Archive for 19 de julho de 2017

Fazer sumir: políticas de combate à Cracolândia

leia direto no site original:  http://diplomatique.org.br/fazer-sumir-politicas-de-combate-a-cracolandia/

SERES HUMANOS VARRIDOS EM SÃO PAULO

É política concreta de “arrasa quarteirão”, que, com rapidez, eficácia, legalidade duvidosa e estratégia militarizada, visa erradicar essa famigerada territorialidade, abrindo espaço para acionar práticas de fazer sumir os que conflitam com o projeto de cidade limpa, moderna e parceira da iniciativa privada

Por: Fábio Mallart, Marina Mattar, Taniele Rui e Vera Telles

 

Em São Paulo, o dia 21 de maio despertou ao som dos aparatos de combate. Atiradores de elite da Polícia Civil, observados do alto por um helicóptero da Polícia Militar, posicionaram-se. Ao chão, mais especificamente no cruzamento entre as ruas Dino Bueno e Helvétia, balas de borracha e bombas se anteciparam à chegada das tropas, formadas por centenas de policiais, que se deslocaram em direção ao fluxo, onde se aglomeravam pessoas em situação de rua, consumidores de crack, sujeitos sem condições de habitar outros cantos da cidade, prostitutas, egressos do sistema penitenciário e da Fundação Casa, entre outros marginalizados urbanos. Cavalos e cães também compuseram a cena, cujo traço distintivo foi a completa desproporção das forças. De um lado, armaduras, fuzis, metralhadoras, capacetes, coturnos, escudos, corpos fortes; de outro, cobertores esfarrapados, chinelos, corpos sujos e emagrecidos, cachimbos e pedras – nas mãos e na mente. Em poucos instantes, policiais civis – em suas versões militarizadas (Garra, GOE) – desmontaram barracas, invadiram hotéis, apreenderam drogas e importunaram pessoas. Sob as justificativas de conter a presença do chamado “crime organizado” e destruir a “feira livre de drogas”, donos de pensões, pequenos comerciantes e toda uma miríade de grupos sociais marginalizados, que vivem e sobrevivem dos recursos, afetos e solidariedades que circulam por esse pequeno recorte do urbano, foram escorraçados do coração da cidade.

Por volta das 17h, quase dez horas após o início da operação, a Rua Dino Bueno, antes ocupada por dezenas de pessoas, encontrava-se totalmente vazia, sem sequer um papel de bala. Apenas os jatos de água lançados pelos caminhões-pipa tocavam o chão, como se estivessem à procura de um palito, um plástico, um fósforo, um único copo, para erradicá-los do tecido urbano. Já na Rua Helvétia, logo à frente da tenda do agora extinto programa De Braços Abertos, as viaturas da Inspetoria de Operações Policiais (Iope), da Guarda Civil Metropolitana – mais uma tropa de combate –, dividiam espaço com as “viaturas” da assistência social. Fardas azuis, jalecos brancos, verdes e azuis, e alguns poucos usuários, sem destino, transitavam pela região. Longe de ser ineficiente, o objetivo da operação foi alcançado em seu propósito: desgarrar pessoas daquele espaço, fazer sumir corpos, barracas, restos, cheiros, cores. O projeto das autoridades públicas se concretizou: a área ficou limpa.

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Alvo novamente de uma megaoperação espetacularizada, a região estigmatizada como Cracolândia está, ano após ano, no centro das disputas políticas em São Paulo.1 Repondo táticas de operações anteriores (2005, 2007 e 2012), a recente incursão militarizada também esteve imbricada, por um lado, com a intervenção urbana, alicerçada sob a lógica da limpeza do espaço, da demolição de imóveis e da reconfiguração dos grupos sociais que frequentam o território, sempre acompanhadas da tentacular especulação imobiliária; e, por outro, com o confinamento em instituições de controle, sejam elas punitivas, como as prisões, para os tachados como “traficantes”, ou vinculadas a certa perspectiva de saúde e assistência, como as comunidades terapêuticas e clínicas de reabilitação psiquiátrica para os apressadamente diagnosticados como “dependentes químicos”.

