Archive for 4 de janeiro de 2016

Soberania divide sociedade catalã

BARCELONA – Na porta do estádio Camp Nou, no dia 26 de dezembro, o clima era de festa. Não por mais uma conquista do Barcelona, mas pelo jogo da seleção da Catalunha contra os rivais de Euskadi, o País Basco. Mais que uma partida de futebol, o evento era um ato político pela independência da região.

Pelas ruas, centenas de bandeiras da Catalunha e barracas onde os torcedores podiam pintar o rosto ou fazer um cartão de identidade catalão, substituindo o da Espanha. Dentro de campo, apenas jogadores nascidos na região, como Gerard Piqué.

Com 17 minutos e 14 segundos, a arquibancada foi à loucura, como se fosse um gol do argentino Lionel Messi. Motivo: o instante marca simbolicamente o ano 1714, momento da derrota catalã para as tropas do rei Felipe V da Espanha e o enterro por 300 anos do sonho de um país soberano. A partir daquele minuto, os gritos de “independência” se repetiram.

Nesta quarta-feira, o jogo do Barcelona contra o Bate Borisov, pela Liga dos Campeões, foi marcado por um protesto barulhento de sua torcida

Mas o aparente entusiasmo em relação ao futuro da região esconde uma divisão na população local, com um impacto nas famílias, empresas e grupos de amigos. Na Catalunha, milhares de pessoas são filhas e netas de “imigrantes” – população de andaluzes, galegos e outros locais mais pobres da Espanha que, depois da 2ª Guerra, buscaram oportunidades de trabalho em Barcelona.

Nas eleições regionais de setembro, os independentistas, pela primeira vez, ficaram com a maioria no Parlamento Catalão e prometeram, para 2017, a separação da Espanha. O voto, porém, rachou a região. Em novembro, pesquisa da entidade CEO mostrou que 46,7% dos entrevistados eram favoráveis à independência. Contra eram 47,8%.

Discussões. Entre amigos e famílias, o tema contaminou as relações. Jose Castro e Joan Bosch se conheciam há mais de 30 anos e lutaram juntos pela democracia na Espanha, ambos pelo Partido Comunista. Hoje, não se falam.

“O nacionalismo é uma invenção. Brigamos tanto que optei por não falar mais com ele”, acusa Castro, comerciante de Barcelona e filho de “imigrantes”. Bosch, professor aposentado, insiste que chegou o momento “de se livrar da Espanha”. “Seríamos um país estável e muito mais desenvolvido”.

Entre parentes, muitas vezes a regra é não falar sobre o assunto para evitar crises. “Mas é como se tivéssemos um elefante na sala. Uma hora alguém nota, fala e a briga é certa”, contou Xavi Roca, universitário de Barcelona.

O assunto também domina as entrevistas com as principais estrelas da Catalunha. O jogador de basquete Pau Gasol foi diplomático para evitar problemas. “Sinto-me espanhol e catalão. Mas espanhol acima de tudo. A Espanha é meu país”. No entanto, ele defendeu que haja uma votação para definir o destino da região. Já o tenor José Carreras admite que a separação, que era “uma utopia”, hoje está “bastante próxima”. “O país está muito decidido”.

Política. Para especialistas, a crise teve a contribuição de Mariano Rajoy, primeiro-ministro do Partido Popular, e do líder catalão Artur Más. O enfrentamento entre os dois começou em 2012, quando o governo central insistiu em cobrar a contribuição que a Catalunha deveria pagar ao Estado e repartir para as regiões mais pobres da Espanha. Vivendo sua pior crise econômica em 30 anos, Madri precisava arrecadar.

Más converteu as exigências de concessão fiscal em um movimento pela independência. Rajoy, em vez de abrir um diálogo, fechou os canais de comunicação e alertou que não aceitaria nem mesmo um referendo para a consulta da população. O resultado, para sociólogos, foi o fortalecimento do sentimento independentista diante da recusa de Madri em dialogar.

Para a Associação Catalã de Sociologia, o processo aprofundou “o descontentamento e a indignação”. Somada à crise social, ao desemprego de mais de 20% e à corrupção, a separação entre Barcelona e Madri ganhou nova força. Para o sociólogo Jordi Estivill, o país não vive apenas uma “época de mudanças, mas uma mudança de épocas”.

O tom é similar ao do historiador da Universidade Autónoma de Barcelona Borja de Riquer, em uma avaliação publicada em setembro. “Vivemos o momento histórico mais transcendente dos últimos 300 anos. Pela primeira vez na história do catalanismo, existe uma parcela importante da sociedade que quer a independência”.

Para ele, hoje não é uma questão de pátria. “A realidade é que muitos catalães estão aderindo à ideia da separação por uma questão prática. O independentismo que aparece hoje não é ideológico, nem de identidade, nem nacionalista. É prático”, disse. Riquer admite, porém, que o processo será “difícil, tenso e com enfrentamentos que podem ser mito radicais”.

Trabalho. Essa mesma tensão se repete dentro de empresas. Na televisão pública da Catalunha, a TV3, poucos ousam dizer que são contra a independência, enquanto a programação é elaborada para promover a ideia de um novo Estado europeu. “Eu estava na máquina de café e uma colega se aproximou e disse no meu ouvido: eu não sou independentista”, contou uma jornalista à reportagem na condição de anonimato. “As pessoas temem perder o trabalho ao serem classificadas como contrárias à Catalunha”, disse.

Os críticos alertam que os recursos públicos têm sido usados para promover a ideia da independência e não a de lidar com a crise social que afeta a Espanha há anos. Um dos exemplos desses gastos é o reforço da presença do idioma catalão. Em 2015, 59 filmes foram dublados na língua da região, usando recursos estatais. Para 2016, a lista tem filmes como Macbeth, além de uma estratégia para aumentar as ofertas em DVD.

Ao Estado, a direção de Comunicação do governo catalão evitou usar o castelhano para falar com a reportagem e as respostas foram dadas em inglês. José Martin, professor de uma escola primária no centro de Barcelona, também se preocupa com o futuro de seus alunos. “Pela lei, hoje, eles têm apenas duas horas de aulas em espanhol por semana. Isso é muito pouco”.

Olga Gomez, que leciona para crianças de até 7 anos numa escola da periferia da capital, resolveu “ignorar as regras de apenas falar catalão com os alunos”. “O que você faz com os filhos de imigrantes pobres cujos pais mal falam espanhol?”

Entre os empresários, a divisão também é profunda. Em setembro, cerca de 500 empresários se reuniram para anunciar apoio ao projeto de que os cidadãos catalães possam ter o direito de ser consultados em um referendo. Mas nem todo o setor privado catalão está satisfeito.

