados Unidos, onde dá aula como professor emérito de Antropologia e Geografia na City University of New York (CUNY), é considerado uma das principais referências em marxismo, em especial quando o assunto é urbanismo. Nesta entrevista coletiva ele aborda da construção das megalópoles chinesas à estandardização das cidades capitalistas. De maneira contundente, bem-humorada e até ácida às vezes, com a mesma intensidade com que rejeita a hiperurbanização, ele critica ideias como a desurbanização e o conceito andino de bem viver, reclama dos limites da agroecologia e defende que a produção de grãos deve ser industrializada e em grande escala.

 

A urbanização na China é um projeto maciço, com alta densidade populacional em conjuntos habitacionais de cinquenta andares, tudo conectado por trens rápidos. São centros construídos com matérias-primas importadas em larga escala, como ferro que sai da Amazônia,1 que não serão alimentados por painéis solares ou usinas de vento, e sim por energia nuclear. Dentro de uma perspectiva ecológica, quanto tempo esse modelo pode durar? 

David Harvey – Não tenho a menor ideia. O que temos neste momento são algumas dessas formas absurdas de urbanização, como em Dubai. Existem coisas muito doidas acontecendo. Mas aí é preciso olhar para a macroeconomia. A única coisa que manteve o capitalismo vivo no mundo nos últimos anos é a urbanização chinesa. Se esse projeto maciço não tivesse acontecido e se ele não tivesse sido acelerado como foi depois de 2007/2008, grande parte da América Latina teria entrado em crise naquele período. A China está imensamente endividada, não em dólares, mas consigo mesma. Os chineses morrem de medo do desemprego, e este foi também um projeto de absorção de força de trabalho. A dinâmica de crescimento do capitalismo junto à ideia de que é possível crescer assim eternamente são uma contradição que vai chegar ao fim. E haverá consequências ambientais. Vi estatísticas que indicam que a China consumiu mais cimento nos últimos cinco anos do que os Estados Unidos no último século. E cobrir um país com cimento não parece uma ideia muito ecológica… Mas é pertinente a questão sobre como tais cidades serão abastecidas em termos de energia; é um ponto crítico. Cidades são extremamente vulneráveis em relação a fontes de energia.

 

O capitalismo depende cada vez mais da urbanização? 

Sim, e esse é um ponto importante, porque as atividades mais lucrativas e produtivas estão cada vez mais ligadas à urbanização. Parte desse sistema é pura ficção, porque é baseado no aumento de aluguéis, uma variante que é cada vez mais uma fonte de renda importante para a classe capitalista como um todo. Não dá para continuar por esse caminho. Acompanhei o desenvolvimento urbano no Brasil nos últimos trinta, quarenta anos. Estive em São Paulo nos anos 1970, e também em lugares como Recife e Salvador. Eles foram totalmente tomados por arranha-céus e shoppings centers.

Todos no Brasil gostam de pensar que o país é especial – mas o que o Brasil tem de especial? É só capitalismo. E, generalizando, é sempre o mesmo. É isso de carros, avenidas, shoppings e condomínios. Se considerarmos que todas essas mudanças aconteceram nos últimos trinta, quarenta anos, e pensarmos no que vai acontecer nos próximos trinta, quarenta anos, dá para pensar no mundo em que vamos viver. É inimaginável. O que estamos vendo na China hoje é o futuro.

 

Neste contexto, o que pensa do conceito de desurbanização? Nós temos como algo naturalizado a transição do rural para o urbano, mas talvez, em algum ponto, tenhamos de discutir como desurbanizar de maneira planejada e democrática, não?