Os efeitos espaciais de tais ações, apesar de conhecidos, aperfeiçoam-se: à dispersão de dezenas de pessoas pelas vias centrais da cidade, conformando pequenos agrupamentos que se fixam em territórios adjacentes ou seguem circulando, em geral direcionados pela atuação das forças policiais militarizadas (estatais ou municipais),2 articulam-se a concentração e o cerceamento destes em espaços circunscritos, fazendo o fluxo orbitar em torno de si mesmo, como é o caso recente da Praça Princesa Isabel. Longe de serem incompatíveis, trata-se de estratégias, a um só tempo, de controlar e circunscrever os fluxos de tais sujeitos pela cidade.

O que está em questão em operações com tais contornos, acentuadas e atualizadas ano após ano, é mais do que o sempre criticado higienismo. É política concreta de “arrasa quarteirão”, que, com rapidez, eficácia, legalidade duvidosa e estratégia militarizada, visa erradicar essa famigerada territorialidade, abrindo espaço para acionar práticas de fazer sumir os que conflitam com o projeto de cidade limpa, moderna e parceira da iniciativa privada, tal como proposto pelo prefeito João Doria desde o início de seu mandato.

Muito tem sido escrito e narrado sobre essa operação e seus efeitos. Para esse conjunto de narrativas – que, em geral, oscilam entre a defesa de mais punição para “traficantes”, mais tratamento e atenção para “dependentes químicos”, e a observação dos interesses mercantis no espaço –, interessa-nos contribuir com a sistematização das múltiplas tecnologias de poder e controle conectadas a esse tipo de ação, que, ao botar para circular, contudo, sem deixar de confinar, almeja fazer sumir essa população considerada indesejável e perigosa.

O encarceramento – sobretudo o provisório – opera há tempos como um mecanismo que retira temporariamente homens e mulheres das ruas da cidade. Ao longo dos últimos anos e tendo como justificativa a mesma retórica do combate ao tráfico, centenas de pessoas foram encarceradas na região, literalmente “presas por atacado”. Apenas para ter uma ideia, entre junho e outubro de 2009 ao menos 261 pessoas foram encarceradas.3 Entre 3 e 9 de janeiro de 2012, início da Operação Sufoco, 48 presos – 23 por tráfico e 25 recapturas.4 No decorrer de 2014, somente a GCM fez 319 prisões.5 Na última megaoperação, em um único dia, ou melhor, em pouquíssimas horas, 53 pessoas foram detidas, entre as quais, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP), 48 traficantes.6 Se a máquina de produzir supostos traficantes opera em velocidade acentuada, inclusive com o retorno deles às ruas por inconsistência das acusações, o mesmo não pode ser dito em relação às propaladas armas e drogas, que, quando apreendidas, se resumem a quantias risíveis, como na operação realizada pela mesma Polícia Civil em fevereiro de 2010, na qual foram necessários mais de noventa homens fortemente armados para, entre outras miudezas, apreender 410 pedras de crack, que juntas pesavam menos de 500 g, nove porções de maconha, que somavam menos de 10 g, um revólver calibre .22, que cabia na palma da mão de um único policial, e 25 cachimbos artesanais. Nesta recente, centenas de policiais apreenderam quase 20 kg de drogas, entre crack, cocaína, maconha e lança-perfume. Algo ínfimo diante da quantidade comercializada diariamente na cidade. Nada, em comparação com um helicóptero recheado com meia tonelada de cocaína…

Concomitantemente à prisão – e não deixa de espantar o paralelismo com a lógica do encarceramento por atacado –, ressaltam-se as múltiplas possibilidades de internação, entre elas a proposta de internação compulsória em massa, que, por mais que não tenha sido colocada em prática, explicita o tipo de “tratamento” disponibilizado a esse contingente populacional, evidenciando que a lógica manicomial – a despeito da reforma psiquiátrica – não é coisa do passado. Com efeito, constata-se que tal estratégia não é de todo nova. A assinatura do primeiro termo pelo governador Geraldo Alckmin em 20137 mobilizou à época o Cratod, serviço de referência em dependência química, que acabou se tornando alvo de disputas públicas em torno dessas internações, que, ademais, foram criticadas em carta aberta pelos funcionários da instituição.8 Tratando-se de estratégia discursiva potente, porque apoiada pela opinião pública, os efeitos de pôr em cena esse tipo de proposição visam criar uma possibilidade nebulosa para a abertura de convênios entre órgãos públicos e instituições privadas, que competem pela “terapêutica” mais eficiente.

