Archive for 20 de julho de 2017

Historiadora negra dá resposta brilhante ao ser questionada “se faz faxina”

Luana Tolentino

“Hoje uma senhora me parou na rua e perguntou se eu fazia faxina…”. Mestranda, historiadora e professora responde de maneira precisa questionamento oriundo do nosso racismo institucional enraizado

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Luana Tolentino (reprodução)

Luana Tolentino, via Facebook

 

Hoje uma senhora me parou na rua e perguntou se eu fazia faxina.

Altiva e segura, respondi:
– Não. Faço mestrado. Sou professora.

Da boca dela não ouvi mais nenhuma palavra. Acho que a incredulidade e o constrangimento impediram que ela dissesse qualquer coisa.

Não me senti ofendida com a pergunta. Durante uma passagem da minha vida arrumei casas, lavei banheiros e limpei quintais. Foi com o dinheiro que recebia que por diversas vezes ajudei minha mãe a comprar comida e consegui pagar o primeiro período da faculdade.

O que me deixa indignada e entristecida é perceber o quanto as pessoas são entorpecidas pela ideologia racista. Sim. A senhora só perguntou se eu faço faxina porque carrego no corpo a pele escura.

No imaginário social está arraigada a ideia de que nós negros devemos ocupar somente funções de baixa remuneração e que exigem pouca escolaridade. Quando se trata das mulheres negras, espera-se que o nosso lugar seja o da empregada doméstica, da faxineira, dos serviços gerais, da babá, da catadora de papel.

É esse olhar que fez com que o porteiro perguntasse no meu primeiro dia de trabalho se eu estava procurando vaga para serviços gerais. É essa mentalidade que levou um porteiro a perguntar se eu era a faxineira de uma amiga que fui visitar. É essa construção racista que induziu uma recepcionista da cerimônia de entrega da Medalha da Inconfidência, a maior honraria concedida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, a questionar se fui convidada por alguém, quando na verdade, eu era uma das homenageadas.

Não importa os caminhos que a vida me leve, os espaços que eu transite, os títulos que eu venha a ter, os prêmios que eu receba. Perguntas como a feita pela senhora que nem sequer sei o nome em algum momento ecoarão nos meus ouvidos. É o que nos lembra o grande Mestre Milton Santos:

Quando se é negro, é evidente que não se pode ser outra coisa, só excepcionalmente não se será o pobre, (…) não será humilhado, porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico.”

É o que também afirma Ângela Davis. E ela vai além. Segundo a intelectual negra norte-americana, sempre haverá alguém para nos chamar de “macaca/o“. Desde a tenra idade os brancos sabem que nenhum outro xingamento fere de maneira tão profunda a nossa alma e a nossa dignidade.

racismo é uma chaga da humanidade. Dificilmente as manifestações racistas serão extirpadas por completo. Em função disso, Ângela Davis nos encoraja a concentrar todos os nossos esforços no combate ao racismo institucional.

É o racismo institucional que cria mecanismos para a construção de imagens que nos depreciam e inferiorizam.

É ele que empurra a população negra para a pobreza e para a miséria. No Brasil, “a pobreza tem cor. A pobreza é negra.”

É o racismo institucional que impede que os crimes de racismo sejam punidos.

É ele também que impõe à população negra os maiores índices de analfabetismo e evasão escolar.

É o racismo institucional que “autoriza” a polícia a executar jovens negros com tiros de fuzil na cabeça, na nuca e nas costas.

É o racismo institucional que faz com que as mulheres negras sejam as maiores vítimas da mortalidade materna.

É o racismo institucional que alija os negros dos espaços de poder.

O racismo institucional é o nosso maior inimigo. É contra ele que devemos lutar.

A recente aprovação da política de cotas na UNICAMP e na USP evidencia que estamos no caminho certo.