Bem, eu sou contra a desurbanização. Acredito que seria igualmente desastroso em termos ecológicos espalhar todos pelo campo. Especialmente considerando as divisões de trabalho e os fluxos de commodities, acredito que formas eficientes de urbanização são cruciais. Estamos falando de uma população que em breve será de 8 bilhões. Como espalhar toda essa gente em espaços pequenos e autônomos? E em que nível eles poderiam ser autônomos? Porque uma das coisas que o capital fez foi, ao definir conexões e divisões de trabalho, estabelecer uma rede em que comunidades locais não são mais tão vulneráveis a catástrofes. Bastava uma praga de gafanhotos para deixar uma comunidade morrer de fome. Antes das ferrovias, isso era bastante comum. Estas eliminaram de maneira eficiente a fome local. Se pensarmos em um mundo de comunidades autônomas autossustentáveis, cada uma delas vai ser vulnerável de alguma forma. Então, um mundo descentralizado não parece para mim o mais razoável a seguir. Isso posto, também não sou a favor de uma hiperurbanização como a chinesa. A questão urbana é crucial, mas é por meio de formas mais radicais de urbanização que acredito que vamos resolver nossos problemas. Incluindo, é claro, muita ênfase em sistemas de agricultura urbana e similares. Hortas comunitárias e ideias do gênero podem funcionar bem.

 

Pequenas comunidades não seriam menos frágeis do que uma cidade como São Paulo, que depende de um só centro de abastecimento, o Ceasa? Ficou tão naturalizada nos círculos de esquerda a ideia de urbanização que mesmo em discussões sobre bem viver, um conceito indígena andino, falar em sair da cidade não é uma opção considerada… 

O bem viver tem origens bastante rurais e não dá para todos viverem como populações indígenas da Amazônia.

 

Essa é a origem, a tradição, mas há muitos pensadores que formulam o conceito de maneira mais aberta. Muitas vezes, as pessoas resumem tudo como pachamamistas que querem voltar atrás; é uma crítica frequente, da esquerda e da direita.

Não concordo com essa crítica, mas tenho meu ponto de vista, sobre o qual escrevi em Spaces of hope.2 Entre outras coisas, entendo que certas partes do mundo poderiam ser deixadas para produção altamente industrializada de grãos e carne. Parece bastante ineficiente cultivar trigo no próprio quintal. O que dá para plantar são verduras, folhas, tomates. Às vezes uma lesma pode fazer um estrago. Na Argentina, onde vivi por um ano, eu tinha um belo cultivo, mas acordei um dia e tudo tinha sumido. Encontrei uma trilha de formigas e fiquei muito antiecológico. Procurei o veneno mais poderoso e destruí o formigueiro. Desisti dessa coisa orgânica sem sentido [risos]…

É claro que se olharmos alguns aspectos da produção industrial, como a de carne, é nojento. Existem muitas evidências de que a maneira como a produção de frango é estruturada hoje favorece doenças. Estamos criando novos ambientes para novos patógenos. Então, a questão é: qual tipo de agricultura deve permanecer industrializado? Acredito que a maioria da produção de grãos deve se manter industrializada, porque é a maneira mais eficiente e efetiva. Não estou dizendo que agricultura urbana vai resolver, mas pode ajudar. Essa ideia está relacionada com a noção de bem viver.

 

Pensa que o conceito pode ser útil na busca por soluções? 

Acredito que com frequência nos encontramos trabalhando com o que eu chamo de termos vazios de significado – o bem viver, por exemplo. Todo mundo quer uma boa vida. Os bilionários querem uma boa vida, os indígenas querem uma boa vida. A grande questão não é nem o bem viver em si, e sim como as pessoas preenchem esse conceito com um significado particular. E eu acredito que o que os indígenas querem dizer com esse termo não funciona bem quando traduzido como bem viver. Ninguém vai dizer que é contra o bem viver. É um desses conceitos em relação aos quais todos vão ser a favor.

Sustentabilidade é outro exemplo. Ou direito à cidade. Todo mundo quer ter direito à cidade. A questão é: direitos de quem? Pelo que as pessoas se esforçam, qual é o sentido da luta? Devemos parar de falar no bem viver e começar a falar sobre pautas específicas – habitação, por exemplo. Quanto antes começarmos a falar sobre programas reais e objetivos, melhor.