Menos visível e, portanto, em total ressonância à lógica do fazer sumir, encontra-se a possibilidade de submeter os “dependentes químicos” às chamadas medidas de segurança, cumpridas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs). Ponto de fixação e parada, sobretudo em relação às prisões provisórias, haja vista que a saída desses hospitais se vincula à produção de laudos psiquiátricos que, em geral, sempre tardam a interromper o tratamento-contenção, é em tais instituições que o crack – substância sempre equiparada às forças do mal – cede espaço às pílulas psiquiátricas de todos os tipos, cores e tamanhos, além de injetáveis como o haldol, que muitas vezes opera como mecanismo de tortura. Ressalta-se que após a chegada dessa população a tais hospitais, movimento que ganhou força ao longo dos últimos anos, tornam-se visíveis reconfigurações locais, simbolizadas, entre outros traços, pela profusão de cercas, revistas e outras tantas técnicas de segurança, que apenas acentuam o caráter carcerário do “tratamento”.

Além do acionamento de instituições como prisões, comunidades terapêuticas e albergues, que compõem a rede estatal e municipal, uma série de outros equipamentos, como as religiosas Cristolândia e Missão Belém, serve de “refúgio” àqueles que sofrem com as operações. É comum também o “incentivo” ao “retorno para casa”, cujo exemplo mais ilustrativo foi figurado em vídeo recentemente publicado pelo próprio secretário de Assistência Social, Filipe Sabará, que, no auge do projeto de fazer sumir as pessoas do centro da cidade, acompanhou um morador de rua até a rodoviária para que ele pudesse voltar à sua “terrinha”, o Maranhão, portando ao seu lado o “kit dignidade”, composto de materiais de higiene. Bem longe de indicar assistência social como direito, repete-se uma prática comum às prefeituras que, ao emitirem passagens, despacham de sua vista e responsabilidade a situação de rua.

Ainda mais explícita que a tentativa de fazer sumir foi a entrada avassaladora de tratores com o logotipo do Projeto Redenção nas ruas Helvétia e Dino Bueno, demolindo ilegalmente imóveis, derrubando paredes sobre as pessoas e fechando pequenos comércios. Reeditando velhas iniciativas de revitalização da área, os governos estadual e municipal pretendem demolir quarteirões inteiros, a fim de construir novos empreendimentos e atrair outros grupos sociais à região. Assim como anteriormente, trata-se de mais uma tentativa de expulsar os sujeitos que circulam por ali, nos cortiços, hotéis, pensões, ruas, ocupações e bares, atingindo não apenas os usuários de crack, mas também moradores e trabalhadores do centro paulistano. O mais novo projeto, segundo tais autoridades, é a construção de prédios de habitação popular, os quais, porém, ao que tudo indica, não servirão aos já moradores da área. As recentes provas de que o plano em curso envolve a expulsão de tais grupos são a repressão ao estabelecimento de barracas nas ruas da região e os pedidos de reintegração de posse às ocupações Mauá, Marconi e São João, todas localizadas nas adjacências, e que estavam em via de ser regularizadas anteriormente. Sem espaço seguro para se estabelecerem, com as forças policiais impedindo a montagem de lonas e barracas que protegem do frio cortante, as pessoas em situação de rua se deslocam para albergues e outras áreas da cidade, como a favela do Cimento, na Radial Leste, que cresceu ao longo das últimas semanas.

Por certo, as faces do fazer sumir são inúmeras, incluindo também o apagamento de memórias e experiências acumuladas. Não é de hoje que a “Cracolândia” é conhecida, estudada e igualmente prenhe de projetos, programas públicos e privados, além de ações de interesse internacional. Apresentar essa última megaoperação como a de um governo que, finalmente, agiu sobre a situação é, no mínimo, questionável. Trata-se também de políticas de fazer sumir do mapa cognitivo qualquer referência progressista, qualquer pesquisa ali realizada, bem como a mobilização social e cultural que se aglutinou nos últimos anos.
Os que hoje estão sendo varridos do centro de São Paulo configuram uma população – como diria Deleuze (1992) – pobre demais para ascender ao mundo do consumo e numerosa demais para ser simplesmente confinada nas prisões ou internada em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.9 Alguns são definitivamente aniquilados por máquinas de matar, manejadas tanto por forças estatais como por (des)arranjos no universo do crime. A grande maioria, entretanto, não se evapora, não desaparece. Tais homens e mulheres, ainda que sejam colocados para circular indefinidamente,10 por instâncias que articulam punição e repressão; assistência e saúde,11 fazendo sumir os indesejáveis, vão se instalando em lugares e limiares da cidade, traçando linhas de fuga que criam outras tantas territorialidades. Gestados e geridos pelas políticas dos tempos presentes, compõem a população – cada vez mais crescente – de refugiados urbanos.