Para o presidente da entidade Empresarios de Cataluña, Josep Bou, mais de mil empresas já deixaram a região desde o início do processo separatista, temendo que suas sedes fiquem fora da UE ou sejam prejudicadas por eventuais boicotes contra produtos catalães. “Não quero nem pensar o que seria a independência”, disse.

Pressão econômica. No restante da Espanha, uma série de sites e grupos em redes sociais promovem um boicote a produtos catalães. Num deles, o lema é claro: “Faça uma compra responsável e não permita que os nacionalistas usem seu dinheiro para fomentar o ódio”.

Em feiras por toda a Espanha, pequenos e médios empresários confessaram ao Estado que têm evitado usar o nome “Catalunha” em seus espaços. Numa nota a investidores, a agência Moody’s indicou que todos perderiam com a separação da Catalunha, tanto na região como na Espanha.

No Camp Nou, no último dia 26, porém, a ordem era a de torcer pela independência. Nem a derrota por 1 a 0 do time da casa para a seleção basca parecia um problema. “Pior seria perder para a Espanha”, riu um torcedor ao deixar o estádio.

Conferência do clima termina com acordo histórico contra aquecimento global

ultimosegundo.ig.com.br


Após duas semanas de intensas negociações, a COP21 (conferência do clima da ONU) terminou neste sábado (12) em Paris com um acordo histórico, que pela primeira vez envolve quase todos os países do mundo em um esforço para reduzir as emissões de carbono e conter os efeitos do aquecimento global.

O ponto central do chamado Acordo de Paris, que valerá a partir de 2020, é a obrigação de participação de todas as nações – e não apenas países ricos – no combate às mudanças climáticas. Ao todo, 195 países membros da Convenção do Clima da ONU e a União Europeia ratificaram o documento.

Laurent Fabius, presidente da COP 21, durante anúncio da proposta de acordo sobre o clima
Divulgação/COP 21 – 12.12.15

Laurent Fabius, presidente da COP 21, durante anúncio da proposta de acordo sobre o clima

O objetivo de longo prazo do acordo é manter o aquecimento global “muito abaixo de 2ºC”. Esse é o ponto a partir do qual cientistas afirmam que o planeta estaria condenado a um futuro sem volta de efeitos devastadores, como elevação do nível do mar, eventos climáticos extremos (como secas, tempestades e enchentes) e falta de água e alimentos.

Em referência ambiciosa, comemorada por ambientalistas e países menos desenvolvidos, o texto faz referência a esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC. Também define que os pontos do acordo serão revisados a cada cinco anos, para direcionar o cumprimento da meta de temperatura e dar transparência às ações de cada país.

Sobre a questão do financiamento climático, ou seja, quem irá pagar a conta das ações necessárias para o sucesso do acordo, acertou-se que países desenvolvidos irão bancar US$ 100 bilhões por ano em medidas de combate à mudança do clima e adaptação em países em desenvolvimento. Eventuais injeções adicionais de recursos ficaram para 2025, refletindo a divisão que marcou as discussões sobre o assunto na COP-21.

“Isso representa uma perda para os países em desenvolvimento, que queriam ver uma indicação do financiamento pós-2020 na mesa em Paris. Por outro lado, representa uma perda também para a posição dos desenvolvidos, que ameaçaram na noite de sexta-feira tirar os US$ 100 bilhões da mesa se não conseguissem aumentar a base de doadores para incluir países emergentes”, afirmaram os jornalistas Cláudio Ângelo e Cíntya Feitosa, que acompanharam a conferência pela rede de ONGs brasileira Observatório do Clima.

Acordo ‘híbrido’

Em estrutura planejada para obter apoio dos EUA ao acordo, apenas alguns elementos do documento serão “legalmente vinculantes”, ou seja, terão força de lei internacional como regulamentação da Convenção do Clima da ONU, assinada em 1992 no Rio de Janeiro. Para outros pontos, o cumprimento será voluntário.

Essa foi a saída encontrada diante da constatação de que um acordo com metas obrigatórias de redução de emissões dificilmente seria aprovado pelo Senado dos EUA, que tem maioria republicana e fortes opositores à agenda climática do presidente democrata Barack Obama.

Portanto, o documento não traz menções concretas a metas de redução de emissões por país – praticamente toda essa parte do acordo será voluntária. Cada nação deverá cumprir suas metas nacionais, as chamadas INDCs, que seguem o que cada governo considera viável, analisando o cenário social e econômico local.

Embora tenham considerado o acordo histórico, ambientalistas fizeram ressalvas em relação a esse ponto. “Os cortes de emissões prometidos pelos países agora ainda são totalmente insuficientes, mas o acordo como um todo manda uma forte mensagem a empresários, investidores e cidadãos: a energia agora é limpa e os combustíveis fósseis pertencem ao passado”, disse a cientista Corinne Le Quere, diretora do Centro Tyndall para Pesquisa do Clima, da Inglaterra.

“O texto deixa essencialmente nas mãos de cada país, de forma voluntária, a decisão sobre ampliar as ações de corte de emissões e o financiamento aos países menos desenvolvidos. Isso será viável caso os países mantenham o espírito de engajamento que tornou Paris possível. Mas, se essa vontade falhar, corremos o risco de chegar a 2030 ainda numa trajetória de 3ºC, algo incompatível com a civilização como a conhecemos”, disse Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima.

Papel do Brasil

O Brasil teve protagonismo nas discussões na COP21, sobretudo como mediador de conversas com países em desenvolvimento reticentes a certos pontos do acordo, como Índia e China. Na reta final da conferência, aderiu à chamada “coalizão da ambição”, grupo de países que atuou nos bastidores por acordo mais ambicioso.

Integram o grupo a União Europeia e países como EUA, México e Colômbia, além de países mais pobres e vulneráveis ao aquecimento global. “É uma iniciativa feita pelas Ilhas Marshall (país ameaçado pela elevação do nível dos oceanos), que mobilizou vários países para que pudéssemos fazer progressos (nas negociações) e ficar abaixo (da elevação da temperatura) de 1,5˚C e trabalharmos juntos”, disse a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, ao explicar a participação.

COP21 reuniu ambientalistas de todo o mundo durante 13 dias de negociação entre 195 países
BBC

COP21 reuniu ambientalistas de todo o mundo durante 13 dias de negociação entre 195 países

As últimas horas de conversas – que incluíram três noites seguidas de negociações – representaram o cume de um processo de quatro anos para produzir o primeiro pacto internacional de limitação das emissões de gases estufa.

Na plenária da manhã de sábado da conferência, quando os organizadores apresentaram a proposta final de acordo, o clima era de festa, embora as autoridades tenham insistido na necessidade de aprovação pelo delegados.

O ministro das Relações Exteriores da França, Laurent Fabius, disse que o novo texto representava uma “virada” e apresentava um acordo “diferenciado, justo, durável e legalmente vinculante”.