 

Sobre habitação, no Brasil vemos casas construídas pelo programa Minha Casa, Minha Vida que parecem caixinhas enfileiradas, todas iguais. É possível fazer algo diferente quando se pensa em programas em larga escala? 

No geral, existe essa percepção das pessoas de que projetos habitacionais são necessariamente feios e ruins. Mas, se olharmos os construídos em Londres em 1960, há alguns muito bonitos, que têm uma qualidade fantástica. Tanto que, depois que eles foram privatizados, boa parte da burguesia se apropriou deles. Então, não há nenhum motivo para que projetos sociais de habitação sejam parecidos com o que você descreveu.

 

Mas é possível construir projetos assim considerando os custos e os aspectos econômicos? 

Primeiro, a questão de custo vai depender do valor dos terrenos, e acredito que esse é um ponto em que o Estado tem um papel importante em coibir a especulação como parte de uma política de garantir acesso à moradia. Depois, é preciso redirecionar recursos públicos. Por exemplo, se você taxar cada propriedade da burguesia e cobrar impostos de habitação da classe média e da classe alta, redirecionando o que for obtido para habitação social, vai haver muito mais recursos para projetos habitacionais para as massas. O problema é que muitas vezes o sistema funciona ao contrário. Em Nova York, arranha-céus dificilmente pagam impostos por conta de subsídios que receberam nos anos 1970. Bilionários vivem em condomínios livres de impostos. Bill de Blasio [prefeito de Nova York, do Partido Democrata] está tentando mudar isso.

 

De Blasio é um progressista que assumiu a prefeitura de Nova York depois de [Michael] Bloomberg e outros de direita. Quais possibilidades ele tem?

Muito poucas, porque as questões fiscais ficam majoritariamente com o governo do estado. Andrew Cuomo, o governador, é do Partido Democrata, mas pretende chegar à presidência e, por isso, não vai incomodar Wall Street. Assim, acaba se opondo a tudo que De Blasio propõe, e este fica com pouco espaço de manobra. Logo depois da eleição, De Blasio passou a sofrer ataques da imprensa, e sua popularidade despencou. Os movimentos sociais não estão mais nas ruas ameaçando Wall Street ou algo assim, então ele não tem apoio.

 

E as pessoas que foram para as ruas em 2011, como o Occupy Wall Street?

Elas se perderam em muitos aspectos, acredito. Os movimentos sociais que estavam diretamente ligados e ao redor do Occupy eram muito fragmentados e diferentes. Quando o Zuccotti Park foi fechado, tudo ficou descentralizado e com menos visibilidade. A única aparição foi quando veio o furacão Sandy, e o Movimento Occupy foi o primeiro a organizar ajuda de maneira supereficiente, com sua autonomia de sair e auxiliar diretamente as pessoas. Mas a política disso é terrível, em um sentido de que eles ajudaram as pessoas a voltar e reconstruir suas casas dentro de regras de propriedade privada e todo o resto. De repente, perceberam que estavam reconstruindo a forma de vida individualista e capitalista – que haviam se tornado um grupo supereficiente de suporte às vítimas, mais do que uma força política transformadora.

 

E movimentos como os Indignados na Espanha, as forças que surgem em Barcelona, na Grécia, na Turquia, no sul da Europa? Estamos vivendo um momento de esperança em que dá para imaginar mudanças? 

Sim, eu acredito que é um momento interessante em muitos sentidos. O Occupy é um movimento que acabou influenciado por sentimentos anarquistas e autonomistas, e isso resultou na falta de interesse em poder político stricto sensu. Era como se o movimento considerasse que o aparelho estatal não teria relevância. Havia essa insistência de que tudo fosse horizontal e não hierárquico. Estive em discussões com eles por algum tempo e escrevi um artigo em que, de maneira amistosa, ataquei os anarquistas. Brinquei com o Escuta, marxista!,3 do [anarquista norte-americano] Murray Bookchin, e publiquei o Escuta, anarquista!,4 tentando apontar que muitas coisas boas vieram do anarquismo, mas também falhas cruciais.