Pós-verdade e política

leia direto no site original: https://revistacult.uol.com.br/home/pos-verdade-e-politica/
Charles Feitosa
Pós-verdade e política

(Arte Revista CULT)

 

Onde não há fatos, nada é verdade  O que Trump tem a ver com Nietzsche, Foucault ou Derrida? A resposta para o título desse texto é simples e cristalina como água que jorra da fonte: nada, mas nada mesmo. Mesmo assim ocorre no noticiário político e na internet volta e meia a associação, completamente indevida por sinal, entre as estratégias midiáticas de desinformação de Trump e os esforços de desconstrução das grandes narrativas da verdade pelos filósofos ditos “pós-modernos”.

Por exemplo, a famosa afirmação de Nietzsche, em um fragmento de 1887, de que “não existem fatos, apenas interpretações”, costuma ser escutada na filosofia como um alerta crítico de que a verdade não é única, nem definitiva, nem imutável, mas precisa ser continuamente discutida e tematizada. No contexto político atual a frase está sendo relida, ao contrário, como se fosse a legitimação para os estados de “tanto faz” ou de “liberou geral” reinantes, pois onde não há fatos, nada é verdade.

Um sinal sutil dessa tendência é o uso da palavra “pós-verdade” como se fosse o ponto de interseção entre política e filosofia na contemporaneidade. O termo “pós-verdade” é conhecido pelo menos desde os anos 90, mas se tornou especialmente popular em 2016, tendo sido escolhida a palavra do ano pela equipe do Oxford Dictionaries.

A pós-verdade costuma ser definida brevemente como uma estratégia de desvalorização dos fatos em prol de interesses pessoais. Também chamada de fake news (notícias falsas), várias amostras da pós-verdade na política costumam ser citadas, tais como as estatísticas fictícias divulgadas na campanha do Brexit em 2016 sobre os altíssimos custos para permanecer na comunidade europeia ou os rumores conspiratórios sobre a origem muçulmana extremista do ex-presidente dos EUA, Barack Obama.

No Brasil, são também inúmeros e infindáveis os exemplos: os boatos em torno de uma suposta encenação da morte de Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula ou mais recentemente, a afirmação do atual prefeito de São Paulo de que os manifestantes da greve geral de 28.04.17 estariam recebendo dinheiro para irem às ruas.

Mas o grande garoto-propaganda da pós-verdade continua sendo Donald Trump. Em episódio emblemático, seus assessores, ao serem questionados sobre o número exato de pessoas que assistiram a posse presidencial em janeiro de 2017, alegaram que não estavam mentindo quando insistiam, a despeito de indícios contrários, que tinha mais gente na posse de Trump do que na de Obama em 2009, mas sim apenas apresentando “fatos alternativos”.

Onde não há fatos, não existe verdade única – Por que chamar essas formas midiáticas de manipulação de textos ou imagens como pós-verdade? A escolha do termo não é neutra, trata-se de uma interpretação que é ao mesmo tempo uma acusação. Tudo se passa como se a “pós-verdade” fosse a verdade típica dos tempos “pós-modernos”.

A própria expressão “pós-moderno” tornou-se muito frequente nos últimos trinta anos, tanto na imprensa, como na vida cotidiana. Falou-se muito e indistintamente de sociedade pós-moderna, de amor pós-moderno ou ainda de doenças pós-modernas. Trata-se de um conceito guarda-chuva, cujo uso inflacionário oculta a falta de clareza acerca de seu significado.

Etimologicamente o prefixo “pós” indica uma determinada fase histórica: não vivemos mais na modernidade, mas sim “depois”. Entretanto, o significado desse “depois” ainda é estritamente ambíguo e polêmico, podendo indicar tanto um “extra-“, um “anti-”, ou ainda como um “ultra-moderno”.  É preciso, antes de tudo, ter o cuidado de distinguir uma condição “pós-moderna” de um pensamento pós-moderno. Por condição pós-moderna entende-se, quer a celebremos ou a lamentemos, nossa situação histórica de viver e morrer na virada do século 20 ao 21.

Por pensamento pós-moderno, entretanto, entenda-se estritamente uma estratégia específica de lidar com essa condição, consolidada com a publicação em 1979 do livro La condition postmoderne de autoria do filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998). Para Lyotard, o projeto dos modernos de liberar a humanidade da ignorância e da miséria produziu, ao contrário, sociedades que permitem o imperialismo, a guerra, o desemprego, a tirania da mídia e o desrespeito à vida humana em geral.