O presidente da França, François Hollande, afirmou que “o acordo definitivo para o planeta” estava “aqui e agora”. E o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, convocou os diplomatas a “encerrar o trabalho” porque “todo o mundo estava assistindo”.

Em busca de alternativas para o déficit habitacional brasileiro

diplomatique.org.br

 Mariana Dias Simpson:

É possível alcançar escala e respeitar processos de construção de moradias? Na Tailândia, país com 67 milhões de habitantes no Sudeste Asiático, métodos avançados de autoconstrução de moradias vêm conseguindo alcançar uma escala que muitos acreditam ser possível apenas por grandes empreiteiras.

O programa Baan Mankong (Habitação Segura), do governo federal, pretende ser “um processo de desenvolvimento de habitação impulsionado pela comunidade, onde o morador é o principal ator, o principal responsável pela solução de problemas e o principal mecanismo de construção” (Codi, 2011a). A iniciativa canaliza fundos do governo sob a forma de subsídios para infraestrutura e crédito para a construção de unidades habitacionais, repassados diretamente para as comunidades de baixa renda organizadas em cooperativas. Todas as comunidades estão articuladas em redes e mantêm contato entre si por meio de reuniões e visitas de intercâmbio.

Empoderamento

O Baan Mankong baseia-se na capacidade de as pessoas gerirem suas necessidades coletivamente e no que as comunidades informais já desenvolveram (Boonyabancha, 2005). Com o apoio do governo e de uma forte rede comunitária de caráter nacional, as famílias controlam os recursos, contribuem com parte da verba, negociam soluções, planejam e gerenciam a construção de infraestrutura e de suas casas. Trata-se de um método bem-sucedido e avançado de “autoconstrução”.1 O Baan Mankong promove “muito mais do que melhorias físicas”, ele estimula mudanças profundas na estrutura social e nas relações dos moradores de favelas com autoridades e outros atores da cidade (Boonyabancha, 2005).

O programa é executado pelo Instituto de Desenvolvimento de Organizações Comunitárias (Codi, na sigla em inglês), que iniciou sua atuação com um aporte inicial de US$ 85 milhões. Entre 2003 e 2008, o instituto investiu US$ 65 milhões em subsídios para infraestrutura e outros US$ 66 milhões em empréstimos de fundos rotativos para compra de terra e construção de habitação (UN-Habitat, 2009). Esse valor foi suficiente para financiar 858 projetos em 1.546 comunidades de 277 cidades, nas 76 províncias da Tailândia, construindo um total de 90.813 unidades habitacionais (Codi, 2011b). Ou seja, é um investimento público de US$ 1.440 por família.

Por funcionar como um facilitador, e não como um órgão de entrega de unidades habitacionais prontas, como no caso do Minha Casa Minha Vida, o programa é capaz de lidar com a complexidade e a variabilidade das necessidades habitacionais de cada família e localidade. “O projeto é definido pelas pessoas, não por arquitetos que nunca viveram no local. E se há moradoras, mulheres, envolvidas na definição do projeto, é porque estamos fazendo direito” (Boonyabancha, 2005, p.26).

O Codi fornece suporte técnico por meio de “arquitetos comunitários”, que apresentam soluções variadas de design e infraestrutura para que as famílias decidam coletivamente o que melhor atende a suas necessidades e recursos. Por exemplo, uma família com idosos construirá uma casa com apenas um pavimento, enquanto uma numerosa fará mais quartos e uma que possui um negócio em casa pode optar por transformar seu primeiro pavimento em uma loja ou uma pequena empresa.

Para Somsook Boonyabancha (2005, p.27), diretora do Codi por dez anos e agora diretora da Aliança Asiática pelo Direito à Moradia,2 a principal mudança de paradigma do Baan Mankong está no fato de o programa ser ativamente demandado pelas comunidades, em vez de ofertado pelo governo. Ainda que as iniciativas brasileiras também respondam a anos de luta e reivindicações, a diferença entre os dois casos é tangível e pragmática.

No Rio de Janeiro, projetos e localidades para a construção de moradia ou para urbanização de favelas são escolhidos “de cima para baixo”. Quase sempre moradores de favelas são apenas informados pela imprensa de que tiveram a “sorte” de ser incluídos no próximo programa governamental.

Presenciei em diversas ocasiões lideranças comunitárias especulando sobre as razões pelas quais suas comunidades eram objeto do PAC/Favelas. Um exemplo recente foi o Morar Carioca, programa que nem chegou a sair do papel. As comunidades seriam priorizadas “por ordem de aparição”: as que mais impactariam a realização das Olimpíadas de 2016 seriam urbanizadas primeiro. Ou seja, as decisões vêm “de cima” e estão desconectadas das demandas das pessoas que vivem “em baixo”. Da concepção à construção, a participação real dos moradores (no Brasil tecnicamente chamados de “beneficiários”) é praticamente inexistente.

Na Tailândia, as comunidades precisam se inscrever (“aplicar”) no programa Baan Mankong coletivamente e comprovar que estão suficientemente organizadas para conduzir as intervenções, negociadas diretamente com a comunidade. Tal comprovação é feita por meio da realização de poupanças coletivas, descritas a seguir.

Com esse mecanismo, os moradores sentem que são os principais agentes de mudança, o que reforça laços comunitários, o sentimento de pertencimento e de propriedade. Embora a exigência de “organização comunitária” possa excluir muitas comunidades, seu cumprimento é estratégico para o sucesso do programa. E é importante notar que não é necessário que todo o assentamento se mobilize: o programa pode ser colocado em prática apenas entre algumas dezenas de vizinhos, inspirando os demais a fazer o mesmo. Ainda assim, o projeto precisa incluir todos os moradores envolvidos – os mais pobres e os menos pobres, proprietários e inquilinos. No caso de reconstrução total (demolição da casa preexistente e construção de nova unidade) ou realocação para um terreno próximo, a terra em geral é dividida igualmente entre as famílias participantes.

A habitação, antes informal, torna-se formal, porém, na maioria dos casos, sua propriedade é coletiva por dez anos – tempo em que o programa considera que as famílias estão mais “vulneráveis”, por terem de pagar o empréstimo e por desejarem investir em acabamentos e mobiliário novo. Boonyabancha (2005) afirma que essas condições não são “sentimentalistas”, mas estratégias criadas para responder a questões surgidas ao longo da aplicação do programa.

Poupança coletiva

Na Tailândia, o Codi investe entre US$ 750 e US$ 1.625 por família em subsídios para a instalação de infraestrutura (água e esgoto, iluminação pública, espaços públicos e/ou o que mais as comunidades considerarem necessário), além de 5% do valor total para subsidiar custos administrativos da cooperativa e sua participação em redes. Para a construção ou melhorias habitacionais individuais, as famílias organizadas têm acesso a crédito subsidiado e apoio técnico para a produção de habitação.