*As questões aqui elencadas têm sido trabalhadas coletivamente no âmbito de um Projeto Temático Fapesp intitulado “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista” e coordenado por Vera Telles, professora do Departamento de Sociologia da USP. Fábio Mallart é doutorando em Sociologia pela USP (bolsista Fapesp); Marina Mattar é mestre em Sociologia pela USP; e Taniele Rui é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp.


1 Taniele Rui, Nas tramas do crack: etnografia da abjeção, Terceiro Nome, São Paulo, 2014.

2 Deve-se atentar para a emergência de inúmeras tropas de combate ao longo dos últimos anos, as quais, a nosso ver, derivam da lógica militarizada que embasa a gestão de múltiplos territórios urbanos. É esse o caso, por exemplo, da Inspetoria de Operações Policiais (Iope), que opera como uma espécie de tropa de choque da Guarda Civil Metropolitana, mas também do Grupo de Intervenções Rápidas (GIR), que atua no interior do sistema carcerário paulista, bem como do Choquinho, que opera nas unidades de internação da Fundação Casa, destinadas aos adolescentes que cometeram os chamados atos infracionais.

3 “PM usa tática de espalhar usuários da cracolândia”, Agora São Paulo, 18 out. 2009.

4 “Operação da PM na Cracolândia prende 48”, G1, 9 jan. 2012.

5 “Um ano depois, ‘De Braços Abertos’ reduz fluxo na Cracolândia em 80%”, SpressoSP, 20 jan. 2015.

6 “Denarc apresenta balanço da megaoperação na Cracolândia”, Portal do Governo (SP), 23 maio 2017.

7 “Alckmin assina termo para internação involuntária de dependentes químicos”, Estadão, 11 jan. 2013.

8 Coletivo DAR, “Em carta aberta, trabalhadores do Cratod criticam: voltamos a ser um centro de internação como há 30 anos, com superlotação”, 31 jan. 2013.

9 Gilles Deleuze, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações: 1972-1990, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992, p.219-226.

10 Marina Mattar Nasser, No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia, dissertação (mestrado em Sociologia), USP, 2016.

11 Fábio Mallart e Taniele Rui, “Por uma etnografia das transversalidades urbanas: entre o mundão e os dispositivos de controle”. In: J. Melo, D. Simião e S. Baines, Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade, EDUFRN, Natal, 2016.

A CIDADE-MERCADORIA E OS LIMITES DA REFORMA URBANA BRASILEIRA

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A cidade-mercadoria e os limites da reforma urbana brasileira

OCIDENTE NÃO SABE NEM DO CHEIRO DO QUE A EURÁSIA ESTÁ COZINHANDO

Reforma trabalhista: seis mudanças que vão afetar a sua rotina de trabalho

leia direto no site original:  https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/13/politica/1499958789_546835.html

Menos tempo de almoço, férias parceladas e demissão em comum acordo.

Essas são algumas das alterações da lei sancionada por Temer. Veja outras mudanças

o que muda com a reforma trabalhista
Temer em evento no Planalto junto a ministros e senadores quando a reforma trabalhista foi sancionada.FOTOS PÚBLICAS

O presidente Michel Temer sancionou, na semana passada, o projeto de lei da reforma trabalhista, que faz uma profunda mudança na legislação trabalhista e altera em mais de cem pontos a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de 1943. As novas normas estão previstas para entrar em vigor em novembro (120 dias após a sanção), mas o Governo se comprometeu a enviar uma medida provisória para o Congresso Nacional alterando alguns pontos da nova legislação.

No meio jurídico, a reforma tem dividido opiniões. Para a advogada Daniela Muradas, professora de direito do trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o projeto já nasce velho precisando de várias alterações. “Essa reforma foi executada sem o diálogo social necessário. E, apesar de ter como fundamento a modernização, utiliza fórmulas de flexibilizações trabalhistas já experimentadas em alguns países da Europa que não funcionaram”, explica.