E temos de estar preparados para ir além do que os anarquistas fazem e fazer parte dos governos. Isso é o que parece estar ocorrendo, e aí as eleições na Espanha são muito importantes. Vemos um nível de ativismo que obviamente é crítico ao Estado, mas não ignora o poder do Estado.

Então, a questão dos movimentos alternativos e seu papel político é a agenda hoje. Vemos isso sendo expresso na maneira como as coisas aconteceram em Barcelona ou Madri. É um momento emocionante e de esperança. Mesmo que ainda haja uma ideia forte em muitas organizações de esquerda de não querer nenhuma relação com o aparelho estatal. E há todos esses estudantes que me classificam como stalinista porque defendo que não deveríamos descartar negociar com o Estado.

 

Daniel Santini é jornalista, pesquisa armas e relações internacionais, e escreve sobre mobilidade urbana no site: http://outrasvias.com.br

Ilustração: Tulipa Ruiz, Daniel Epstein

‘Sejamos claros: um mundo acabou, não há como voltar atrás’

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/-Sejamos-claros-um-mundo-acabou-nao-ha-como-voltar-atras-/6/35299

Segundo o antropólogo Alain Bertho, o século XXI abandonou o futuro em nome da gestão do risco e do medo, indiferente à ira das gerações mais jovens.


Ivan du Roy, no Basta!

reprodução

Para combater de forma eficaz o Estado islâmico e sua oferta política de morte e desespero, “devemos refletir sobre a revolta que está na raiz desses crimes”, sugere o antropólogo Alain Bertho, professor de antropologia na Universidade Paris-VIII, que prepara um livro sobre “os filhos do caos”. Na raiz do mal, o fim das utopias, enterradas com o colapso de todas as correntes políticas progressistas. O século XXI abandonou o futuro em nome da gestão do risco e do medo, e indiferente à ira das gerações mais jovens. Entre um cotidiano militarizado e o julgamento final à moda jihadista, apenas “a ascensão de outra radicalidade” poderia reavivar a esperança coletiva.

Os perfis dos jovens europeus que se radicalizam e partem para a Síria para se juntar ao “Califado” do Estado islâmico, dispostos a morrer como “mártires”, ou que sonham em fazê-lo, costumam suscitar a total incompreensão – ou interpretações extremamente simplistas – e, em ambos os casos, uma sensação de impotência. Como o Sr. analisa estes perfis?

Alain Bertho: Embora os números variem de uma estimativa para outra, pode-se afirmar que a França é o país europeu com o maior contingente no chamado Estado islâmico. Os voluntários estrangeiros do Daesh vêm de 82 países em todo o mundo. Mas nosso país tem uma relação especial com o epicentro geopolítico do caos, graças a seu passado colonial. Mas esta relação também é produto de nossas fraturas nacionais contemporâneas.

Não existe um perfil típico daqueles que partem para a Síria, o único traço comum sendo a juventude. Aproximadamente um terço são jovens convertidos ao Islã; há jovens oriundos das periferias, estigmatizados ao longo de anos; outros têm trabalho e família; alguns não freqüentavam mesquitas, apenas seus computadores. O trabalho de David Thomson, jornalista e especialista em jihadismo, é esclarecedor. Ele acompanhou e entrevistou vários jihadistas franceses. Todos relatam uma espécie de momento de revelação, que pode ser a conversão, uma ruptura e a descoberta de uma disciplina que dá sentido às suas vidas.

O sucesso do Estado islâmico se explica pelo fato de oferecer, a pessoas desestabilizadas, sentido ao mundo e à vida que podem levar. Ele lhes dá até uma missão. Por outro lado, aqueles que vêm matar e morrer no país onde nasceram e cresceram, têm um problema particular a resolver com seu país. Este conflito é pesado e vem de longe.

