Archive for 11 de julho de 2017

Cotas, meritocracia e Balzac

 

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Pretensamente “realista”, o discurso meritocrático é, na realidade, o paradigma da ingenuidade. Insuspeito de comunismo, o autor de Ilusões Perdidas expôs com primazia essa falácia


O Conselho Universitário da USP aprovou, na terça-feira 4, a criação de cotas sociais e raciais. A partir de 2018, 37% das vagas serão destinadas a alunos da escola pública, número que deve subir para 40% em 2019 e atingir 50% em 2021. Dentro dessa cota, 37% das vagas serão reservadas para pretos, pardos e indígenas.
Apesar de a proposta inicial prever apenas cotas para estudantes da escola pública, a forte mobilização do Movimento Negro, dos estudantes e de 300 professores que apresentaram manifesto favorável às cotas etnorraciais foi decisiva para o desfecho positivo.

Há pouco mais de um mês, a Unicamp também aprovou cotas em seu Conselho Universitário. Lá, além de 50% das vagas reservadas para alunos de escolas públicas, até 37,5% do total será progressivamente reservado para pretos, pardos e indígenas.
Foi o suficiente para iniciar um desfile de chorume nas redes sociais. Não adianta relembrar que, nas universidades onde as cotas foram implantadas, diversas pesquisas apontam que o desempenho desses estudantes é igual e, em muitos casos, superior ao dos estudantes não cotistas. Não adianta. O preconceito fala mais alto.

É impressionante a naturalidade com que repetem discursos meritocráticos, sem qualquer sustentação nos fatos. A meritocracia pretende-se uma visão realista, antiutópica, quando na verdade é o paradigma da ingenuidade. Honoré de Balzac fez de um de seus principais romances, Ilusões Perdidas, um libelo contra essa falácia.
Corria o século XIX e o mito de Napoleão ainda estava em alta. Toda uma legião de jovens europeus inspirava-se na ascensão daquele soldado a general, por seu mérito, e acreditava poder reeditar o feito, cada um a seu modo. No romance, o genial Balzac conta a saga de Lucien de Rubempré, jovem que sai do interior da França acreditando que conquistaria Paris com seus versos.

A história mostra como o sistema tritura os sonhos e os versos do rapaz. Os poemas até que eram bons, mas isso estava longe de ser o principal. Era preciso oportunidade, contatos, status social. Assim, nos diz Balzac, o sistema impõe um filtro capaz de matar talentos e elevar medíocres. O “mérito” aqui depende muito mais do berço e da classe do que do merecimento propriamente dito. É preciso boas doses de ilusão e ingenuidade para crer que os melhores vencem no final.
Voltemos então às cotas raciais. A desigualdade no acesso à educação, ao trabalho e à renda entre negros e brancos é inequívoca. Vamos aos dados da Pnad de 2015. Na educação, 25,9% da população branca tem 12 ou mais anos de estudo. Entre a população negra, somente 12% tem a mesma escolaridade, menos da metade. Entre os brasileiros com menos de um ano de estudo, os negros atingem 14,4%, enquanto os brancos chegam a 7,4 %.

No mercado de trabalho, enquanto o homem branco tinha, em 2015, uma taxa de desocupação de apenas 6,8%, a mulher negra chegava a 13,3%. Quando o assunto é renda, a desigualdade salta aos olhos. O homem branco tem renda média de 2.509 reais, enquanto o homem negro ganha 1.434 e a mulher negra, somente 1.027.
É possível interpretar esses dados de duas formas. Pode-se dizer que os negros e negras têm menos escolaridade e menores ganhos por falta de mérito e esforço próprio. Ou se constata o óbvio: tal cenário é resultado da brutal disparidade de oportunidades sociais.

O Estado brasileiro guarda uma dívida histórica com o povo negro, desde a escravidão. As cotas representam uma iniciativa de reparação tardia e ainda tímida de séculos de desigualdade racial. Devem ser saudadas como um avanço. E aos fanáticos da meritocracia, que vivem no mundo da fantasia em que o esforço se sobrepõe às engrenagens sociais, não lhes peço que leiam Marx, Simone de Beauvoir ou Malcolm X. Isso seria demais. Leiam apenas Balzac, insuspeito de comunismo.
Parabéns ao Movimento Negro, grande responsável por pautar a questão na sociedade brasileira. •

Sobre o custo social do combate à inflação

leia direto no site original:  https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/sobre-o-custo-social-do-combate-a-inflacao

por André Luiz Passos Santos

[Este é o blog do Brasil Debate em CartaCapital. Aqui você acessa o site]

O presidente do BACEN, Ilan Goldfajn, publicou nota no site da instituição no último dia 19 comentando o relatório de inflação do primeiro trimestre. Nela, Goldfajn comemora a queda da inflação, que era de 9% nos doze meses encerrados em junho de 2016, quando assumiu a presidência do Banco Central, para 3,8%, taxa prevista para 2017. Dias depois, em entrevista ao jornal Valor, Goldfajn afirma à jornalista Claudia Safatle que a política monetária que preside “quebrou a espinha” da inflação.