Tal como quando se opera com um banco, as comunidades organizadas são obrigadas a fazer um depósito de 10% do valor total da obra para garantir seu empréstimo. Os empréstimos são concedidos às cooperativas (corpo jurídico da comunidade), com uma taxa de juros de 4% ao ano – muito menor do que as taxas de mercado, mas alta o suficiente para garantir a sustentabilidade a longo prazo dos fundos rotativos do Codi. As cooperativas, por sua vez, fazem empréstimos individuais às famílias a uma taxa de juros que varia entre 5% e 7% ao ano, também com o objetivo de deixar uma margem para garantir a sustentabilidade financeira e organizacional da própria cooperativa.3 É importante notar que os empréstimos concedidos pelo governo são para o coletivo (a cooperativa), e não para indivíduos.

Um ditado comum no Codi é “sem poupança, sem casa”. Mas como as comunidades podem pagar depósitos? Os moradores fazem isso por meio da criação de “grupos de poupança”, uma prática rara na América Latina, mas comum no Sudeste Asiático e em partes da África. As comunidades pobres da Ásia têm longa tradição em criar poupanças comunitárias para investir em melhorias coletivas e para a cessão de empréstimos individuais a juros baixos, visando ao bem-estar social dos moradores.

Para Boonyabancha (2005), a administração das finanças pelas próprias comunidades quebra um paradigma comum a projetos sociais: “Alguém de fora sempre segura a carteira, enquanto as pessoas (por não terem tido a oportunidade de aprender a lidar com finanças) ficam com a mão estendida. A poupança faz a comunidade crescer. É a diferença entre fazerem para você e fazer por você mesmo. Se uma comunidade não sabe administrar recursos, estará para sempre condenada a ter seu processo de desenvolvimento determinado por terceiros”.

O Codi (2011b) estima que existam cerca de 50 mil grupos de poupança na Tailândia, somando mais de US$ 760 milhões. De fato, há comunidades que optam por participar do Baan Mankong sem pegar empréstimo, usando recursos próprios, utilizando apenas o apoio técnico do instituto e o subsídio para infraestrutura coletiva. “Mecanismos de poupança e crédito não são apenas para juntar dinheiro, são para juntar pessoas” (Burra, 2000).

Líderes comunitários concordam que a poupança não é um problema. Antes mesmo de o programa ser iniciado na comunidade, cada família já tendia a economizar entre US$ 4 e US$ 17 por mês. Quando a obra é concluída e as famílias precisam começar a pagar pelo empréstimo tomado junto à cooperativa, o valor geralmente aumenta para entre US$ 25 e US$ 50 por mês, dependendo do valor que cada família optou por tomar. Os níveis de inadimplência são baixíssimos.

Segundo um líder da comunidade Bang Pua, a obrigação de pagar o empréstimo tende a empurrar as pessoas para o mercado de trabalho: “Antes do Baan Mankong, era a mesma coisa em todas as casas. Uma pessoa trabalhava, seis ou sete estavam desempregadas. Com o projeto de desenvolvimento e a necessidade de pagar o empréstimo, as pessoas se sentiram estimuladas a conseguir um emprego, e um ajudou o outro a encontrar trabalho. As pessoas se tornaram mais ativas e muitas também aprenderam uma profissão durante as obras” (entrevista de campo, maio de 2011).

Autossuficiência e direitos

Há um mundo de semelhanças e também de diferenças entre os assentamentos informais e a maneira como a questão é tratada no Rio de Janeiro e em Bangcoc. Comunidades tailandesas contam com um nível de mobilização que as brasileiras deixaram de ter, em razão dos anos de controle político e violento que fragmentaram esses territórios. Ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro conta com um nível de políticas públicas e de planejamento urbano para essas áreas que não existe em Bangcoc. E, claro, existem diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas.

Talvez a diferença cultural mais óbvia entre os dois casos seja que os movimentos sociais tailandeses buscam a autossuficiência, refletindo a cultura de um país onde “é esperado que as pessoas cuidem de si mesmas” (Kitti, 2011). No Brasil, as organizações seguem a abordagem dos direitos, o que também reflete a história e a cultura locais. Nosso Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, com a defesa do “direito à cidade” e, entre outros pontos, “o direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos”, é admirado em todo o mundo. A estratégia escolhida para a batalha por aqui não é a do “faça você mesmo”, mas a exigência do cumprimento de direitos.

Um exemplo concreto de diferença entre as duas abordagens está em debates sobre padrões construtivos: em Bangcoc, lideranças fazem lobby por regulamentos mais flexíveis para a legalização de imóveis, argumentando que as normas não são para os pobres; no Brasil, como unidades habitacionais subsidiadas são entregues prontas pelo governo, os padrões mínimos são vistos como conquistas, e a luta é para melhorá-los e certificar-se de que o Estado os cumpra.

Turner (1988) observou que as pessoas tendem a aceitar padrões inferiores e problemas construtivos quando elas têm o senso de propriedade, quando as condições de moradia são um reflexo de seu próprio suor. Isso provavelmente está refletido na rápida degradação dos conjuntos habitacionais brasileiros, nos quais, além do péssimo padrão construtivo, famílias tendem a não tomar para si a responsabilidade pela manutenção, principalmente de espaços coletivos, uma vez que não necessariamente reconhecem o “problema” como seu, pois não participaram das decisões ou da construção das unidades habitacionais, tampouco tiveram a oportunidade de construir um senso de comunidade ao longo do processo.

Levando a meta de autossuficiência adiante, a União Nacional de Organizações de Comunidades de Baixa Renda (Nulico) começou a recolher US$ 7 por família por ano com o objetivo de reduzir sua dependência de fundos do governo. Esse “Fundo de Desenvolvimento Urbano” cresceu com os anos e é hoje uma realidade que se espalha pela Ásia, já sendo capaz de financiar, independentemente, diversos projetos nos moldes do Baan Mankong.

Por outro lado, a crença de que as comunidades são capazes de resolver seus problemas por conta própria pode criar ilusões sobre o que é possível ser feito sem intervenção governamental, reforma ou ruptura, protegendo o status quo quando é este que precisa ser mudado (Marcuse, 1992).

O desafio da escala

Alcançar escala é um desafio frequentemente enfrentado por iniciativas de desenvolvimento em todo o mundo. O Codi acredita que ele pode ser vencido ao permitir que “as pessoas se tornem a escala da solução” (Boonyabancha, 2011), uma vez que o Baan Mankong atua apenas como um facilitador do desenvolvimento e trabalha com fundos rotativos. Com esse entendimento, desde que comunidades continuem interessadas em participar do programa e pagando seus empréstimos, sua escala é teoricamente ilimitada.