Mas como o Sr. explica o apelo do Estado Islâmico e de seus avatares em outros países, uma vez que seu projeto político se resume a implementar, na Síria e no Iraque, o Islã mais reacionário e intransigente que existe, enfrentando o Apocalipse e morrendo como um mártir?

Precisamos compreender que o que garante seu apelo é justamente o fato de ser uma oferta política de morte e desespero. Daí a gravidade da situação. Como diz Slavoj Zizek: “Evidentemente, é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”. Para os jihadistas, em um mundo de caos político, moral, econômico e climático, este fim está próximo. O projeto político do Daesh dá sentido às suas jornadas em direção à morte. Oferece-lhes um destino. A esperança de libertação individual e coletiva que era a bandeira das mobilizações do passado, no jihadismo é substituída pela problemática do fim do mundo e do juízo final. Para eles, a libertação é morrer como um mártir! Por isso, são muito determinados. “Só os mártires não têm piedade nem medo e, acredite, o dia do triunfo dos mártires será o dia do incêndio universal”, profetizou Jacques Lacan em 1959. E aqui estamos. Se quisermos secar a fonte do recrutamento, é preciso refletir urgentemente sobre o que produz tamanho desespero.

Qual é a diferença entre a radicalização jihadista de hoje e a radicalização política encarnada pela luta armada ou pela ação terrorista dos anos 1970?

Há uma diferença essencial de objetivos. Depois de 1968, vimos a ascensão da ação armada com o Grupo Baader-Meinhof – ou Fração do Exército Vermelho – na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália ou o grupo de extrema esquerda Kakurokyo no Japão. De seu ponto de vista, aquelas pessoas sacrificam suas vidas pelo futuro dos outros. Cometem atos criminosos fadados ao fracasso, mas no contexto de uma luta por um futuro revolucionário que eles pretendem que seja melhor. Com o Estado islâmico, não há nada deste tipo: cada um sacrifica sua vida pela morte do outro. Querem somente arrastar todo mundo para o desespero, com apenas um consolo: os apóstatas, os incrédulos, os cristãos e os judeus não vão para o céu.

O horror faz parte da estratégia, como explica o tratado “Gestão de barbárie”, escrito no Iraque pelo teórico jihadista – certamente um coletivo – Abu Bakr Naji antes do surgimento do Estado islâmico. Eles não fazem a guerra para criar um estado, como numa luta pela independência: eles criam um “Estado” para fazer a guerra. O Estado Islâmico só enxerga a paz no triunfo final do califado contra seus inimigos, cada vez mais numerosos. Mas desde 2001, a idéia de “paz como objetivo de guerra” (velha concepção de Clausewitz) já não é mais válida entre as principais potências engajadas em uma “guerra sem fim” contra o terrorismo. Quais são os objetivos da guerra ou os propósitos de paz da coalizão na Síria ou no Iraque? Não sabemos. O jihadismo nos arrastou para seu próprio terreno.

Em seu ensaio em preparação sobre “filhos do caos”, o Sr. explica que o jihad – ou seja, a motivação religiosa – não é o único motor da radicalização. Quais seriam os outros?

Temos um problema com o fim do século XX e do colapso do comunismo. O fim do comunismo não é apenas o fim de regimes e instituições da Europa Oriental e da Rússia, é um conjunto de referências culturais comuns a todas as correntes políticas progressistas, que desmorona. Apesar da realidade repressiva dos regimes comunistas “reais”, uma transformação social era, na época, ainda percebida como possível, e era parte de uma abordagem histórica, uma ideia de progresso. O futuro era preparado hoje. A hipótese revolucionária que inaugurou a modernidade (a Revolução Francesa) foi uma referência política comum tanto para aqueles que queriam uma revolução como para aqueles que preferiram transições pacíficas e “legais”. Com o colapso do comunismo e do encerramento de toda perspectiva revolucionária, foi o futuro que perdemos no caminho. É a ideia do possível que desmorona. Não estamos mais em um processo histórico. Já não se fala mais do futuro, mas da gestão de risco e de probabilidade. Gerencia-se o cotidiano através de políticos que manipulam o risco e o medo como meios de governo, seja o risco à segurança ou o risco cambial (a dívida), que falam muito de aquecimento global, mas são incapazes de antecipar a catástrofe anunciada.