Contra a lógica da razão e do mercado seria preciso inventar outras lógicas, norteadas pelo reconhecimento do dissenso (a irredutível diversidade dos jogos de linguagem nas culturas) e por uma revalorização da dimensão estética. Em um tempo em que não é possível mais um discurso único e definitivo sobre o que é bom, justo ou verdadeiro, Lyotard propõe a emergência do pensamento pós-moderno, cuja característica fundamental é a afirmação das diferenças e do pluralismo.

Dentro desse contexto seria muito mais pertinente reconquistar o sentido mais original e positivo do termo “pós-verdade”, enquanto um esforço anti-dogmático de promover a pluralização e diversificação dos saberes. Então aqui cabem as seguintes perguntas: Isso a que se hoje se nomeia “pós-verdade”, não seria apenas uma nova fachada para um fenômeno bem antigo, a saber, a mentira na política? Não foi sempre assim, na história dos gestores políticos, manipular informações para se manter no poder? Ou será que há alguma diferença fundamental entre as mentiras tradicionais dos homens de estado e a onda contemporânea de desvalorização da verdade?

De fato, já desde Platão sabemos que a mentira não é apenas um incidente ocasional na vida política, mas é ela mesma um dos recursos disponíveis aos governantes na difícil e inglória tarefa da administração das cidades. Na descrição da sua utopia, a despeito do compromisso de cada cidadão de sempre buscar e defender a verdade, Platão argumentava que seus dirigentes, somente eles, teriam a permissão de mentir, pois a mentira, se usada adequadamente, pode contribuir para a realização do bem-estar comum.

Onde não há fatos, tudo é verdade – Desde então a ideia da mentira na política como um remédio amargo, mas necessário, se consolidou no nosso imaginário. Há exatamente 50 anos atrás, em 25 de fevereiro de 1967 na The New Yorker, a genial filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt publicou um texto paradigmático sobre o tema, intitulado Verdade e Política (em relação ao qual o título do meu presente texto faz referência e reverência).

Arendt começa chamando de “lugar comum” a crença na incompatibilidade insuperável entre verdade e política, mas ao mesmo tempo ela extrai desse lugar comum uma pergunta incômoda,  que nos obriga a pensar: Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar? A resposta de Arendt é complexa, pois se de um lado ela defende uma certa potência inerente à verdade de incomodar e questionar as tiranias, por outro lado ela também admite um certo uso tirânico das verdades absolutas, pois geralmente é em nome delas que se instalam discursos e práticas totalitárias.

Mas o mais importante é que Arendt defende que a natureza da verdade é essencialmente política, ou seja, “é sempre relativa a várias pessoas: ela diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nos quais muitos estiveram implicados; é estabelecida por testemunhas e repousa em testemunhos; existe apenas na medida em que se fala dela, mesmo que se passe em privado”. Se a verdade é essencialmente política ela pode ser ameaçada pelas mentiras estratégicas dos poderosos e precisa continuamente ser defendida e conquistada com o máximo de questionamentos e debates públicos.

O que mais me interessa no texto de Arendt é sua tese de que, mesmo reconhecendo uma tensão estrutural entre verdade e política, existe uma mudança no modo clássico e contemporâneo do uso da mentira na disputa pelo poder.  A mentira clássica era dirigida estrategicamente para este ou aquele grupo de inimigos e por isso poderia ser facilmente detectada pelos historiadores como uma espécie de buraco ou de falha na rede dos acontecimentos.

O problema é que segundo Arendt a contemporaneidade é marcada por uma forma de “mentira organizada”, uma aliança entre os meios de comunicação e os regimes totalitários, onde toda a matriz da realidade pode ser falsificada através das estratégias midiáticas de manipulação em massa. O resultado não é mais apenas a substituição da verdade pela mentira, mas a paulatina destruição na crença em qualquer sentido que nos oriente pelo mundo. Em outras palavras, a mentira organizada contemporânea conduz a um cinismo niilista, uma recusa em acreditar na verdade de qualquer coisa. A descrença é a desistência da tarefa de fazer qualquer avaliação. Algo parecido acontece quando, no Brasil de hoje, se diz que todos os políticos são corruptos, como se não houvessem aí distinções mais finas ainda a serem feitas.