Na prática, porém, o principal fator limitante para o fim do déficit habitacional urbano, tanto no Brasil como na Tailândia, é o acesso à terra urbanizada. No caso do Baan Mankong, a questão se torna visível quando o Codi não pode apoiar comunidades que ocupam terra sob disputa4 – situação recorrente em Bangcoc, que pode comprometer a escala do programa.

Favela é cidade

O ponto fraco do programa asiático é não dar suficiente atenção à integração de suas comunidades com o resto da cidade. As debilidades de projetos de autoconstrução são particularmente evidentes quando se trata do acesso à terra, do planejamento de infraestrutura e da prestação de serviços públicos que são fornecidos apenas no nível municipal, e não no de projeto a projeto (Marcuse, 1992, p.15). Vemos, portanto, que uma abordagem posta em prática somente pela comunidade não é capaz de oferecer uma solução completa. “Autonomia significa autogestão interdependente, não autossuficiência independente” (Turner, 1988, p.15).

No entanto, dadas as políticas urbanas progressistas já colocadas em prática no Rio, como o Favela Bairro, tem-se aqui a compreensão da importância da integração de áreas informais com o resto da cidade. Como resultado de uma história de luta e resistência, nossos movimentos de moradia organizados têm a expertise necessária para tornarem-se os protagonistas de seu desenvolvimento, componente faltante no modelo brasileiro atual. A experiência do Grupo Esperança de Jacarepaguá, realizada no âmbito do Minha Casa Minha Vida Entidades no Rio de Janeiro, é prova disso.

Isso significa romper, de uma vez por todas, com um paradigma que insiste na entrega de unidades habitacionais prontas e insustentáveis. Morar é um verbo (Turner, 1972). Para o pobre urbano, a moradia é ainda um longo processo incremental e pessoal de construção de comunidade.

O “problema” do processo de construção de moradias sustentáveis é que ele contraria poderosas empreiteiras que garantem contratos multimilionários enquanto generosamente patrocinam campanhas políticas. Além disso, “processos” não trazem o benefício político imediato que vem com a entrega de chaves a uma família pobre por uma autoridade em evento público.

No entanto, a crença de que a informalidade pode ser substituída por uma moradia formal entregue pronta pelo Estado é inatingível, cara e ineficiente. É um “enxugamento de gelo” com consequências nefastas para essas famílias e para a cidade como um todo. Morar é um processo que ocorre na cidade e que precisa ser protagonizado pelo morador para ser sustentável.

Mariana Dias Simpson

Mariana Dias Simpson é pesquisadora do Ibase

Ilustração: Mariana Dias Simpson

1              Para a execução das obras, por exemplo, as comunidades organizadas podem optar por realizar mutirões, capacitar e contratar moradores (remunerados), contratar empreiteiras e/ou contratar o trabalho da “Rede de Pedreiros Comunitários”, formada por grande grupo de profissionais oriundos de diversas comunidades e que já passaram pelo programa.

2    A proposta do Baan Mankong se espalhou por vários países da Ásia e, por meio da ONG Coalizão Asiática para Ação Comunitária (Acca), já foram ou estão sendo feitos projetos em 215 cidades de dezenove países, sendo 146 habitacionais de grande porte (beneficiando diretamente mais de 10 mil famílias) e 2.139 de pequeno porte. Foram criados também 136 fundos de desenvolvimento urbano, e 11.339 grupos de poupança estão organizados com mais de 400 mil usuários ativos. A ação, inicialmente independente, está fomentando políticas públicas em diversos países e estimulou a criação de instituições do formato do Codi no Camboja, Nepal e Mongólia.

3    Dados coletados pela autora durante visita de campo em maio de 2011.

4    Mais explicitamente que no Rio, assentamentos informais são considerados invasões ilegais e sujeitos à remoção em Bangcoc. Como um órgão governamental que trabalha com fundos públicos, o Codi não pode interferir nem urbanizar comunidades localizadas em terras sob disputa. Em Bangcoc, embora uma parte da terra ocupada por favelas pertença a proprietários privados, assentamentos informais geralmente ocupam terras pertencentes a outros setores do governo ou à família real, que é filantrópica e tem status de semideus. Como no Rio de Janeiro, cerca de 20% dos 8 milhões de habitantes de Bangcoc vivem em assentamentos informais. Programa do governo tailandês lançado em 2003 é exemplo do que pode ocorrer quando o Estado passa a atuar como facilitador, em vez de provedor de habitação subsidiada, permitindo que moradores de favelas definam e apliquem suas próprias soluções

Referências bibliográficas

BOONYABANCHA, S. “Scaling up slums and squatters settlements upgrading in Thailand” [Regularização de favelas e assentamentos precários avançam na Tailândia]. Environment and Urbanisation, v.17, n.1, abr. 2005, p.21-46.

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TURNER, J. F. C. Building Community: a Third World Case Book [Comunidade construtora: um livro de caso do Terceiro Mundo]. Bertha Turner, Building Community Books, Londres, 1988.

TURNER, J.; FICHTER, R. (Eds.). Freedom to Build: Dweller Control of the Housing Process[Liberdade para construir: controle popular sobre o processo habitacional]. Nova York, The Macmillan Company, 1972.

UN-HABITAT. “Community development fund in Thailand: a tool for poverty reduction and affordable housing” [Fundo de desenvolvimento comunitário na Tailândia: uma ferramenta para redução da pobreza e aquisição de moradia]. In: The Human Settlements Financing Tools and Best Practices Series[As melhores práticas e as ferramentas financeiras de assentamentos humanos]. Nairóbi, United Nations Human Settlements Programme, 2009.

Deportações na República Dominicana

diplomatique.org.br

 Rodrigo Charafeddine Bulamah:


Fronteira entre Haiti e República Dominicana

Na República Dominicana, tudo é negócio.” Debaixo do forte sol de verão que toma conta da ilha que o país divide com o Haiti, Mariano, um senhor de meia-idade, descreve o labirinto burocrático que enfrenta todos os anos para conseguir os documentos necessários para matricular sua filha na escola.

São papéis, assinaturas e carimbos às dezenas, escritórios que mudam de lugar da noite para o dia e funcionários que se disponibilizam a agilizar o processo por alguns milhares de pesos dominicanos (R$ 1 = 13 pesos dominicanos).

Fosse essa a história de um haitiano, teríamos um exemplo claro da atual política de imigração empregada pelo governo da República Dominicana. Porém, Mariano é dominicano. Ele já testemunhou cenas de abuso de autoridade nas ruas da “primeira cidade das Américas”, como é conhecida Santo Domingo. E já viu policiais extorquirem imigrantes e os expulsarem das ruas, fazendo uso da força.