Os jovens, aqueles que encarnam biologica, cultural e socialmente o futuro da humanidade, sofrem especialmente as consequencias deste impasse coletivo e são particularmente maltratados. As sociedades não investem mais em seu futuro, sua educação ou nas universidades. A juventude é estigmatizada e reprimida. Países do mundo todo, do Reino Unido ao Chile, passando pelo Quênia, são marcados há anos por protestos estudantis, por vezes violentos, contra o aumento das taxas de inscrição nas universidades. Em toda parte, a morte de jovens por policiais gera revolta: veja as manifestações em Ferguson ou Baltimore, nos EUA; as três semanas de protestos na Grécia, em dezembro de 2008, após o assassinato do jovem Alexander Grigoropoulos por dois policiais; ou os cinco dias de revolta na Inglaterra após a morte de Mark Duggan, em 2011. Para estes poucos casos de protestos visíveis na mídia, existem dezenas de outros (como mostramos na entrevista “Aumento dos protestos: um fenômeno global” – em francês no link). Uma sociedade que já não consegue se reinventar leva as pessoas a manifestações de desespero e de raiva.

Com a globalização financeira, as desigualdades de renda e de riqueza se acentuam em uma velocidade inédita. Os Estados estão nas mãos dos mercados e dos financistas. As vitórias eleitorais mais progressistas podem se transformar em derrota pela simples vontade do Eurogrupo, em desprezo à vontade do povo, como os gregos experimentaram recentemente. Será que refletimos bem sobre como seria a revolta sem esperança? Essas fúrias radicais encontram-se hoje diante de tamanhos impasses que são capazes de abrir a porta a ofertas políticas de morte, como é a oferta do Estado islâmico.

É possível considerar a radicalização jihadista uma forma de revolta como outra qualquer? Ou seria mais adequado vê-la como uma nova ideologia totalitária e mortal que é preciso combater com todas as forças?

Ambos. Diante dos danos consideráveis e crimes que cometem, aqui e em todo lugar, devemos combatê-los. Mas se queremos ser eficazes, precisamos refletir sobre a revolta que está na raiz desses crimes. É preciso se perguntar o que pode levar um jovem de 20 anos de idade a se explodir ao lado de um McDonald’s em Saint-Denis (cidade da periferia parisiense). O que o leva até lá? O que podemos fazer para evitar que isso se generalize? A repressão são os bombeiros, mas temos de encontrar a origem do incêndio! Caso contrário, o recrutamento continuará, especialmente na França. A crise política é particularmente profunda em nosso país. A classe política está totalmente encerrada no espaço do poder e do Estado e cortada do resto da sociedade, em total dessintonia, e isso independentemente do partido. A política não é mais uma potência subjetiva capaz de reunir e de abrir possibilidades.

O peso e a força do movimento operário se apoiavam em sua capacidade de agregar populações variadas, incluindo imigrantes, em torno de uma esperança comum. O fim dos coletivos, da noção de classes sociais, da idéia de que existe um “nós” quase eliminou a consciência comum de uma ação ainda possível. O “Povo”, tão caro a Michelet, se deslocou com o fim do fordismo e a política da cidade. A emergência das temáticas sobre a imigração e a ascensão da Frente Nacional (partido francês da extrema direita) são contemporâneas ao desaparecimento de uma subjetividade de classe unificadora. Pagamos caro por este deslocamento. Quando jovens são mortos pela ação de policiais nas periferias, constata-se a indiferença de grande parte da França. Foi o que aconteceu em 2005. O isolamento e estigmatização dos jovens dos bairros pobres levaram-nos às revoltas ocorridas em toda a França. Desde então, este isolamento e esta estigmatização só fizeram aumentar.