Onde não há fatos, há verdades em demasia – Talvez não possamos mais chamar de mentira essa versão sistêmica e explícita, onde todos estão sendo enganados ao mesmo tempo. Mas ao meu ver, “pós-verdade” também não é o nome mais adequado. Talvez o mais correto seria falar de hiper ou ultra-verdade, pois vivemos em uma época em que todos se sentem no direito de dizer qualquer coisa, seja nos discursos políticos ou nas redes sociais, embasados em dados fictícios ou não, mas garantidos pela crença tácita de que “tudo vale” e pela recepção acrítica da maioria dos tele-expectadores e internautas.

Quando há verdades em demasia o perigo não é mais apenas, como diz Arendt, a descrença generalizada na realidade, mas a sua contrapartida, a revalorização reativa, nostálgica e muitas vezes enceguecida dos fatos, como se eles existissem em algum lugar objetiva e efetivamente e pudessem funcionar como uma pedra de toque nas nossas falas.

Um sintoma dessa súbita revalorização dos fatos em si é a prática cada vez mais difundida de facts checking dos discursos políticos na internet. Embora seja muito saudável desvelar as falsas estatísticas citadas pelo MBL ou por Trump, é sempre bom lembrar aquela frase do Nietzsche citada do início desse texto, para não cair na armadilha inversa de achar que alguém tem o poder definitivo e inquestionável de dizer o que são os fatos.

Existem divergências de interpretações até mesmo entre os diferentes fact-checkers. Não podemos nunca deixar de nos perguntar criticamente quem são e como o fazem, estes que assumiram para si a tarefa de controlar a veracidade dos discursos dos outros. Avaliar continuamente não só os discursos, mas também os avaliadores e os próprios instrumentos de avaliação, é a tarefa política constante daqueles que ainda tem respeito pela liberdade e pelo pensamento. Isso inclui também o exercício da autoavaliação, pois a pós-verdade, entendida aqui não como a “não-verdade”, mas como a “verdade pluralizada e sob constante tematização”, exige sempre e de cada vez mais e melhores interpretações. Em suma, abaixo Trump e viva Nietzsche!

Charles Feitosa é Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIOChles Feitosa é Doutor em Filosofiala Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO

Com a Rota da Seda, a China entra no vácuo aberto por Trump

leia direto no site original:  https://www.cartacapital.com.br/revista/959/com-a-rota-da-seda-a-china-entra-no-vacuo-aberto-por-trump
 
Pequim conecta 66 países em três continentes com o canteiro de obras global. O Brasil de Temer despreza os investimentos
DPA/FotoArena
Putin China

Na reunião de cúpula em Pequim, Xi Jinping, o anfitrião, Vladimir Putin, presidente de vários países e um funcionário brasileiro do 3º escalão

O Deutsche Bank, maior banco da Alemanha, anunciou em maio sua participação, com 3 bilhões de dólares, no financiamento do projeto chinês das novas Rotas da Seda, de conexão com países da Ásia, África e Europa por ferrovias e estradas, ao Norte, e por mar, ao Sul.

A decisão, que deverá ser acompanhada de iniciativas semelhantes de várias instituições financeiras, é uma resposta positiva ao chamamento do presidente Xi Jinping de unir aquele que é considerado o maior programa de infraestrutura do mundo ao plano europeu de investimento, conhecido como Plano Juncker. Além de vias de transporte, serão construídos portos, aeroportos, barragens, dutos de petróleo e gás, obras para geração e distribuição de eletricidade e telecomunicações, sistemas de água e esgoto e habitações.

A união dos projetos chinês e europeu de investimentos significa a ocupação de parte do espaço deixado com o abandono, pelos Estados Unidos, por iniciativa de Donald Trump, dos tratados Transatlântico e Transpacífico, propostos pelo ex-presidente Barack Obama para barrar a influência econômica do país oriental no mundo.