De fato, alguns analistas preveem que a inflação poderá estar rodando abaixo de 3% no último trimestre de 2017. Portanto, abaixo da mínima prevista para a banda fixada pelo sistema de metas de inflação – que pode variar este ano entre 3 e 6% – o que obrigaria o BACEN a escrever uma carta ao Conselho Monetário Nacional explicando por que teria exagerado na dose do remédio.

Em sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, publicada no último dia 22, a economista Laura Carvalho analisa o comportamento recente da inflação, relativizando a comemoração do presidente do Banco Central. Sua coluna tem o mérito de decompor as causas da inflação, apontando que suas principais razões em 2015 foram o choque de preços administrados promovido por Joaquim Levy, a brusca depreciação cambial do início de 2015 e choques de oferta de produtos agrícolas provocados por razões climáticas.

Calcula-se que 6,53 pontos percentuais do IPCA de 2015, que foi de 10,67%, são explicados por esses fatores, insensíveis à política monetária. Cessados – ou pelo menos muito atenuados – os fatores causadores de mais de 60% da inflação de 2015, a taxa anualizada começou a refluir desde o início de 2016, ainda antes da posse de Goldfajn na presidência da Autoridade Monetária, o que se pode constatar observando o comportamento do IPCA anualizado, mês a mês, desde janeiro de 2016.

A margem de atuação do BC de Goldfajn sobre uma inflação já em trajetória descendente se reduziria a menos de 40% de suas causas.

É preciso também registrar que a política fiscal contracionista – e não apenas a política monetária conduzida por Goldfajn – é em parte responsável por esse resultado, o que reduziria ainda mais o alcance das medidas monetárias restritivas.

Em que pese a correção da análise efetuada por Laura Carvalho, havemos de admitir que parte não desprezível da queda da inflação é explicada pelas políticas pró-cíclicas praticadas pelo governo. A redução da inflação de serviços, que vinha desde antes de 2015 persistentemente rodando acima da variação do IPCA, pode ser explicada pela austeridade. De fato, a trajetória de queda da taxa de inflação se manteve consistente ao longo do ano de 2016, o que permitiu ao Copom iniciar um ciclo de redução da taxa Selic a partir de outubro de 2016.

Os problemas a discutir aqui são outros.

Por um lado, a queda acentuada da inflação, combinada com o conservadorismo do BACEN no manejo da taxa básica de juros da economia, causou uma alta considerável dos juros reais incidentes sobre a dívida pública. Este cenário é incompatível com a busca do equilíbrio fiscal e da retomada do crescimento econômico pela via do aumento do investimento, porque por um lado onera ainda mais o orçamento fiscal com o pagamento de juros em um contexto de queda persistente da arrecadação tributária (agravando o desequilíbrio fiscal que a austeridade pretende reduzir), e, por outro, encarece os projetos de investimento, incentivando a financeirização em lugar da inversão produtiva.

Por outro lado, o principal fator a explicar a queda da inflação de serviços é o aumento do desemprego, e, consequentemente, a queda da renda e o aumento da precarização das relações de trabalho. Ao mesmo tempo em que reduz as pressões do custo do trabalho sobre as margens de lucro das empresas, o desemprego – ou sua mera ameaça – e a queda da renda da população deprimem a demanda, tornando mais difícil reajustar preços.

De fato, o desemprego – que já vinha em crescimento desde 2015 – acelerou-se desde a posse de Goldfajn no BACEN. Segundo dados da PNAD contínua, o desemprego no trimestre encerrado em junho de 2016, quando Goldfajn assumiu o BC, foi de 11,3%. No trimestre encerrado em março de 2017, para coincidir com o mesmo período em que o presidente do BC exalta o sucesso de suas políticas, a taxa de desemprego atingiu inéditos 13,7%.

Entre os jovens, o desemprego já se aproxima de 30%. O país hoje registra mais de 14 milhões de trabalhadores desempregados, sendo mais de 2,6 milhões de novos desempregados desde a posse do novo governo.