Se o que é preciso é oferecer possibilidades de ação, e até mesmo de revolta, contra a desigualdade, a discriminação ou a brutalidade do neoliberalismo econômico, por que os novos movimentos sociais e as formas pacíficas de protesto não seduzem mais?

Sejamos claros: um mundo acabou, e não haverá como voltar atrás. Não há espaço para nostalgia. Temos de olhar para frente e fazer um balanço das experiências do presente. Após o movimento antiglobalização no início dos anos 2000, o ano de 2011 representou uma janela de esperança. A Primavera Árabe começa em janeiro, com a morte de Mohammed Bouazizi, um jovem formado e desempregado, em Sidi Bouzid (Tunísia), e depois, em fevereiro, no Egito. Em seguida, o movimento espanhol Indignados ocupa a Puerta del Sol em Madri, em 15 de Maio. Os gregos, da mesma forma, protestam contra a austeridade, ocupando a Praça Syntagma, em Atenas. Grandes protestos também eclodem no Chile e no Senegal. Em setembro, é a vez do movimento Occupy Wall Street, contra as regras do mercado financeiro e a apropriação da riqueza nos Estados Unidos, e os acampamentos se estendem até Tel Aviv. Todas estas mobilizações da primeira geração pós-comunista abriram um espaço, mas isso não resultou, até hoje, em um movimento verdadeiro de transformação política.

O que resta hoje da primavera árabe? Os manifestantes sírios foram massacrados pelo regime, os líbios se matam entre eles, o Egito está quase de volta à estaca zero, e a Tunísia não consegue atender às necessidades sociais da sua população. A Tunísia é, aliás, na frente da Arábia Saudita, o país com o maior contingente entre os combatentes estrangeiros do Estado islâmico, com cerca de 3000 pessoas. Esta desilusão com a Primavera Árabe é sensível quando se observa a curva dos atentados. Ela mostra o aumento dos ataques no Oriente Médio a partir da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003. O crescimento torna-se exponencial a partir de 2012, com o fim da primavera árabe e o início do caos geopolítico no Iraque e na Síria.

Por que não emergiu nenhuma perspectiva e alternativa política? E como a esquerda, ou o que resta dela, pode combater de forma eficaz a ascensão dessa nova ideologia totalitária?

O que chamamos por muito tempo de tradução política de uma luta para a mudança foi varrido pela experiência – e os fracassos – do século XX. O poder do Estado não aparece mais como o meio de transformação que deve ser alcançado, de uma forma ou de outra. Em 2011, manifestantes que derrubam Ben Ali na Tunísia e Mubarak no Egito deixam nas mãos de outros a tarefa de assegurar a transição e governar. Estamos testemunhando mobilizações admiráveis, mas que não se transforma em um meio de tomar o poder. Que não querem tomá-lo. Elas não têm “estratégia”. Por enquanto, apenas a experiência do Podemos, na Espanha, tenta transpôr a mobilização dos Indignados a uma estratégia de poder. Em outros países, os períodos eleitorais geram cada vez mais revoltas. As eleições não são mais momentos de solução pacífica de conflitos sociais, e não apenas na África. E quando não há protestos, há queda na participação eleitoral, no mundo todo.
 

Foi a política como espaço de mobilização popular e de construção do comum que perdemos e é o que precisamos reencontrar. Com uma ponta de provocação, digo que a urgência agora é menos a “desradicalização” e a hegemonia das marchas militares no debate político e mais a ascensão de outra radicalidade, uma radicalidade de esperança coletiva, capaz de secar na fonte o recrutamento jihadista. Temos de recuperar o sentido do futuro e do possível, e não cair na armadilha dos terroristas, que é justamente a mobilização para a guerra.

Tradução de Clarisse Meireles