São cenas, no entanto, que dificilmente se repetirão tão cedo. Ao menos não na região central. “Eles estão sendo deportados”, disse uma comerciante que ouvia a conversa com Mariano. Ao que ele replicou: “Não, ninguém está sendo deportado. Por enquanto, eles estão indo por conta própria”.

A situação atual é o desfecho de uma série de alterações nas políticas de reconhecimento da cidadania na República Dominicana. Operando por um princípio de jus solis, a Constituição dominicana garantia a cidadania a todas as pessoas nascidas em território nacional. Esse princípio foi alterado em 2010, quando a Justiça estabeleceu que a nacionalidade seria atribuída por descendência.

Em 2013, depois da sentença 168/13, a nova lei passou a agir retroativamente, contando a partir de 1929, e atingiu particularmente haitianos e dominicanos de origem haitiana, considerados pessoas “em trânsito” – mesmo as famílias que estão há gerações na República Dominicana. O argumento é de que a nacionalidade lhes foi conferida por engano, tal como consta em um site oficial do governo (http://leonelfernandez.com/articulos/the-dominican-republichaiti-immigration-process/). Calcula-se que ao redor de 300 mil pessoas foram atiradas num limbo jurídico, perdendo o direito à cidadania.

O ano de 1929 foi escolhido numa tentativa de desatrelar o novo princípio jurídico da figura do ditador Rafael Trujillo, que governou o país de 1930 a 1961, fazendo da República Dominicana sua própria plantation. Desde o início, Trujillo executou um plano de “dominicanização da fronteira”, destruindo um rico universo social marcado por trocas, trânsitos e liberdades, no qual as diferenças econômicas e sociais com o Haiti eram pouco significativas.

Seu projeto político ganhou um viés ideológico centrado, sobretudo, na consolidação do anti-haitianismo, política identitária e pseudocientífica baseada na reprodução de preconceitos étnico-raciais com relação à população vizinha. Diferenças como a língua e a origem colonial ganharam um peso identitário, apagando traços históricos culturais compartilhados entre os dois lados da ilha. Uma das consequências dessa política foi o Massacre de 1937, conhecido como “El Corte”, um ritual de sangue e silenciamento que instituiu simbolicamente a fronteira entre os dois países ao custo de dezenas de milhares de vidas.

Cinquenta e quatro anos após seu assassinato, o ditador parece ser o fantasma por trás dessa nova crise humanitária.

A presença de haitianos na República Dominicana não difere de outros contextos fronteiriços em que as diferenças econômicas entre países próximos ocasionam fluxos de imigrantes em busca de trabalho e acesso a serviços. O que muitas vezes se ignora é a contribuição desses imigrantes à produção de riquezas nacionais. Segundo as Nações Unidas, imigrantes haitianos, que trabalham principalmente no corte da cana e nas plantações de arroz, no setor turístico e na construção civil, contribuem com 5,4% dos US$ 64 milhões do PIB dominicano.

Contudo, não é somente a questão econômica que está em jogo. O que está no centro do debate é uma nova política de cidadania. No dia 17 de julho, chegou ao fim o Plano Nacional para a Regularização de Estrangeiros em Situação Irregular, um dos principais feitos do governo de Danilo Medina, eleito em 2012, que tenta reeleição no ano que vem.

O plano foi uma resposta às críticas de Estados e órgãos internacionais à sentença 168/13 e um esforço para resolver o que é localmente conhecido como “o problema haitiano”. No entanto, o plano teve efeitos controversos, ao exigir de migrantes pobres que trabalham no setor informal o pagamento de elevadas taxas e a apresentação de comprovantes de emprego e de residência para conseguirem documentos.

Helène, haitiana que vive na periferia de Santo Domingo desde 2010, conseguiu com muito custo solicitar sua documentação, mas ainda não sabe se será naturalizada, se lhe darão um visto de trabalho ou de residência. Ela contou com a ajuda do Centro Bonó, ONG dominicana que trabalha auxiliando imigrantes e pessoas em situação de risco. Outros haitianos, contudo, foram vítima de falsários e advogados oportunistas.

Ana Geraldo, advogada da ONG, diz que as informações prestadas pelo governo dominicano sobre o plano nunca foram claras, prejudicando os haitianos e dominicanos interessados em se regularizar. Ana María Belique, dominicana de pais haitianos e representante do Movimento Reconocido, acrescenta que a existência de planos coincidentes e o excesso de categorias atrapalham o processo. Ela foi uma das 55 mil pessoas que, mesmo nascidas na República Dominicana, perderam a cidadania.

Na corrida pela reeleição em 2016, veem-se cartazes com a imagem de Medina por todo o país. A partir do fim do Plano de Regularização, o presidente e diversos embaixadores apresentaram-se a órgãos internacionais para tentar justificar as recentes políticas de seu governo.

Dividido entre conseguir o apoio interno de ultraconservadores e não perder os auxílios políticos e econômicos da Europa e dos Estados Unidos, o governo fala em conspiração internacional e defende-se com argumentos sobre a importância da soberania nacional. Em 8 de julho, em sessão da Organização dos Estados Americanos (OEA), o governo haitiano mostrou-se crítico em relação à nova política e preocupado com o fluxo de pessoas que começa a chegar ao país. Em resposta, o governo dominicano aprovou a visita de uma missão internacional que acompanhou o processo atual de regularização entre os dias 10 e 14 de julho, emitindo um relatório crítico da situação.

A partir de agosto, após a entrega dos vistos aos imigrantes e da resolução da situação dos nascidos na República Dominicana, começam as ações da polícia de imigração para deportar do território nacional pessoas de ascendência haitiana que não conseguiram correr contra o tempo e enfrentar a desorganização e a crueldade burocráticas descritas por Mariano.

Por ora, entre haitianos e dominicanos de origem haitiana, uma categoria que o governo insiste em dizer que não existe, o medo e os rumores de um endurecimento das deportações e de violências oportunistas que adquiriram o respaldo do Estado têm sido políticas efetivas de expulsão.

Por outro lado, manifestações estão tomando conta da capital, chamando atenção para o fato de que não se trata somente de uma questão interna. Por meio de cartazes e frases em coro, mensagens são veiculadas conectando os eventos recentes do país às formas diversas de discriminação e violência contra populações negras em todo o globo, como nos dizeres “black lives matter” (vidas negras importam), em referência à chamada que se popularizou após as manifestações de Ferguson, nos Estados Unidos. No fundo, a luta que se trava na República Dominicana não parece tão distinta do que a que se vive em outros contextos globais.

Dados do governo dominicano falam em 40 mil pessoas que já cruzaram a fronteira, número provavelmente subestimado. Do lado haitiano, campos provisórios estão sendo montados para receber os imigrantes, ecoando uma imagem que se tornou habitual no Haiti após o terremoto de 12 de janeiro de 2010.