Num ambiente em que a assistência financeira prestada aos desempregados é limitada, tanto em termos de valor quanto do tempo em que perdura, isto significa conviver com legiões crescentes de desesperançados. Os efeitos dessa perversidade já se fazem sentir, desde a alta da inadimplência ao perceptível aumento de pedintes nas ruas e da violência urbana.

Alguns dos economistas que servem a essa entidade misteriosa e insaciável, chamada “mercado”, a quem a maioria de nossa classe política parece também servir incondicionalmente, de forma insensível ao sofrimento de milhões, ainda comemoram publicamente a redução dos custos das empresas e das pressões inflacionárias pelo aumento de desemprego.

Aparentemente, a pujança de nosso mercado interno – motor do último ciclo de crescimento da economia brasileira, de 2004 a 2014 – vai sendo abandonada em favor de um modelo de sociedade (não aprovado pelas urnas) que guarda uma curiosa nostalgia do escravagismo, como demonstram as propostas de reformas previdenciária e trabalhista que pairam, quais espadas de Dâmocles, sobre as nossas cabeças.

A desigualdade volta a crescer no Brasil, após ter sido reduzida na década encerrada em 2014, e já se ameaçam conquistas civilizatórias acumuladas a duras penas desde o início do século passado. Não surpreenderia se o mais importante feito brasileiro dos anos recentes – a exclusão do país do mapa da fome da ONU – for perdido em futuro próximo.

Em conclusão, embora esteja de acordo com a análise de Laura Carvalho – a quem muito admiro – sobre o alcance limitado das políticas pró-cíclicas do governo no combate à inflação, creio que cabe discutir sobre o custo social excessivo destas mesmas políticas.

Sacrificar milhões de brasileiros no altar do “deus mercado”, retirando-lhes os meios de subsistência enquanto aumenta a transferência de recursos orçamentários aos detentores da dívida pública (ademais em um momento em que a inflação já estava em declínio), não pode parecer justo e razoável a ninguém que não esteja contaminado por crenças ilógicas na capacidade desse mesmo “deus” de recompensar nossos sacrifícios com a prosperidade eterna, se cumprirmos fielmente seus desígnios.

Segundo a sabedoria popular, existem diversos meios de se matar o carrapato. Um deles é matando-se a vaca. É nesse caminho que queremos persistir?

* Andre Luiz Passos Santos é economista, mestre em História Econômica pela USP

Por que o Brasil quer entrar na OCDE? Para especialistas, há ganhos e perdas.


Com possível entrada na OCDE, país se aproxima de países ricos para tentar ganhar credibilidade internacional e investimentos; risco é arriscar protagonismo entre países emergentes.

O Brasil pediu formalmente para ingressar no “clube dos ricos”, como é conhecido o grupo que reúne os países membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As incertezas políticas pelas quais o país atravessa, porém, ameaça essa aproximação. Mas qual é o papel da OCDE e quais são as vantagens políticas e econômicas de se participar do acordo?

A OCDE atua como uma organização para cooperação e discussão de políticas públicas e econômicas que devem guiar os países que dela fazem parte. Para entrar no acordo, são necessárias a implementação de uma série de medidas econômicas liberais, como o controle inflacionário e fiscal. Em troca, o país ganha um “selo” de investimento que pode atrair investidores ao redor do globo.

Especialistas ouvidos pelo G1 divergem sobre as vantagens que isso trará ao Brasil. Ao entrar na OCDE, o país mudaria seus rumos diplomáticos e poderia atrair mais investimentos, mas colocaria em risco seu protagonismo entre países subdesenvolvidos, assim como sua participação no Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) e no G77 mais a China, grupo de países em desenvolvimento.

Entre os atuais 35 países membros da OCDE estão os Estados Unidos, Canadá, Japão, França e Reino Unido. O Brasil se aproxima da OCDE há anos como “membro observador”, mas com receio de perder seu protagonismo entre os países emergentes, nunca havia formalizado sua vontade de fazer parte do acordo.

Por que o Brasil está dando esse passo agora?

“Ser membro dará ao país uma plataforma para discussão de suas próprias políticas públicas. Isso pode influenciar na percepção de outros países ou investidores que não conhecem o Brasil e passem, dessa forma, a querer investir aqui”, explica Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV). Para ele, essa também é uma forma do atual governo enaltecer uma narrativa de que o Brasil “está passando por um processo de recuperação”.

Já para o professor de Relações Internacionais e Direito da Ibmec, Vladimir Feijo, ao ser membro da OCDE, “o Brasil passa a ser o último dos primeiros em vez da lógica anterior, em que ele buscava ser um representante dos países em desenvolvimento”, disse. Para ele, o posicionamento diplomático do país em aderir ao acordo é “uma forma de mostrar transparência para investidores”. Por outro lado, isso é “negativo”, diz o professor, porque passa a limitar o diálogo brasileiro com as nações emergentes.