Umas das principais críticas da professora está relacionada à criação de um novo tipo de contrato no Brasil: o trabalho intermitente, que, em outros países, é apelidado de “contratos de zero horas”. Através dessa modalidade, será possível contratar trabalhadores por jornada ou hora de serviço.  “Esse tipo de contrato tende a substituir o de trabalho standard, precarizando os empregos. Na Europa, onde a modalidade foi experimentada em momentos de crise, houve uma aumento de trabalhadores pobres. Imagina em um país desigual como o Brasil”, ressalta.

O advogado Cláudio de Castro, sócio da área Trabalhista do Martinelli Advogados, discorda da professora já que defende que o trabalho intermitente era feito de forma informal e agora os trabalhadores contratados por hora serão acobertados pela CLT. “A lei surge depois de uma necessidade, ela não vem para incentivar esse tipo de contratação”. O advogado ressalta ainda que uma modernização das leis era inevitável. “Essa não é a reforma dos sonhos, mas era preciso esse passo para que outros avanços aconteçam. A lei estava fora do seu tempo”, defende Castro.

Entre as principais novidades comemoradas pelo empresariado e apoiadores da reforma, está a prevalência dos acordos coletivos em relação à lei em pontos específicos, o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical e obstáculos ao ajuizamento de ações trabalhistas. Mas o que de fato mudará no dia a dia do trabalhador a partir de agora? Listamos cinco situações que podem alterar a sua rotina:

1. Férias parceladas em três vezes

As férias anuais de 30 dias podem ser dividias em três períodos, sendo sendo que um deles não pode ser menor que 14 dias. Antes, o parcelamento era proibido. Também ficou definido que as férias não poderão começar dois dias antes do fim de semana ou de um feriado, para que esses dias não sejam “comidos” pelas férias.

2. Demissão em comum acordo

Antes da reforma, caso o trabalhador se demitisse ou fosse demitido por justa causa, ele não tinha direito de sacar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego nem recebia multa de 40% sobre os depósitos do FGTS. Esses benefícios e indenizações só eram recebidos pelo funcionário no caso de uma demissão sem justa causa. Agora, no entanto, o trabalhador e a empresa possuem uma nova alternativa: juntos eles podem rescindir um contrato em comum acordo com a garantia de alguns benefícios para o trabalhador. Nesse caso, o funcionário recebe uma multa de 20% sobre os depósitos do FGTS e pode retirar até 80% do fundo. Ele não possui, entretanto, o direito ao seguro-desemprego.

Na opinião do advogado Cláudio Castro, a novidade pode ajudar a diminuir os casos de “queda de braço” que acontecem quando o empregado não está mais satisfeito com o trabalho, mas tenta negociar com o patrão para ser demitido para receber um acerto maior. Críticos afirmam, no entanto, que as empresas que quiserem demitir sem ter que pagarem toda a indenização podem pressionar os trabalhadores a fazerem esse acordo em comum.

3. Demissão em massa não precisa ser autorizada

Embora não haja lei sobre o tema, a Justiça considera uma jurisprudência de que os sindicatos devem ser incluídos no processo de demissão em massa dentro de uma empresa. Com a reforma, ficou definido que não será necessário que o sindicato autorize qualquer tipo de demissão em massa.

4. Intervalo do almoço pode diminuir

O intervalo de almoço que hoje é de 1 hora poderá ser reduzido a até 30 minutos, caso haja um acordo coletivo para jornadas com mais de seis horas de duração.

5. Banco de horas negociado individualmente

O chamado banco de horas é um sistema de compensação de horas extras, permitido por lei, em que as horas excedentes trabalhadas em um dia são compensadas com a diminuição da jornada de outro dia. Antes da reforma, este mecanismo precisava ser negociado em convenção coletiva e as horas extras precisam ser compensadas em até um ano. Vencido esse prazo, elas deveriam ser pagas em dinheiro com acréscimo de 50%. Agora, o prazo para o banco de horas ser zerado, com as horas compensadas, é menor, de até seis meses. Porém, agora é permitido que o banco de horas seja feito via acordos individuais. A negociação entre trabalhador e empregado pode facilitar negociações que se adequem às necessidades específicas de uma empresa. Um restaurante de praia, por exemplo, pode aumentar as horas extras dos seus funcionários na época de alta temporada e conceder dias de folgas nos meses seguintes de baixo movimento. Críticos à mudança alertam, no entanto, que, se o poder de barganha do trabalhador for pequeno, ele acabará tendo que ceder às regras impostas pela empresa. O intervalo antes da hora extra foi suprimido. Antes da reforma, os trabalhadores tinham direito a uma pausa de 15 minutos antes de a hora excedente de trabalho.