A decisão do Deutsche Bank foi anunciada duas semanas depois da realização do Belt and Road Forum, em Pequim, sobre as Rotas da Seda, convocado por Xi Jinping e prestigiado por 29 chefes de Estado, inclusive o presidente Vladimir Putin, da Rússia. A América Latina foi representada por dois presidentes, Mauricio Macri, da Argentina, e Michelle Bachelet, do Chile. O Brasil enviou só seu secretário da Presidência da República.

O pouco caso brasileiro para com o projeto chinês, considerado a maior oportunidade de investimentos e negócios internacionais das últimas décadas e de grande significado político e diplomático, ocorre no quarto ano de economia doméstica estagnada, sem que o governo consiga colocar em pé nem mesmo seu acanhado programa de infraestrutura.

Lançada em 2013, a iniciativa adota o mesmo nome da estrada construída entre 206 a.C. e 220 d.C., durante a dinastia Han, e tem potencial para ser a maior plataforma mundial de colaboração regional, segundo Kevin Sneader, presidente da consultoria McKinsey na Ásia. Abrange 66 países, com 65% da população do planeta, cerca de um terço do PIB e um quarto de todo o transporte de mercadorias e serviços.

Só no ano passado, os projetos e negócios realizados geraram 494 bilhões de dólares, contabiliza a consultoria PwC. Números preliminares da McKinsey indicam que os novos empreendimentos anunciados em 2016 somaram 400 bilhões de dólares, valor 2,1% acima do previsto, mas eles podem superar em mais de 10% as projeções, prevê a consultoria.

de Investimento em Infraestrutura, criado pela China, é um dos financiadores das obras (Foto: Li Xin/Xinhua via Zuma/FotoArena)

A PwC estima que a China gastou o equivalente a 3 trilhões de dólares em infraestrutura no ano passado, valor 10% acima de 2015 e 40% superior à média dos últimos cinco anos. Os investimentos fazem parte da estratégia definida por Pequim para enfrentar tanto as dificuldades econômicas internas quanto a Grande Recessão mundial e tem força suficiente para conduzir a uma nova etapa da globalização, avaliam vários economistas.Marcos Antonio Macedo Cintra, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Eduardo Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explicam a estratégia no artigo “China em Transformação: Transição e Estratégias de Desenvolvimento”. Apesar da desaceleração, dizem, a economia chinesa permanece uma das mais dinâmicas do mundo e continua a criar entre 12 milhões e 13 milhões de postos de trabalho urbanos ao ano.

Com o aumento da taxa de investimento, de 40% do PIB para 47%, entretanto, o crescimento ficou desequilibrado, pois gera capacidade ociosa em inúmeros setores produtivos e passa a depender da construção de obras gigantescas, da expansão do mercado imobiliário, do endividamento das províncias e dos governos locais, bem como da elevada alavancagem de alguns segmentos dos setores bancário e não bancário.

Busca-se, assim, um novo regime de crescimento sustentável, ancorado em um dinamismo menos intensivo em capital e em energia, e ainda um novo contrato social (um Estado de Bem-Estar Social com características chinesas) para a redução das desigualdades sociais e regionais e a implementação de maior cobertura no sistema de saúde pública e de previdência, sublinham os economistas.

A provisão de bens públicos universais, o desenvolvimento de uma urbanização e uma industrialização com menor impacto sobre o meio ambiente, a ampliação da renda e do consumo da população são os pilares do planejamento estratégico que visa reformar o regime de crescimento nos próximos anos.

“Esse caminho de desenvolvimento, ainda em construção, pressupõe um processo de aprendizado contínuo com avanços e recuos. Articula uma estratégia nacional, inserida regional e globalmente, que visa tornar a China um país moderno, rico e poderoso. As políticas macroeconômica, industrial, de ciência e tecnologia, externa e de segurança são direcionadas pelo Estado para a construção de uma estabilidade política, a melhora das condições de vida do povo chinês e a reconquista de uma posição internacional autônoma.”