“É uma perda de décadas de construção de liderança através de uma lógica de construção (hemisfério) sul-sul, do Brasil com os países em desenvolvimento”, disse Feijo. O professor ainda contesta a necessidade do Brasil em entrar no acordo e as consequências que isso trará já que “os dados estatísticos e as políticas públicas dos países da OCDE não são sigilosos. Um país pode optar por adotar esses tipos de padrões e comportamentos sem ser um membro pleno”, explica.

A entrada no acordo é “estratégica” para a organização pelo peso do Brasil no mercado global, mas pode ser um “grande risco” diante do cenário econômico, explica Pedro Costa Junior, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Isso terá um custo adicional no nosso orçamento já que o Brasil também terá que contribuir financeiramente para a organização no momento que o governo corta gastos em saúde e educação”, disse. Esse custo só será desvendado com a concretização do acordo.

A aprovação, que ainda passará pelo crivo dos atuais países integrantes, pode ser divulgada ainda em julho, passando à frente da solicitação de outros países latino-americanos, avaliam os especialistas ouvidos pelo G1. O Peru tenta há anos, mas nunca recebeu um convite. A Argentina também formalizou seu pedido no ano passado sob a gestão do presidente Mauricio Macri. A Colômbia está em processo de adesão desde 2013.

“Nós temos metade do PIB sul-americano. Somos um mercado exuberante de pessoas e um dos maiores polos de investimento no mundo, sem ser membro da OCDE ainda. Isso atrai e faz do Brasil um país importante para eles”, explica.

O México foi o primeiro país da América Latina a entrar para a OCDE, em 1994. Desde então, segundo o próprio órgão, houve um fortalecimento na fiscalização e implementação das políticas públicas do país. Em 2010, o Chile seguiu os passos dos mexicanos e concretizou sua aderência ao grupo, algo que vinha sendo estudado desde 2007. Para se adequar ao acordo, o país introduziu medidas contra a corrupção, como uma lei que acaba com o sigilo bancário de forma a eliminar evasões tributárias.

Desde então, a taxa de desemprego do Chile caiu significativamente, segundo relatório da própria OCDE. O Produto Interno Bruto (PIB) do país avançou de US$ 12,7 bilhões para US$ 13,3 bilhões em cinco anos no acordo, segundo o Banco Mundial. Já o PIB do México saltou de US$ 5,6 trilhões em 1994 para US$ 9 trilhões em 2015.


Com o aceite do país pelos membros do acordo, o Brasil terá de se adequar a um conjunto de medidas fiscais e econômicas. Essa etapa pode demorar de meses a anos para ser concluída já que irá depender da adequação do Brasil com as metas a serem estabelecidas.

Na avaliação de Costa, a entrada do Brasil ao grupo significa que os rumos diplomáticos do país estão mudando. Há uma busca maior de aproximação com os EUA e a União Europeia, ao mesmo tempo que perde parte de sua autonomia política ao abrir seus rumos para o grupo. “É uma reorientação ideológica da nossa política externa. Uma forma simbólica de mostrar que estamos abandonando as questões regionais e o fortalecimento de laços com o Mercosul”, disse.

Esse afastamento dos emergentes foi um dos principais motivos que levou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva a evitar uma aproximação do país com a OCDE, em 2007. “Entrar na OCDE não é uma reivindicação nem uma aspiração do Brasil. O Brasil já tem seu selo de qualidade por sua política econômica e social e não precisa mais buscar isso”, declarou o ex-chanceler Celso Amorim à época.

Por outro lado, o discurso adotado pelo governo do presidente Michel Temer segue diretrizes próximas à da OCDE. As reformas econômicas propostas no seu mandato, como a trabalhista e a da Previdência são evidências disso, avalia Costa. Para ele, isso faz do Brasil, mesmo com a crise política e econômica, um país atraente ao bloco. Nem mesmo a denúncia formal do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Temer, avalia Costa, inviabilizaria o aceite do Brasil no acordo.

Criada em 1948, a OCDE foi uma forma que os norte-americanos enxergaram de viabilizar o Plano Marshall, que tinha o intuito de auxiliar na reconstrução da Europa pós-guerra. A entrada em vigor do grupo ocorreu em 1965 e, aos poucos, foi recebendo parceiros e adeptos. De acordo com a própria OCDE, os que hoje compõe o acordo respondem por 80% do comércio mundial.

* Sob supervisão de Marina Gazzoni