6. Tempo de trabalho na empresa

Pelo texto da reforma, algumas atividades no âmbito da empresa deixam de ser consideradas parte da jornada de trabalho. São elas: as horas de alimentação, higiene pessoal, troca de uniforme e estudo. Muitas empresas oferecem aulas de língua estrangeira (inglês e espanhol), que agora devem ser consideradas atividades fora do horário de trabalho. Antes da mudança, a CLT considerada serviço efetivo, o momento em que o trabalhador entrava na empresa e ficava à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens.

Sociedade dos bacharéis

leia direto no site original:  http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2301200504.htm

RENATO MEZAN

A recente polêmica em torno das estatísticas sobre obesidade e desnutrição no Brasil deixou pasmos os que ainda têm algum respeito pela lógica. Segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], existem hoje no país mais pessoas com sobrepeso do que passando fome. O que concluir daí? Que existem dois problemas diferentes, é óbvio, cada qual com seus motivos.

Mas não foi isso o que circulou; o surrealismo nacional apressou-se a deduzir que 1) se…, então, a fome não é mais um fenômeno importante no Brasil; 2) se …, então, ela é menos grave do que a alimentação excessiva ou inadequada. E a resposta dos que pensam de modo diferente também não primou pela coerência: os que afirmavam “1)” e “2)” não estavam dizendo uma bobagem, mas desejavam torpedear os programas sociais do atual governo, fazendo crer que atacam o problema errado.

Poucos foram os que apontaram o evidente sofisma envolvido na discussão. E foi precisamente isso -a conivência latente com a irracionalidade- que me chamou a atenção nessa sucessão de disparates. Por que disparates? E o que nos ensina a leviandade com que foram proferidos? Em primeiro lugar, vejamos o erro de raciocínio: trata-se de duas afirmações paralelas, “existe fome no Brasil”, e “existe obesidade no Brasil” -e não contraditórias. Considerar que uma é o oposto da outra é o mesmo que pensar que, porque chove no Rio Grande do Sul, no mesmo dia não pode fazer sol em Pernambuco.

Falta o contexto

Em segundo lugar, a falta de contextualização: quem sofre de fome ou de obesidade? Onde isso acontece, em termos geográficos, de estratificação social etc.? Quais as causas desses fatos? Cada afirmação é apenas parte de um todo, e, sem que este seja minimamente apresentado, é impossível compreender a posição relativa que cada dado nele ocupa e, portanto, o que ele significa. É o apagamento do contexto que permite a ligação arbitrária entre as duas informações, como se fossem contraditórias, e não apenas diferentes.

A busca de relações entre os dados da nossa experiência é uma necessidade humana fundamental, e sua função é tanto intelectual -tornar compreensível o mundo à nossa volta- quanto emocional -proporcionar a segurança que decorre dessa compreensão. Desde que essa segurança seja garantida, pouco importa que as relações encontradas sejam verdadeiras (aqui significando conformes à realidade objetiva) ou imaginárias (aqui significando conformes a um sistema de crenças culturalmente legítimo, como a magia entre os homens primitivos).

O passo a passo indispensável em tantas coisas é visto como aborrecido

O importante é estabelecer relações que comportem evidência, e vemos imediatamente o risco de tomarmos por verdadeiras relações cuja principal característica é confortar nossa angústia de não saber e, portanto, de não podermos nos defender dos perigos que rondam nossa existência.

Dois mil anos de filosofia foram dedicados a definir o que é verdade e o que é erro, e a discussão ainda permanece em aberto; não é aqui o lugar de nos estendermos sobre ela. Mas alguns pontos foram estabelecidos além de qualquer dúvida, e um deles é que de duas afirmações paralelas nada se pode concluir, porque não há termo médio que permita passar das premissas à conclusão.