Os megaprojetos internacionais de infraestrutura são, conforme destacado acima, um dos eixos da transição interna e, ao mesmo tempo, da redefinição das relações com o restante do mundo, por desencadearem um processo de reconfiguração da ordem global. Não se trata, entretanto, de uma opção tirada da cartola, como provavelmente imaginam aqueles analistas incansáveis na elaboração reiterada de previsões furadas de derrocada do país asiático por insubmissão ao livre-mercado.

“A construção de infraestrutura para fomentar o comércio e a estabilidade social foi uma pedra fundamental da própria prosperidade de longo prazo da China durante mais de 2 mil anos. A política recentemente enunciada baseia-se na história de antigas redes de comércio e transmissão de cultura entre esse país, a Ásia Central e o Sudeste Asiático. A Europa está no longínquo terminal Oeste dessas redes”, explica o economista Peter Nolan, professor da Universidade de Cambrige e consultor do governo chinês, no livro Understanding China: The Silk Road and the Communist Manifesto.

O trem Golden Eagle percorre trecho recém-construído da nova Estrada da Seda, entre a Ásia e a Europa

O governo não abre mão da estratégia político-econômica nem da sua permanente revisão e reformulação, em sintonia com a dinâmica da realidade. A planificação estratégica visa à harmonia, ou seja, o equilíbrio de forças, destacam Cintra e Pinto. Nesse sentido, os interesses privados ou capitalistas não devem ser poderosos o suficiente para ameaçar a supremacia incontestável do Estado, que mantém amplo conjunto de empresas e bancos públicos e regula rigorosamente diversas esferas econômicas e as relações com o exterior.“Os mecanismos de mercado – a taxa de juros, a taxa de câmbio, a tributação, os preços – são considerados um instrumento e não um fim em si mesmos e a abertura assume a condição de eficácia que conduz a uma diretriz operacional, qual seja, alcançar e ultrapassar os concorrentes estrangeiros”, esclarecem os autores do artigo.

As adequações da estratégia ocorrem por meio de reformas, que consistem em mudanças feitas de modo integrado, como detalham os economistas Michel Aglietta e Guo Bai, no livro China’s Development: Capitalism and Empire: “A reforma é a transformação conjunta de estruturas e instituições econômicas. É pluralista e alimenta-se das contradições que gera, em um processo interminável. Não tem qualquer referência em relação a qualquer modelo ideal.

O seu significado não é teleológico; é imanente à prática histórica. Graças à continuidade da liderança política, a reforma pode ser gradual, informada por uma visão de longo prazo e testada no experimento pragmático. O planejamento estratégico visa à harmonia, que é o equilíbrio de forças que contribui para reforçar a soberania do Estado. Consequentemente, interesses capitalistas nunca serão tão poderosos a ponto de ameaçar a supremacia primordial do Estado. É por isso que o Estado mantém um grande domínio de propriedade soberana e regula firmemente as finanças”.

O avanço chinês foi muito além das elucubrações ocidentais. Transcorrido um quarto de século desde as reformas iniciadas entre 1989 e 1990, chama atenção Nolan, o cenário parece muito diferente daquele amplamente previsto e desejado no Ocidente. “O colapso do ‘Império do Mal’ na União Soviética não foi seguido pelo colapso do regime do Partido Comunista na China.

A ‘mudança de regime’, que muitas pessoas ainda esperam e trabalham para acontecer, não ocorreu. O PCC tem 87 milhões de integrantes e em 2021 celebrará o centenário da sua fundação. Sob seu comando o país experimenta a era mais notável de crescimento e desenvolvimento da história moderna. Sob o guarda-chuva protetor da estabilidade política e social, conquistou três décadas de crescimento em alta velocidade.”

Com o controle absoluto sobre o sistema político, o Partido Comunista Chinês restaurou a legitimidade anteriormente personificada no imperador, acrescentam Cintra e Pinto. Ele prolongou e radicalizou uma tradição milenar ao criar uma espécie de “dinastia mandarim”, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos morais confucianos do período imperial.