Rodrigo Charafeddine Bulamah

Rodrigo Charafeddine Bulamah é antropólogo, faz doutorado na Unicamp e trabalha com história e ecologia no Haiti e na República Dominicana

Ilustração: Alex Polmos
(de Santo Domingo, República Dominicana)

Medo e ódio: a nova direita alemã

Martin Bahrman, político da cidade de Meissen, na Saxônia, preparava-se para falar num debate na Câmara sobre abrigos para refugiados, quando uma bola de paintball bateu na sua testa. Como membro do Partido Democrático Liberal (FDP), o assento de Bahrman na Câmara fica no fundo da sala e a galeria onde estão os visitante está logo atrás dele. A bola partiu de alguém do público. Quando ele voltou à sala, deparou-se com um mar de rostos hostis. Embora 80 pessoas assistissem ao debate, ninguém admitiu ter visto o culpado. O representante do FDP e seus colegas foram insultados e chamados de “traidores do povo alemão”.

A bola atirada em Meissen não chamou muita atenção da mídia, mas diz muito sobre o sentimento da população na Alemanha, país em que muitas pessoas estão unidas contra o Estado, suas instituições e autoridades eleitas. E é o país onde os incidentes da violência por parte da direita vêm aumentando e abrigos para refugiados são incendiados quase que diariamente.

 
 

Trata-se de uma minoria radical a responsável por grande parte da xenofobia e violência. As dezenas de milhares de voluntários que ajudam nos abrigos diariamente ainda predominam. Mas ao mesmo tempo uma nova direita vem crescendo. Ela é muito mais hábil e está seduzindo mais gente que seus predecessores neonazistas.

A nova direita provém do centro burguês da sociedade e abrange intelectuais com valores conservadores, cristãos devotos e cidadãos enfurecidos com a classe política.

O novo movimento atrai também pessoas que, do contrário, poderiam ser descritas como de esquerda: admiradores de Putin, por exemplo e ativistas antiglobalização. Movimentos que vêm se juntando e que nunca foram parte do mesmo campo. Juntos, formaram um movimento de protesto clamoroso que tem radicalizado o clima no país por meio de manifestações e uma ofensiva digital pela internet.

O Estado e seus órgãos, como governo e Parlamento, se tornaram objeto de uma espécie de escárnio jamais visto desde a fundação da Alemanha pós-guerra. Mais uma vez os representantes políticos são denunciados como “traidores do seu povo”, o Parlamento como uma “câmara fofoqueira” e os jornais são taxados de “conformistas”. Todos insultos que têm origem no passado sombrio do país.

Os mais de um milhão de refugiados que chegaram à Alemanha em 2015 hoje funcionam como catalisadores desse novo momento de direita. O temor dos estrangeiros, de serem “sufocados” por eles, está unindo a nova direita e atraindo mais “cidadãos preocupados” para suas fileiras.

Inquietação. A sociedade alemã parece mais inquieta do que nunca. Numa pesquisa realizada pelo TNS Forschung para a Spiegel, 84% dos indagados disseram que o grande número de refugiados que chega hoje à Alemanha provocará mudanças duradouras no país. Cerca de 54% estão preocupados de que o perigo do terrorismo aumente em virtude da quantidade de refugiados no país. Para 51%, os crimes deverão aumentar. E 43% disseram se preocupar com um aumento do desemprego.

As respostas refletem a profunda intranquilidade na sociedade. Muitas pessoas parecem ter perdido a orientação. Sentem que suas preocupações não são levadas a sério pelo governo federal, que não dá a impressão de que mantém sob controle a crise dos refugiados.

Mas são os conservadores de Angela Merkel, os cristãos democratas, juntamente com a União Cristã Social na Baviera, que estão mais inquietos. Seus membros e funcionários estão divididos entre a lealdade à uma chanceler que abriu as portas da Alemanha para os refugiados e o seu desejo de oferecer um espaço político para aqueles que estão preocupados com esse fluxo migratório. Na verdade, o destino político de Merkel em parte será decidido pelo modo como ela vai lidar com essa nova direita.

A fundação Otto Brenner Stiftung, ligada aos sindicatos trabalhistas alemães, publicou um estudo sobre o populismo de direita na Alemanha. A fundação concluiu que os que apoiam a nova direita não se identificam claramente como sendo de direita.

Violência. Casos de violência por parte da direita aumentaram muito nos últimos meses e os ataques são cada vez mais brutais. Na noite do dia 7, dois carrinhos de bebê foram incendiados no hall de entrada de um edifício de apartamentos que abriga 70 refugiados na cidade de Altenburg. Ao menos 10 pessoas, incluindo dois bebês, ficaram intoxicadas pela fumaça. Dois dias antes, ativistas de direita de Thügida, sucursal local do Pegida, realizaram manifestação em Altenburg com cartazes que diziam: “Continuem sua luta”.

A manifestação e o incêndio dos carrinhos foram noticiados por poucos jornais. As pessoas se acostumaram a esse tipo de ataques na Alemanha.

Em dezembro o ministério do Interior registrou 817 “atos criminosos contra abrigos de refugiados”. Em outubro foram 505. Em comparação com 2014, o número de ataques quadruplicou. Essa nova forma de resistência é vista por todo o país.

Mais importante do que combater os sintomas é saber o que tem causado essa guinada para a direita. A crise dos refugiados juntou os temores reprimidos da sociedade alemã, criando uma mistura explosiva. Os nacionalistas temem ser esmagados pelos estrangeiros. Os que criticam o Islã alimentam a ilusão de uma islamização do Ocidente. Os assalariados de baixa renda não querem que os refugiados disputem seus empregos. E há os que consideram os políticos incompetentes e a democracia uma forma medíocre de governo.

Além disso, os membros da grande coalizão no poder – conservadores e social democratas – compõem quase 80% do Parlamento. Os únicos partidos de oposição, a esquerda e os verdes, são deixados de lado. O partido Alternativa para a Alemanha (AfD), não conseguiu votos suficientes na última eleição de 2013, assim como o FDP. Milhões de cidadãos que se identificam com a direita cristã não têm voz no Parlamento.

Imprensa. “Mídia mentirosa”, grita a multidão. Alguns dias depois, Armin Paul Hampel, um dos novos líderes do partido Alternativa para a Alemanha, dirá que não é bem assim. “Naturalmente nem todos os jornalistas mentem. Sempre digo às pessoas que nunca vi um editor censurando uma notícia. As coisas não funcionam assim”. Mas existem muitos colegas, afirmou, que “têm tesouras na cabeça” e se autocensuram.