Ora, me dirá o leitor, desnutrição e obesidade não são extremos de uma mesma coisa -a alimentação- que portanto serviria como termo médio? Apesar das aparências, a resposta é não. Chuva e sol também são extremos do “tempo”, e nem por isso se pode deduzir da presença de um aqui que seja certo (ou errado) afirmar a presença (ou ausência) do outro acolá.

E isso porque não se trata de uma oposição abstrata, caso em que efetivamente se trataria de termos contrários, mas de realidades: afirma-se que a existência de “A” (obesidade) cancela ou torna menos relevante a existência de “B” (desnutrição). É aqui que reside a falácia.

Mas por que, se ela é tão óbvia, pessoas inteligentes persistiram em não a enxergar? Mesmo que fosse válida a teoria conspiratória (“querem torpedear os programas socais”), ela só daria conta das intenções sinistras dos que desqualificaram a pesquisa, porém não do absurdo lógico que estamos comentando. Vale a pena ir mais longe: a partir deste exemplo do bestialógico nacional -que Stanislaw Ponte Preta [1923-68] chamava acertadamente de “Febeapá”, acrônimo de “Festival de Besteiras que Assola o País”- , talvez possamos identificar um aspecto da vida brasileira que vai muito além dele.

“Coisa de obsessivo”

Trata-se da tendência a evitar o árduo caminho da demonstração, saltando diretamente para o garboso território das conclusões.

Em outras palavras, o passo a passo indispensável em tantas coisas, no pensamento como na vida, é visto como aborrecido; a minúcia, o cuidado com a verificação, o necessário asseguramento de que o que fizemos está “em ordem” antes de passar à etapa seguinte -tudo isso, que não tem charme nem brilho, mas garante que o próximo passo será dado com segurança, tende a ser desconsiderado como “coisa de obsessivo”, incompatível com a inventividade e a exuberância que caracterizam nosso compatriotas.

Talvez estejamos diante do ressurgimento -se é que alguma vez ele se extinguiu, o que me parece muito duvidoso- do famoso “espírito bacharelesco”, hoje “aggiornato” com um fascínio pelos números que o parecem contradizer, mas na verdade é apenas a sua vestimenta contemporânea. O próprio do espírito bacharelesco é a verborragia, a retórica pela retórica e, sobretudo, o diletantismo, ou seja, a mania de falar (bonito, de preferência) daquilo que só se conhece superficialmente. É claro que a retórica, nesse caso, serve para distrair a platéia, evitando que ela se dê conta de quão tolos são os argumentos do orador.

Ora, a versão contemporânea do estilo condoreiro parece consistir no uso indiscriminado dos números. Qualquer informação nos vem quantificada, como se quantificá-la fosse o mesmo que compreendê-la.

Assim, ficamos sabendo que as vendas à vista neste Natal foram tanto por cento superiores às do ano passado etc. O que não nos é dito é se a escala de comparação (de um ano para outro) é relevante e por quê. O critério de relevância, é óbvio, só pode ser utilizado se temos presente o contexto da informação, e assim retornamos ao ponto de partida do presente argumento.

[O escritor] Oscar Wilde disse certa vez que “há um M em Monmouth e um M em Macedônia, mas nada se aprende a partir desta analogia”. Precisamos distinguir com mais cuidado entre o essencial e o acessório, o aleatório e o sequencial, o significativo e o irrelevante.

Partes entre si

Nunca é demais lembrar que “razão” significa primeiramente proporção, e esta se refere à relação das partes entre si e com o todo do qual são partes. E não me venham dizer que vivemos na era pós-moderna, em que prevalece a estética do fragmento etc. Toda sensação é por natureza fragmentária, assim como toda informação; é nossa tarefa as com-por, pô-las junto umas das outras, a fim de discernir seu sentido e sua relevância (termo que vem de relevo, como algo que se destaca contra um fundo liso).

Isso pode ser trabalhoso, mas até o cético Wilde -para quem “não há lógica que possa tornar os homens razoáveis”- completou sua frase assim: “Mas sempre é útil analisar, formular e investigar”. Amém.

Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de “Freud – A Trama dos Conceitos” (Perspectiva) e “Psicanálise, Judaísmo – Ressonâncias” (Imago), entre outros livros.