O fato de o pessoal da extrema direita ter suas próprias ilusões sobre o mundo tem muito a ver com o fato de que, deliberadamente, boicotar a mídia convencional e confiar mais nas suas fontes de informação.

Durante muito tempo o centro da Alemanha não deu atenção necessária à radicalização da direita, que foi ignorada. Não é possível mais essa atitude. A nova direita se tornou muito ruidosa; sua influência no clima do país cresceu demais.

Mas os grandes partidos alemães só conseguirão reconquistar a credibilidade perdida se eles se distanciarem da xenofobia e do nacionalismo de um lado e mostrarem para a sociedade que não são vulneráveis e incapazes de lidar com a questão.

Nem os políticos, tampouco a população alemã, devem nutrir qualquer ilusão quanto ao objetivo derradeiro dos pensadores de direita e o seu crescente número de seguidores. É o mesmo pensamento de pessoas como Carl Schmitt, pensador fascista da República de Weimar. Ele queria destruir o sistema democrático e criar algo novo, não importava o que fosse.

Uma das imagens mais populares da nova direita é o de uma mulher loira com uma criança loira no colo. Abaixo da foto está escrito: “A Alemanha sobreviverá à República Federal”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*MELANIE AMANN, MAIK BAUMGÄRTNER, MARKUS FELDENKIRCHEN, MARTIN KNOBBE, ANN-KATHRIN MÜLLER, ALEXANDER NEUBACHER E JÖRG SCHINDLER

O futuro dos extremistas

20 Dezembro 2015 | 03h 00

Como uma organização terrorista que parece ter declarado guerra contra todo o mundo espera sobreviver? O Estado Islâmico (EI), a organização terrorista mais bem financiada, equipada e mais sofisticada tecnicamente da história não vai aumentar muito o território que domina no Iraque e na Síria em 2016. O grupo, no entanto, não vai apenas sobreviver, mas também estender sua influência internacional. Há muitas razões para isso acontecer.

Seus inimigos estão divididos a respeito da melhor maneira de atacá-lo. O EI atrai apoio de sunitas privados de seus direitos tanto no Iraque quanto na Síria, mas sua maior vantagem sobre outras organizações militantes como Al-Qaeda e Taleban encontra-se em suas promessas aos que passam a integrar suas fileiras.

O EI oferece mais do que uma chance de lutar contra um inimigo distante, numa guerra longa em direção a um futuro incerto, mas sim um plano para construir algo tangível e novo, um império com fronteiras estabelecidas por guerreiros muçulmanos, não por políticos ocidentais.

A cada nova atrocidade cometida pelo grupo, surgem promessas, na Europa e nos EUA, de levar os combates diretamente para onde estão seus comandantes, na Síria e no Iraque. Mas desmantelar o EI significa combate terrestre. Eles não podem ser destruídos pelo ar. Ninguém, nem os americanos, franceses, russos ou qualquer um, vai aceitar os custos em vidas e recursos que tal operação demandaria.

Divisão. Mesmo no ar, os inimigos mais poderosos do grupo têm objetivos opostos. Os EUA vão soltar mais bombas, mas o presidente Obama não tem intenção de voltar a enviar tropas para guerra em solo no Oriente Médio. A Rússia quer principalmente apoiar seu aliado, o presidente sírio Bashar Assad, atacando rebeldes apoiados por EUA e Arábia Saudita. Além disso, Moscou tem feito pouco contra o EI.

A Turquia vai se concentrar em ataques contra os curdos sírios e os franceses não têm uma coalizão para liderar. Os combatentes iranianos têm poucas armas e os países do Golfo não têm tropas terrestres.

No Iraque, o governo dominado pelos xiitas de Bagdá não terá êxito verdadeiro contra o EI até que ofereça aos sunitas participação no futuro do país e uma razão para lutar por ele.

Quando as forças americanas retiraram Saddam Hussein do poder, colocaram de lado os partidários do presidente no partido Baath, incluindo os integrantes das Forças Armadas. Somente o EI deu aos sunitas meios para se defenderem. Até que esse problema seja tratado, o grupo manterá o comando do território iraquiano dominado pelos sunitas.

Além disso, o EI e os grupos que o imitam têm terreno mais que suficiente para operar. Em graus variados, Síria, Iraque, Líbia, Iêmen e Afeganistão são Estados falidos. Todos oferecem vastas extensões de território sem governo que servem de esconderijo e campos de treinamento para militantes.

No nordeste da Nigéria, norte do Mali, na Península do Sinai no Egito, mais militantes estão aprendendo seu ofício. Grandes campos de refugiados na Turquia, na Jordânia e no Líbano são terrenos férteis para recrutamento de novos militantes.

O EI também tem dinheiro suficiente para ampliar suas ambições. Graças à venda de petróleo de poços capturados, ao dinheiro de resgate de sequestros, à cobrança de impostos das populações locais, ao apoio financeiro de amigos no Golfo e ao saque de bancos capturados em cidades iraquianas, a organização acumulou reservas de mais de US$ 1 bilhão. O grupo extremista também domina o uso das redes sociais e de mensagens criptografadas para expandir sua rede.

Estabilidade. Mais importante é o fato de que o EI oferece uma ideia global em que grupos regionais como o Taleban e a Al-Qaeda não podem se igualar. O Taleban continua a ser um movimento da etnia pashtun no Afeganistão e no Paquistão e tem pouca atratividade fora de seu território principal. A visão da Al-Qaeda é apocalíptica.

É mais difícil recrutar seguidores para o culto à morte do que para uma organização que promete um império e tomou grandes extensões de território em dois países com o objetivo de fazer suas promessas serem levadas a sério. Seu discurso de vendas é convincente.

“Na Síria e no Iraque, você não tem futuro. Na Europa e nos EUA, eles o excluem porque odeiam você. Venha construir. Junte-se à primeira geração. Nós acolhemos você.” Esse convite – e não apenas a oportunidade de matar muçulmanos “apóstatas” e não muçulmanos – continua a ser um sucesso.

Evolução. Para onde tudo isso leva? Em última análise, a construção do EI é a vulnerabilidade original do grupo. Ninguém pode eliminar totalmente o terrorismo porque depende apenas do desejo de morrer de um único indivíduo para aumentar o alcance internacional do grupo extremista.

Mas os muitos inimigos do EI têm poder mais que suficiente para evitar que a organização mantenha e concretize suas promessas de construir um Estado em pleno funcionamento. Os ataques aéreos a bomba contra alvos do grupo extremista na Síria apenas começaram.

Nesse meio tempo, porém, o EI tem mais surpresas desagradáveis para o restante do mundo. Em 2016, sua influência só deve aumentar. / TRADUÇÃO DE PRISCILA ARONE

*Ian Bremmer é presidente do Eurasia Group e professor de pesquisa global na Universidade de Nova York